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Heroína de capa e espada
Publicado
em 1625, "Infortúnios Trágicos da Constante Florinda" ajudou
a criar a tradição das donzelas guerreiras
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Publicação surpreendente por sua raridade e altíssima qualidade: um ancestral
do romance, datado
de 1625. A contrapelo da prosa
de rápida confecção e mais rápido consumo ainda, fadada à
obsolescência, não é a toda hora que algo assim é posto à disposição do leitor.
Como tudo o que lemos hoje
utiliza a prosa, que corresponde aos tempos da sociedade
burguesa, mal imaginamos
quantos séculos e até milênios
a prosa levou para impor-se na
ficção. Prosa era para coisa séria, historiografia, sermão, carta, filosofia, e não para divertimento. Paralelamente, a ficção
séria se expressava em versos, e
não só a lírica, mas também as
variantes do épico e as peças de
teatro.
O romance -a forma hegemônica da atualidade- não
existia. Só encontramos um
pouco de ficção em prosa nas
fases de decadência de sociedades aristocráticas, como a helenística e a romana. Os exemplos mais longevos e ainda
atualmente reeditados são "O
Asno de Ouro", de Apuleio, e o
"Satyricon", de Petrônio.
A ficção em prosa só vai ressurgir nas línguas vernáculas,
perto do final da Idade Média.
Popularização do "romance
cortês" em versos, nasce a novela de cavalaria, veiculando as
sagas dos povos europeus. Entre as mais famosas e duradouras contam-se as da demanda
do Santo Graal, com o rei Artur
e a Távola Redonda, e as de
Carlos Magno.
Já no limiar do barroco, o
Renascimento traz um recrudescimento da epopéia heróico-galante, em prosa, derivada
da novela de cavalaria.
Diferindo desta e de sua ênfase no coletivo e na busca espiritual, mas expansão dos protagonistas de seus episódios,
nessas epopéias tardias há um
herói individualizado e um entrecho sentimental. Podem
trazer, ao invés de um herói,
uma heroína, em muitos casos
vestida de homem.
Essa figura literária, por analogia com as masculinas, é chamada em inglês de "errant
damzel" ou "lady knight", aproximadamente "donzela errante" e "senhora cavaleiro" -para dar uma idéia das dificuldades de nomeá-la.
Entre elas, teremos eventuais personagens de Shakespeare, como a Rosalind de "Como Lhes Aprouver" ("As You
Like It"). E chegará longe, romantismo adentro, até a única
ópera composta por Beethoven, "Fidelio". Marfisa, Bradamante, Britomart, Clorinda
-são essas as mais renomadas
e mais divulgadas.
Entre elas situa-se Florinda,
concebida em língua portuguesa por frei Gaspar Pires de Rebelo. Como qualquer cavaleiro
andante, ela empunha as rédeas de seu corcel e sai "à aventura". Entretanto, donzela em
armas que às vezes precisa dar
batalha, se veste de homem,
mas está mais empenhada em
manter a fidelidade a seu amado, que supõe morto.
Misoginia
As peripécias revelam-se folhetinescas, inclusive com outras camuflagens de identidade, de modo que as reviravoltas
da trama beiram o improvável.
Mas o autor é paradoxal, pois,
criando tão admirável representante do sexo feminino, se
entrega a todo momento à misoginia: Florinda é a seu ver
uma exceção à generalidade de
seu malfadado sexo.
Qual é a demanda de Florinda? Equipara-se à demanda do
Graal, uma busca espiritual e
ética. Encontrar Arnaldo, a
quem dera sua palavra de honra e que supunha morto desde o
início, afinal se concretiza, porém praticamente como um
brinde a sua constância.
O reconhecimento, de rigor
nesse tipo de literatura, vai descobrir Arnaldo no Cavaleiro Só,
vencedor de um torneio em que
a mão de Florinda constitui o
troféu em disputa.
Não há termos de louvor, por
mais calorosos que sejam, que
possam fazer jus ao erudito trabalho de Adma Muhana, da
USP, especialista em filologia
portuguesa. A transposição do
texto respeita em medida equilibrada a bela dicção seiscentista, procurando adaptá-la ao leitor de hoje. Por sua vez, o aparato crítico cerca o leitor de todo o conforto, dando-lhe instrumentos para reforçar o prazer de uma leitura tão original,
tão diferente da monotonia
com que o mercado nos soterra.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora titular de literatura na USP e autora de "No Calor
da Hora" (Ática) e "Guimarães Rosa" (Publifolha). É organizadora de "Afonso Arinos - Contos" (ed. Martins Fontes, no prelo).
INFORTÚNIOS TRÁGICOS
DA CONSTANTE FLORINDA
Autor: Gaspar Pires de Rebelo
Organização: Adma Muhana
Editora: Globo
Quanto: R$ 45 (400 págs.)
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