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Ponto de fuga
O filósofo turista
Os esboços de algumas observações e idéias de Sartre brotam com rapidez, escritos às vezes em papéis encontrados no acaso de restaurantes e hotéis
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
S
alvo erro, até hoje não foi
traduzido no Brasil "La
Reine Albermale ou Le
Dernier Turiste" (A Rainha Albermale ou o Último Turista),
de Sartre, livro projetado, incompleto, póstumo, editado
em 1991 (Gallimard). O tema é
a Itália, por quem Sartre era
apaixonado. Ele reúne fragmentos, anotações mais ou menos desenvolvidas, páginas de
diário, um ou outro artigo publicado em revista, frutos de
uma viagem feita em 1951. Os
esboços de algumas observações e idéias brotam com rapidez, escritos às vezes em papéis
encontrados no acaso de restaurantes e hotéis. Transmitem o calor vibrante do achado
que acabou de aflorar.
"A Rainha Albermale" fala de
Nápoles, de Capri, de Roma, de
Veneza sobretudo, da pintura
veneziana: Carpaccio, Ticiano,
Tintoretto. O autor assume o
papel do turista, ou seja, do estrangeiro buscando sensações
novas, exóticas.
Mas Sartre não cai na facilidade de se atardar em seus próprios estados de alma. Procede
pela disciplina da "écfrase"; objetiva seu escrito graças à descrição do que percebe. As frases se impõem com uma força
motora interna, uma engendrando na outra: o leitor é levado na espessura da palavra.
Quando evoca a geografia de
Capri, faz lembrar o início de
"Os Sertões", de Euclydes da
Cunha, menos o vocabulário
raro e precioso.
Citação, Capri
"Ao mesmo tempo, tudo se
organiza: vejo uma águia que
me dá as costas; a primeira bossa, a que está mais próxima da
villa Jovis, a leste, é o esboço de
uma asa; a segunda é sua cabeça, voltada para o levante; a outra asa, já desdobrada, em escorço por seu movimento, é o
triângulo agudo que aponta sobre Capri. Vejo, é dizer muito.
Há uma presença de águia, embaralhada, quase ilegível e, no
entanto, tenaz nessas formas
moles. Isso basta para inverter
o movimento ou, antes, a inversão do movimento é a águia."
Mineral
Sartre opera por meio de
uma forte tradição própria à literatura francesa: os procedimentos descritivos que materializam palavras e metáforas,
dando-lhes um peso concreto.
Como em Zola, como em
Proust, como no "nouveau roman", a descrição não envia a
alguma coisa que está fora dela,
nem dá, de fato, liberdade à
imaginação.
Amarra o leitor na substância da escrita. Transforma a palavra em coisa, fazendo com
que a coisa se torne palavra. Essa "écfrase" rigorosa vai secretando modos reflexivos ou escorre, espontânea na rapidez
da anotação, para um sobre-real, para um surreal que brota
de dois fatos simples: estar ali e
sentir de um certo modo.
Citação, Roma
"Roma está deserta; entre os
muros de suas sentinas veneráveis, a noite floresce, é um bosque molhado com pétalas por
todos os lados; buquês de flores
murchas flutuam e me acariciam à deriva, é a chuva; caminho sobre um espelho negro
em que tremem reflexos vermelhos e verdes. Um bonde vazio numa praça vazia entre
duas igrejas vazias e dois palácios apagados: cheguei."
Parte
As últimas páginas de "A Rainha Albermale" -"Veneza da
Minha Janela"- foram incorporadas em "O Seqüestrado de
Veneza", livro editado pela Cosacnaify (2005).
"O Seqüestrado de Veneza",
propriamente dito, é um ensaio
posterior de Sartre sobre o pintor Tintoretto. Algumas das
idéias que expõe ali se encontram já, em germe, muito vivas,
menos sistemáticas, em "A Rainha Albermale".
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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