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Pretensão
das obras contemporâneas de associarem arte e verdade não é confiável
e põe em xeque
a abertura
para o novo
O imbróglio do sentido
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não há como negar
que, principalmente a partir dos
anos 1970, apareceu uma nova forma de arte, tão discrepante dos
padrões anteriores que muitos
passaram a falar da morte da
arte. Aliás, seguindo a moda,
pois muito se tem falado no fim
da história, do sujeito e outras
coisas mais. Parece-me óbvio
que essa conversa do colapso
exprime, em negativo, a idéia
do fim das revoluções.
Mas basta visitar uma galeria
de arte contemporânea para
que não se possa negar que já
foram ultrapassadas de muito
todas as fronteiras que circunscreviam os tradicionais domínios das artes.
À primeira vista, tudo pode
ser transformado num objeto
de arte, de uma pá a uma caixa
de Brillo, a tal ponto que muitos afirmam que qualquer coisa, e até mesmo qualquer ato,
vem a ser objeto de arte porque
está num lugar onde tais objetos costumam ser encontrados
por um público que está disposto a aceitá-lo como um trabalho artístico.
Se tal objeto é chamado de
arte ou recebe outras denominações, pouco importa; interessa que as obras e as pessoas
circulam por espaços onde a
velha arte até pouco dominava.
A essa imprecisão das fronteiras corresponde uma fantástica produção de obras dessa
espécie. Nunca se fez tanta "arte" como atualmente, mercado
e produção de bons trabalhos
não se mostraram incompatíveis -basta levar em conta o cinema; mas perdura a idéia de
que estamos atravessando um
abismo a nos levar para outro
mundo. Seria verdade que todas essas convulsões seriam
premissa de uma nova era?
Uma das coisas que mais me
intrigam na arte contemporânea é a possibilidade de estarem juntos tanto a presença de
um objeto desprovido de qualquer traço representativo como um amontoado de objetos
cujo elo é uma idéia que se desvela parcial e truncadamente
pelo espaço: uma caixa de Brillo ou uma instalação.
Tudo isso é muitas vezes interpretado como um processo
de tornar a arte mais conceitual, por certo pelos caminhos
mais diversos.
No horizonte dessa ideologia
da apoteose ou da catástrofe
reside a boa e cristã interpretação hegeliana da história, entendida como as vicissitudes do
vir a ser da razão e do espírito
absoluto. A referência à "Fenomenologia do Espírito" é quase
sempre obrigatória: basta ler os
escritos de Arthur Danto ou de
Belting, além da enxurrada dos
autores parisienses, para que
se perceba que a passagem da
arte moderna para a arte contemporânea (ou para o fim da
arte, como quiserem) vem a ser
interpretada como se se tratasse de um "Bildungsroman" [romance de formação], narrativa
em que o herói passa por uma
série de estágios a fim de chegar à consciência de si e ao reconhecimento de que a temporalidade de suas façanhas foi
uma peça que lhe pregou o absoluto.
Vexame
A extrema novidade da arte
contemporânea reproduziria
esse vexame.
A arte moderna, basicamente
aquela que foi feita depois do
Renascimento, teria seguido o
caminho da representação -no
caso das artes visuais, principalmente aquele da narrativa-
até que, enriquecida por suas
próprias experiências, se tornou capaz de refletir sobre seus
próprios procedimentos, por
conseguinte de se abrir para a
diversidade, quando então o artista, se ainda estivesse sob o tacão do tempo, poderia ser pintor pela manhã, escultor pela
tarde e remendeiro de tapetes
durante a noite.
Em contrapartida, a arte contemporânea se caracterizaria
pela diversidade de pontos de
vista, pela recusa daqueles manifestos que intolerantemente
apontavam para um único caminho da produção artística.
Essa explicação reside num
pressuposto muito questionável: a passagem da arte moderna para a arte contemporânea
se faz graças a uma tomada de
consciência que substitui a narrativa, a representação, pela exploração e estudo dos processos narrativos. A nova arte basicamente consistiria, pois, em
fazer narrar ou fazer ver os trabalhos que costumavam produzir as obras anteriores.
Ingres e arte egípcia
Por isso, aquela narrativa que
exprimia as vicissitudes dos caminhos da razão agora se suprime para se mostrar jogo inventivo com os objetos do mundo.
Daí uma certa conivência do
romancista, do poeta, do artista
plástico com os doutores das
universidades. A arte nunca teria cortado o cordão umbilical
com a verdade, a despeito de todas as tentativas da última de
censurar a primeira.
Desconfio desse vínculo, desse imbróglio entre arte e verdade do mundo. Tomemos alguns
exemplos muito claros.
Nada mais narrativo do que a
arte egípcia, mas seus maiores
momentos não são aqueles em
que o esquema da narração se
parte para deixar transparecer
a vida cotidiana nos seus diversos sentidos?
No final das contas, por mais
belo que seja o estilo de Tucídides, não é do lado de Sófocles e
Ésquilo que mora a beleza?
Deixemos de lado os grandes
exemplos para refletir sobre
outro muito menos rico.
Vista no seu conjunto, a obra
de Ingres nos mostra uma diversidade atroz: seus grandes
quadros ideológicos e mitológicos são insuportáveis assim como são maravilhosos seus nus
e seus retratos da nova nobreza
bonapartista.
Daí a pergunta que gostaria
de deixar em aberto: mais do
que a expressão de alguma verdade oculta, o percurso do ser
que se faz verdade absoluta, a
arte não seria uma inventiva
implosão de novos sentidos
que, se lida com momentos do
mundo, é para explorar novas
possibilidades de ainda dizer o
que não podemos ser?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores".
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