São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


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+ brasil 500 d.C.

Segundo Nabuco, como no cidadão convivem o senhor e o escravo, na escravidão pareciam conviver o cidadão e o senhor, o primeiro na cabeça, o último no coração
Saudade do escravo

José Murilo de Carvalho

O Abolicionismo" de Joaquim Nabuco é o melhor panfleto político que já se escreveu entre nós. Contém, além disso, a mais provocadora análise sociológica da escravidão brasileira. Evaldo Cabral de Mello comentou aqui (Mais! de 27/2) o fato de o autor não ter embarcado na canoa furada das teorias racistas que empolgavam muitos intelectuais seus contemporâneos (entre os quais poderíamos citar Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues). Discutiu também algumas das visões de Nabuco a respeito do impacto da escravidão na sociedade brasileira. Aproveito a deixa do historiador para ampliar o debate e examinar uma intuição, fascinante e intrigante, do grande abolicionista a respeito da diferença que haveria entre a escravidão brasileira e a norte-americana. Baseio-me sobretudo no magistral capítulo de "O Abolicionismo", intitulado "Influências Sociais e Políticas da Escravidão". Segundo Nabuco, a escravidão brasileira distinguia-se pelo fato de ser nacional na geografia, democrática no alcance, cultural na profundidade. Era nacional porque não dividia o Brasil ao meio como fazia nos Estados Unidos, uma parte livre, uma parte escrava, uma parte sadia, uma parte podre. Não havia entre nós um Norte livre que pudesse derrotar um Sul escravista. O Brasil era escravista do Oiapoque ao Chuí, para usar o chavão do discurso ufanista. Não havia como fugir da escravidão nem mesmo nos quilombos. O corpo inteiro do país estava contaminado. O fato refletia-se na imagem de um país de escravos que tinha de nós -os europeus e os vizinhos sul-americanos. O caráter democrático (termo meu) de nossa escravidão consistia em não ser ela monopólio de uma raça, como no sul dos Estados Unidos, em não se basear na separação -e no ódio- das raças. Ela não desenvolveu entre nós a prevenção da cor. Foi, nesse sentido, democrática, na medida em que se abria a todos, em que permitia a todos, brancos, pardos, negros, até mesmo escravos negros, possuírem escravos.

Escravidão hábil
Ao escapar do monopólio da raça branca, ela comprometia a todos. Nisso foi "infinitamente mais hábil" do que nos Estados Unidos, pois na abertura e no enraizamento é que estava, segundo Nabuco, o segredo de sua força entre nós. Uma força que se tornava ainda mais poderosa por contaminar todas as instituições, a começar da Igreja Católica, cuja conivência foi vergonhosa. A parte central e mais intrigante do argumento de Nabuco tem a ver com as consequências culturais da escravidão. Todos podiam ter escravos, e o escravo, ao libertar-se, tornava-se cidadão de pleno direito. Portanto, todos os cidadãos podiam ter escravos, cidadania e escravidão enlaçavam-se estreitamente. Isso significava que a maioria dos cidadãos brasileiros era de "mestiços políticos, nos quais se combatem duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado". O efeito da escravidão ultrapassava assim a fronteira da liberdade civil ("libertas") e invadia o campo da cidadania ("civitas"), da cultura política, diríamos hoje. No Brasil, como nas aldeias alemãs da Idade Média, até o ar que se respirava era servil. Uma consequência importante dessa concepção era que a abolição legal da escravidão constituía apenas o primeiro passo da campanha abolicionista. O senhor e o escravo continuariam a coexistir dentro do cidadão brasileiro. A abolição dessa convivência, isto é, da escravidão interna, era tarefa para anos de esforço no sentido de reformar o caráter, o civismo, a religião, o Estado. Essa, insiste Nabuco, era a idéia fundamental de seu livro. O cidadão como mistura patológica de senhor e escravo, de Dr. Jekill e Mr. Hyde, assumindo ora uma, ora outra personalidade, eis uma intuição estonteante pelas sugestões que contém para a análise da natureza de nossa cidadania. Um cidadão arrogante no poder, submisso fora dele, que manda com prepotência e obedece com subserviência, que quer a liberdade para si e a nega aos outros. Ou, como diria Oliveira Viana (os extremos se tocam!), um cidadão que tem o senso da independência individual, e não da liberdade civil, pois esta exige o reconhecimento de liberdade igual para todos. Numa palavra, um não-cidadão em um país ainda a exigir uma luta abolicionista. Além de nos dar o melhor panfleto político, Nabuco deixou ainda em "Minha Formação" uma de nossas melhores autobiografias. O capítulo desse livro intitulado "Massangana" complementa a discussão de "O Abolicionismo". Com admirável franqueza, o autor nos fornece a dimensão mais preocupante, porque tirada do fundo da alma, da escravidão brasileira. Recordando a infância passada no engenho Massangana, da madrinha, ele revela o choque causado pela visão do sofrimento dos escravos e a decisão de dedicar a vida à luta pela abolição. No entanto, em confissão surpreendente, que, reconhece, espantaria os abolicionistas Garrison e John Brown, admite que, extinta a escravidão, sente saudade do escravo. Como era bom o meu escravo, parece dizer-nos o grande abolicionista.

Gratidão ao senhor
O respeito que Nabuco merece nos proíbe qualquer ironia diante da confissão. Antes, é preciso examiná-la dentro do mesmo espírito da análise sociológica de "O Abolicionismo". A decisão de lutar pela abolição, feita aos 20 anos diante das sepulturas dos escravos do engenho, se prendia antes ao enternecimento diante da generosidade deles do que à revolta contra a violência de que eram vítimas. Os escravos dos engenhos nordestinos não só não se revoltavam contra sua condição como revelavam gratidão ao senhor a quem tudo davam. Eles perdoavam a dívida do senhor, anistiando assim os países que se construíram com base na escravidão. Sua doçura emprestava até mesmo um reflexo de bondade à opressão de que eram vítimas.
Como no cidadão, segundo Nabuco, convivem o senhor e o escravo, nela pareciam conviver o cidadão e o senhor, o primeiro na cabeça, o último no coração. A habilidade perversa da escravidão detectada pelo cidadão era contrabalançada pela generosidade do escravo -sentida, ou inventada, pelo senhor. Se a primeira pode servir de chave para entender o caráter de nossa cidadania, a segunda talvez nos ajude a entender a mentalidade de nossa elite.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.

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