São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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Ponto de fuga

O filósofo turista

Os esboços de algumas observações e idéias de Sartre brotam com rapidez, escritos às vezes em papéis encontrados no acaso de restaurantes e hotéis

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

S alvo erro, até hoje não foi traduzido no Brasil "La Reine Albermale ou Le Dernier Turiste" (A Rainha Albermale ou o Último Turista), de Sartre, livro projetado, incompleto, póstumo, editado em 1991 (Gallimard). O tema é a Itália, por quem Sartre era apaixonado. Ele reúne fragmentos, anotações mais ou menos desenvolvidas, páginas de diário, um ou outro artigo publicado em revista, frutos de uma viagem feita em 1951. Os esboços de algumas observações e idéias brotam com rapidez, escritos às vezes em papéis encontrados no acaso de restaurantes e hotéis. Transmitem o calor vibrante do achado que acabou de aflorar.
"A Rainha Albermale" fala de Nápoles, de Capri, de Roma, de Veneza sobretudo, da pintura veneziana: Carpaccio, Ticiano, Tintoretto. O autor assume o papel do turista, ou seja, do estrangeiro buscando sensações novas, exóticas.
Mas Sartre não cai na facilidade de se atardar em seus próprios estados de alma. Procede pela disciplina da "écfrase"; objetiva seu escrito graças à descrição do que percebe. As frases se impõem com uma força motora interna, uma engendrando na outra: o leitor é levado na espessura da palavra.
Quando evoca a geografia de Capri, faz lembrar o início de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, menos o vocabulário raro e precioso.

Citação, Capri
"Ao mesmo tempo, tudo se organiza: vejo uma águia que me dá as costas; a primeira bossa, a que está mais próxima da villa Jovis, a leste, é o esboço de uma asa; a segunda é sua cabeça, voltada para o levante; a outra asa, já desdobrada, em escorço por seu movimento, é o triângulo agudo que aponta sobre Capri. Vejo, é dizer muito. Há uma presença de águia, embaralhada, quase ilegível e, no entanto, tenaz nessas formas moles. Isso basta para inverter o movimento ou, antes, a inversão do movimento é a águia."

Mineral
Sartre opera por meio de uma forte tradição própria à literatura francesa: os procedimentos descritivos que materializam palavras e metáforas, dando-lhes um peso concreto. Como em Zola, como em Proust, como no "nouveau roman", a descrição não envia a alguma coisa que está fora dela, nem dá, de fato, liberdade à imaginação. Amarra o leitor na substância da escrita. Transforma a palavra em coisa, fazendo com que a coisa se torne palavra. Essa "écfrase" rigorosa vai secretando modos reflexivos ou escorre, espontânea na rapidez da anotação, para um sobre-real, para um surreal que brota de dois fatos simples: estar ali e sentir de um certo modo.

Citação, Roma
"Roma está deserta; entre os muros de suas sentinas veneráveis, a noite floresce, é um bosque molhado com pétalas por todos os lados; buquês de flores murchas flutuam e me acariciam à deriva, é a chuva; caminho sobre um espelho negro em que tremem reflexos vermelhos e verdes. Um bonde vazio numa praça vazia entre duas igrejas vazias e dois palácios apagados: cheguei."

Parte
As últimas páginas de "A Rainha Albermale" -"Veneza da Minha Janela"- foram incorporadas em "O Seqüestrado de Veneza", livro editado pela Cosacnaify (2005). "O Seqüestrado de Veneza", propriamente dito, é um ensaio posterior de Sartre sobre o pintor Tintoretto. Algumas das idéias que expõe ali se encontram já, em germe, muito vivas, menos sistemáticas, em "A Rainha Albermale".


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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