São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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"Comida - Uma História" e "Seis Mil Anos de Pão" transitam pela sociologia, nutrição, química, agronomia e religião para traçar um panorama da alimentação

Oito revoluções boca a boca

Leopoldo Waizbort
especial para a Folha

Como todos sabem, não há tema mais importante para o ser humano do que a comida, podendo a humanidade dividir-se entre os que comem para viver e os que vivem para comer. Mas, desde o princípio, essa saudável e feliz alternativa foi corroída pela fome, e não há história da alimentação que não seja, sobretudo, uma história da fome: história dos homens que dependem das dádivas de uma natureza boa ou má, história dos homens que dependem dos modos como eles mesmos distribuem suas riquezas, isto é, seu alimento, seu pão. De todos os modos, uma história da dominação da natureza e da dominação dos homens.
Tanto "Comida - Uma História", de Felipe Fernández-Armesto, como "Seis Mil Anos de Pão", de Heinrich Eduard Jacob, adotam a perspectiva de uma história cultural para falar da comida e do pão, mobilizando dados e incorporando discussões advindas de variados domínios: história, economia, antropologia, sociologia, biologia, nutrição, química, agronomia, tecnologia, religião etc.
Fernández-Armesto, historiador espanhol radicado na Inglaterra, propõe a idéia de oito grandes "revoluções", por meio das quais seria possível contar a história da comida articulada à história geral da civilização. A primeira revolução é a invenção do cozimento: diz respeito à domesticação do fogo e seu papel no processo de civilização, à diferença do cru e do cozido, do vivo e do morto ("no repertório da cozinha ocidental moderna, a ostra é a única coisa que comemos crua e ainda viva").
Além disso, destaca as inovações tecnológicas nas formas de cozimento (assado, grelhado, frito, cozido, fervido), de dominar o fogo e nas ferramentas culinárias, desenvolvimentos que rebatem nas formas de organização social. E, em contrapartida a esse aspecto civilizacional, destaca a nostalgia do "natural" na alimentação moderna. A segunda revolução trata da dimensão simbólica associada à comida na sua produção, preparação, distribuição e consumo. Mulheres e homens não comem simplesmente, mas também atribuem significados ao que comem; dietas e hábitos alimentares são cultura, referem-se ao sagrado e ao profano; as comidas são puras ou impuras, saudáveis ou prejudiciais, benfazejas, divinas ou demoníacas.
A terceira revolução aborda a seleção, domesticação e criação dos animais comestíveis, desde as primevas criações de lesmas até as atuais fazendas de criação de animais selvagens e exóticos. Indagando como e por que o homem cria outros animais para comer, o autor passa em revista a velha discussão de coleta, caça e pastoreio, ressaltando o papel importantíssimo da caça de peixes (e, atualmente, de sua criação).
A quarta revolução diz respeito à agricultura, à utilização da vida vegetal como alimento. Embora a passagem da coleta para o cultivo não tenha representado imediatamente grandes vantagens, "a longo prazo a contribuição da agricultura para a mudança do mundo foi maior do que qualquer outra inovação humana". Ademais, com o tempo, a seleção e manipulação artificiais ganharam cada vez mais importância, produzindo novas espécies, de sorte que hoje 90% da alimentação mundial provém de plantas. Fernández-Armesto dá grande destaque à história do desenvolvimento dos grandes cereais (centeio, cevada, trigo, milho, arroz, milhete), sem contudo esquecer a importância dos tubérculos.
A quinta revolução destaca a alimentação como força e fator de diferenciação social: comer diferentemente distingue as pessoas, e ricos e pobres encontram na comida pontos de contato e separação. A distinção opera não só segundo o critério da quantidade (uns têm muita comida, outros não têm), mas também da qualidade (uns comem comidas raras e refinadas, se tornam gourmets; cria-se a "haute cuisine"), para não falar dos bons modos ao comer.
A sexta é o comércio de longa distância, promotor de intercâmbios materiais e culturais: da dificuldade em comer o que os outros comem, da distinção em poder ter ingredientes exóticos e saber apreciá-los. Ao mesmo tempo, evidencia que as culinárias supostamente nacionais são de fato muito pouco nativas, fundindo elementos variados e estranhos. Centro e periferia, império e pós-colonialismo, senhores e escravos, exilados, migrantes e viajantes construíram e diluíram continuamente hábitos e privilégios alimentares.
A sétima revolução é dedicada aos intercâmbios ecológicos: "Continua sendo inquestionável que o grande intercâmbio de biota através dos oceanos nos últimos 500 anos constituiu a maior intervenção humana na história ambiental desde o começo da domesticação das espécies". Basta imaginar a Itália sem o molho de tomate, cujo ingrediente provém da América. Mas, para além do pitoresco, há a propagação dos grandes cereais que, como se viu, alimentam o mundo (isto é, sua parcela que é alimentada). A oitava e última revolução trata da industrialização do mundo e da alimentação desde o século 19: os alimentos são produzidos, processados e fornecidos industrialmente.
Sobretudo nesse tópico se evidencia a perspectiva neoconservadora do autor, no seu diagnóstico da sociedade pós-industrial como anômica, na qual as pessoas comem fast food e com isso se tornam incivilizadas, abandonando a calma e tranqüila refeição caseira e as formas tradicionais de vida familiar burguesa.
H.E. Jacob, por sua vez, escreveu uma história cultural do pão na qual pretende abordar tanto os seus significados simbólicos como a sua descoberta, produção e distribuição da Pré-História à Segunda Guerra. Mas falar do pão é antes de mais nada falar dos cereais -sobretudo do trigo-, de seu cultivo e das tecnologias envolvidas. Embora o livro apresente uma ampla série de informações, é um trabalho datado: basta lembrar que ignora toda a importante historiografia francesa do século 20 ou que insiste recorrentemente na idéia da Idade Média como um período de total estagnação ou que considera os indígenas em geral como incapazes de desenvolver "valores espirituais".
O livro foi publicado em 1944 e revisto nos anos 50, mas é obra de um publicista formado no período anterior à Primeira Guerra. Isso explica a modalidade da narrativa histórica de Jacob, presa aos eventos e ao peculiar e pitoresco, em detrimento de uma compreensão mais acurada do movimento histórico. O livro foi concebido como obra de divulgação para o grande público e optou por alinhavar uma série de histórias, sem preocupação maior em articulá-las em uma narrativa mais estruturada e estruturante. As partes iniciais, sobre o pão na Pré-História, na Antigüidade e na Idade Média são mais interessantes, porque não sucumbem à praga que permeia as partes subseqüentes (o pão na América "primitiva", no século 19 e nos nossos dias): um direcionamento interessado e apologético aos EUA, revelando que se trata de um livro escrito para o público norte-americano, no qual o autor demonstra sua gratidão pela terra que o recebeu.
Pois Jacob foi um judeu alemão que escapou dos campos de extermínio no último minuto, imediatamente antes da "Solução Final", e que encontrou acolhida nos EUA. Daí a apologia dos personagens, das máquinas, da missão e da grandeza norte-americanas, que irrita este leitor. Mas, ao final, as últimas três páginas do longo livro são indispensáveis, um pungente relato e peroração contra a barbárie. Elas valem o livro.


Leopoldo Waizbort é professor de sociologia na USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel" (editora 34).
Comida - Uma História
364 págs., R$ 52,90 de Felipe Fernández-Armesto. Trad. Vera Joscelyn. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000).

Seis Mil Anos de Pão
590 págs., R$ 68,00 de Heinrich Eduard Jacob. Trad. José M. Justo. Ed. Nova Alexandria (r. Dionísio da Costa, 141, CEP 04117-110, SP, tel. 0/xx/11/5571-5637).



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