São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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Isolado em seu apartamento no Rio e alheio às mudanças políticas e sociais por que passava o Brasil, o ex-ministro do Exército no período militar Sylvio Frota fala, em "Ideais Traídos", de um país deixado para trás

A nação entre quatro paredes

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

E scrito entre 1978 e 1980 por um ex-ministro do Exército que blefou e perdeu, o livro "Ideais Traídos" remete a um duplo enclausuramento. Fechado no seu apartamento no Grajaú, no Rio de Janeiro, e no ressentimento de quem assistia à vitória de seus desafetos do grupo Geisel-Golbery, o general Sylvio Frota redige suas memórias quando o país ainda patina no autoritarismo.
Afora o noticiário limitado dos jornais, ele só pôde cotejar as abordagens de alguns livros sobre o período ditatorial: os dois livros do general Hugo de Abreu, o livro de Walder de Góes ("O Brasil do General Geisel"), uma obra mais geral de Glauco Carneiro ("História das Revoluções Brasileiras") e pouco mais.
Sem interlocutores ou comentadores de seu manuscrito, ele não se dava conta do estreitamento progressivo de seu ponto de vista. Assim, não se pode alinhar sem contextualização as frases freqüentemente caricaturais que pontuam suas análises.


Os oficiais da geração de Frota estavam marcados por um Brasil arcaico


Como muita gente, Frota não gostava de Brasília. Por duas vezes, a partir da reflexão tirada de um livro de Afonso Arinos, ele fustiga as "obras faraônicas" da capital federal. Falando sobre manobras do grupo Geisel-Golbery, ele também escreve: "O ambiente de mexericos em que vivíamos na capital do país admitia qualquer hipótese" e, mais adiante, "o grupo do Palácio do Planalto era incansável nos seus mexericos".

Prisma enviesado
Esse é o ponto essencial. Formados desde jovens nas casernas, vivendo nos quartéis e nas residências militares, assediados por complôs e mexericos, os círculos do poder se isolavam numa capital ainda mal-ajambrada, intimidada pelas cassações, sem opinião pública, sem noção das mudanças em curso no país e no mundo. Nesse ambiente, as grandes viradas políticas nivelam-se às futricas palacianas. Ulysses Guimarães, presidente do MDB (desde 1971), "anticandidato" à Presidência (1973), personagem central de todas as articulações políticas da época, não é nem sequer citado no livro.
Mais significativo ainda, a acachapante vitória do MDB nas eleições de novembro de 1974 não ganha nenhum relevo na análise de Frota.
Desse modo, ele não vê o alcance das medidas "Pacote de Abril" (1977), destinadas a travar o avanço do MDB, mantendo a eleição indireta para governador e criando os senadores biônicos. Vê -apenas e sobretudo- o efeito indireto do novo calendário eleitoral, que, de quebra, prolongou o mandato de Geisel, dando mais seis meses de lambuja ao "grupelho do palácio".
O cenário internacional era observado sob o mesmo prisma enviesado. "O Movimento Comunista Internacional não descansava", escreve Frota. A Guerra do Vietnã, a redemocratização de Portugal, a independência de Angola e Moçambique, a crise do apartheid na África austral apareciam como um avanço articulado do comunismo.
Pouco importava que os EUA reconhecessem a China comunista (1972) ou que o Partido Socialista de Mário Soares tivesse derrotado o PC de Álvaro Cunhal. De seu ponto de vista, o PC e o PS eram uma coisa só, saída da matriz marxista que invadia o mundo e, pelas beiradas, a igreja, os jornais e a sociedade brasileira.
Como em toda autobiografia, Frota escreve sobre o que lhe convém. No que concerne às críticas de que era objeto, ele se defende das acusações de golpismo e considera as manobras levando à sua demissão como "uma das maiores farsas da história do Brasil".
Contudo há mais coisas complicadas. Foi durante seu período no Ministério do Exército que a ditadura aderiu à Operação Condor. Dois dos poucos documentos sobre o assunto liberados pela CIA comprovam a presença do Brasil na reunião desse Mercosul do terror (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), organizada em Buenos Aires, em dezembro de 1976.
Dotada de brandos costumes, nossa opinião pública desconsidera o assunto. Mas na Argentina e no Chile há juízes que indiciam e pedem a extradição dos ex-ditadores dos seis países membros que ainda estão vivos: os generais Pinochet, Videla, Hugo Banzer e Stroessner.
Na sua obra ainda em curso sobre a ditadura, Elio Gaspari adverte no prefácio do primeiro volume ("A Ditadura Envergonhada") que seu objetivo não é o de escrever uma história da ditadura. Observando que tal tarefa demanda um estudo de maior abrangência, ele sublinha que seu enfoque dá preponderância ao papel de Geisel e Golbery.
Malgrado esse cuidado, o merecido sucesso de seus livros estabelece uma interpretação que perdurará por muito tempo: Geisel e Golbery fizeram a ditadura e acabaram com ela. Sob essa perspectiva, a demissão de Frota do Ministério de Exército (outubro de 1977), descrita por Gaspari no início de seu primeiro volume, aparece como o momento de ruptura, como o fim da ditadura. Estanque desde o Grajaú no passado, o livro póstumo de Frota vem reiterar essa interpretação.

Golpes e contragolpes
Porém "Ideais Traídos" mostra ainda como os oficiais da geração de Frota estavam marcados por um Brasil arcaico que se formara no ocaso do Império. Uma sociedade majoritariamente rural, pontuada por golpes e contragolpes onde quem contava mesmo eram as oligarquias no cotidiano, o Exército na gestão das crises e a igreja na gestão das almas. Aliás, Frota revela a grande preocupação de Geisel em evitar incidentes com a hierarquia eclesiástica. Mas o essencial se situa em outras instâncias: a ditadura que Geisel e Golbery estabeleceram em 1964 e alegadamente terminaram em 1979, começa num país e acaba noutro.
No meio tempo, a sociedade e a política brasileira mudaram radicalmente. O impulso democrático e descentralizado dado pelos eleitores em novembro de 1974 e as manifestações de massa das Diretas-Já! renovaram o sistema político nacional. Há e haverá traições na política brasileira, e talvez alguém venha a escrever um livro cujo título poderá ser, de novo, "Ideais Traídos". Mas serão outros os ideais. Os ideais de Frota e a maneira usada para atraiçoá-los pertencem a um outro país, a um outro mundo.

Luiz Felipe de Alencastro é professor na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras).

Ideais Traídos
664 págs., R$ 72 de Sylvio Frota. Editora Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/ 21/ 2240-0226).



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