São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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Ponto de fuga

O feitiço da lua

Jorge Coli
especial para a Folha

"Schoenberg deixa ressoar em completa liberdade seus ritmos linguísticos. (...) O executante deve encontrar a melodia linguística da música." Assim teorizava Albertine Zehme, primeira intérprete do "Pierrot Lunaire", cuja estréia se deu em Berlim, no ano de 1912. "Sucesso incondicional, na sala se urrava", escreveu Anton Webern. Os poderes sutilmente expressivos dessa obra, banhados de decadentismo, dependem de poucos instrumentistas, que devem ser exatos, mas sensíveis. Dependem ainda da solista, que deve dizer, entre o canto e a fala, e com talento, os textos poéticos.
O "Pierrot Lunaire" foi apresentado há pouco, em São Paulo, sob a regência de John Neschling, no ciclo de concertos oferecidos pela Orquestra Sinfônica do Estado. A beleza era tanta, tão viva e dramática a interpretação da solista, Marianne Pousseur, que a sala imensa e lotada reagiu, para dizer como Webern, numa vibração incondicional.
No mesmo programa, o "Concerto para Violino", de Berg, fazia as cordas brilharem como seda. Bastariam estas composições para testemunhar que a Osesp, enquanto orquestra de primeiro plano, é capaz de trazer, com regularidade semanal para um público que se alarga, as obras mais complexas do repertório. Mais ainda, seu novo CD, consagrado às sinfonias 2 e 3 de Camargo Guarnieri, mostra o papel estratégico de uma formação musical desse calibre: registrar e divulgar, para muitos ouvintes, aqui e no exterior, a grande música sinfônica brasileira, em execuções que não empalidecem os desígnios do compositor.
Vôo - "Côndor", assim, com acento circunflexo, não se refere à ave dos Andes, celebrada por Castro Alves. É um personagem oriental, herói da última ópera escrita por Carlos Gomes. Chefia as "hordas negras", bandos de nômades fora-da-lei. Ele se parece um pouco com o futuro Calaf, na "Turandot" de Puccini, já que se apaixona pela rainha Odalea ao vê-la surgir, dominando a multidão numa cerimônia. A história se passa numa remota Samarcanda do século 17.

Outra lua - O Festival de Ópera do Amazonas, em Manaus, começou muito bem neste ano, com "A Valquíria", de Richard Wagner, e concluiu, ainda melhor, com o "Côndor", de Carlos Gomes. A música é esplêndida, tecida menos no orientalismo do tema que num espírito de volúpia "fin-de-siècle", inspirada por amores extáticos e suicidas. Carlos Gomes se renovou aqui, abandonando as melodias generosas e os efeitos bombásticos: o "Côndor", escreveu Andrade Muricy, "não é um canto do cisne, mas uma indistinta, tateante aurora".
Trata-se, com efeito, de uma luz nova, cujos matizes suaves prenunciam óperas futuras, envoltas em clima d'annunziano, escritas por Montemezzi, Zandonai, pelo Mascagni de "Guglielmo Ratcliff", "Zanetto" ou "Parisina". O mood deliquescente, decadentista, que habita "Pélleas" ou "Pierrot Lunaire" é, de maneira curiosa, o mesmo do qual emanou "Côndor": existem, dentro da cultura, vasos comunicantes ramificando-se de modo imprevisto...
Na apresentação de Manaus, véus estirados por cordas criavam prisões transparentes: a ocultação das mulheres por mantos e burgas, o desejo aceso pelo olhar, nesse mundo muçulmano inventado por Carlos Gomes, acentuavam a força poética. A invenção teatral foi de Bruno Berger-Gorski, do cenógrafo Renato Theobaldo, da figurinista Tânia Marcondes.

Estrelas - Na concepção cênica, simbólica e etérea, criada, em Manaus, para o "Côndor", evoluiu um elenco sem falhas. Fernando Portari era o protagonista. Com seu timbre incomparável, ele encarnou um Côndor de aparência muito jovem. Forte e frágil ao mesmo tempo, deixava-se atrair pela Odalea incendiada, a quem Celine Imbert emprestou voz e alma. Luiz Fernando Malheiro foi o maestro.
Não é muito frequente um espetáculo de tal categoria. Como, ainda mais, ele revive uma criação, incomum e admirável, de compositor brasileiro, deveria ser reapresentado em outras cidades e teatros, para que mais gente possa descobri-la.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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