São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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Pretensão das obras contemporâneas de associarem arte e verdade não é confiável e põe em xeque a abertura para o novo

O imbróglio do sentido

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não há como negar que, principalmente a partir dos anos 1970, apareceu uma nova forma de arte, tão discrepante dos padrões anteriores que muitos passaram a falar da morte da arte. Aliás, seguindo a moda, pois muito se tem falado no fim da história, do sujeito e outras coisas mais. Parece-me óbvio que essa conversa do colapso exprime, em negativo, a idéia do fim das revoluções.
Mas basta visitar uma galeria de arte contemporânea para que não se possa negar que já foram ultrapassadas de muito todas as fronteiras que circunscreviam os tradicionais domínios das artes.
À primeira vista, tudo pode ser transformado num objeto de arte, de uma pá a uma caixa de Brillo, a tal ponto que muitos afirmam que qualquer coisa, e até mesmo qualquer ato, vem a ser objeto de arte porque está num lugar onde tais objetos costumam ser encontrados por um público que está disposto a aceitá-lo como um trabalho artístico.
Se tal objeto é chamado de arte ou recebe outras denominações, pouco importa; interessa que as obras e as pessoas circulam por espaços onde a velha arte até pouco dominava.
A essa imprecisão das fronteiras corresponde uma fantástica produção de obras dessa espécie. Nunca se fez tanta "arte" como atualmente, mercado e produção de bons trabalhos não se mostraram incompatíveis -basta levar em conta o cinema; mas perdura a idéia de que estamos atravessando um abismo a nos levar para outro mundo. Seria verdade que todas essas convulsões seriam premissa de uma nova era?
Uma das coisas que mais me intrigam na arte contemporânea é a possibilidade de estarem juntos tanto a presença de um objeto desprovido de qualquer traço representativo como um amontoado de objetos cujo elo é uma idéia que se desvela parcial e truncadamente pelo espaço: uma caixa de Brillo ou uma instalação.
Tudo isso é muitas vezes interpretado como um processo de tornar a arte mais conceitual, por certo pelos caminhos mais diversos.
No horizonte dessa ideologia da apoteose ou da catástrofe reside a boa e cristã interpretação hegeliana da história, entendida como as vicissitudes do vir a ser da razão e do espírito absoluto. A referência à "Fenomenologia do Espírito" é quase sempre obrigatória: basta ler os escritos de Arthur Danto ou de Belting, além da enxurrada dos autores parisienses, para que se perceba que a passagem da arte moderna para a arte contemporânea (ou para o fim da arte, como quiserem) vem a ser interpretada como se se tratasse de um "Bildungsroman" [romance de formação], narrativa em que o herói passa por uma série de estágios a fim de chegar à consciência de si e ao reconhecimento de que a temporalidade de suas façanhas foi uma peça que lhe pregou o absoluto.

Vexame
A extrema novidade da arte contemporânea reproduziria esse vexame.
A arte moderna, basicamente aquela que foi feita depois do Renascimento, teria seguido o caminho da representação -no caso das artes visuais, principalmente aquele da narrativa- até que, enriquecida por suas próprias experiências, se tornou capaz de refletir sobre seus próprios procedimentos, por conseguinte de se abrir para a diversidade, quando então o artista, se ainda estivesse sob o tacão do tempo, poderia ser pintor pela manhã, escultor pela tarde e remendeiro de tapetes durante a noite.
Em contrapartida, a arte contemporânea se caracterizaria pela diversidade de pontos de vista, pela recusa daqueles manifestos que intolerantemente apontavam para um único caminho da produção artística.
Essa explicação reside num pressuposto muito questionável: a passagem da arte moderna para a arte contemporânea se faz graças a uma tomada de consciência que substitui a narrativa, a representação, pela exploração e estudo dos processos narrativos. A nova arte basicamente consistiria, pois, em fazer narrar ou fazer ver os trabalhos que costumavam produzir as obras anteriores.

Ingres e arte egípcia

Por isso, aquela narrativa que exprimia as vicissitudes dos caminhos da razão agora se suprime para se mostrar jogo inventivo com os objetos do mundo.
Daí uma certa conivência do romancista, do poeta, do artista plástico com os doutores das universidades. A arte nunca teria cortado o cordão umbilical com a verdade, a despeito de todas as tentativas da última de censurar a primeira.
Desconfio desse vínculo, desse imbróglio entre arte e verdade do mundo. Tomemos alguns exemplos muito claros.
Nada mais narrativo do que a arte egípcia, mas seus maiores momentos não são aqueles em que o esquema da narração se parte para deixar transparecer a vida cotidiana nos seus diversos sentidos?
No final das contas, por mais belo que seja o estilo de Tucídides, não é do lado de Sófocles e Ésquilo que mora a beleza? Deixemos de lado os grandes exemplos para refletir sobre outro muito menos rico.
Vista no seu conjunto, a obra de Ingres nos mostra uma diversidade atroz: seus grandes quadros ideológicos e mitológicos são insuportáveis assim como são maravilhosos seus nus e seus retratos da nova nobreza bonapartista.
Daí a pergunta que gostaria de deixar em aberto: mais do que a expressão de alguma verdade oculta, o percurso do ser que se faz verdade absoluta, a arte não seria uma inventiva implosão de novos sentidos que, se lida com momentos do mundo, é para explorar novas possibilidades de ainda dizer o que não podemos ser?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores".

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