São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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Heroína de capa e espada

Publicado em 1625, "Infortúnios Trágicos da Constante Florinda" ajudou a criar a tradição das donzelas guerreiras

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Publicação surpreendente por sua raridade e altíssima qualidade: um ancestral do romance, datado de 1625. A contrapelo da prosa de rápida confecção e mais rápido consumo ainda, fadada à obsolescência, não é a toda hora que algo assim é posto à disposição do leitor. Como tudo o que lemos hoje utiliza a prosa, que corresponde aos tempos da sociedade burguesa, mal imaginamos quantos séculos e até milênios a prosa levou para impor-se na ficção. Prosa era para coisa séria, historiografia, sermão, carta, filosofia, e não para divertimento. Paralelamente, a ficção séria se expressava em versos, e não só a lírica, mas também as variantes do épico e as peças de teatro.
O romance -a forma hegemônica da atualidade- não existia. Só encontramos um pouco de ficção em prosa nas fases de decadência de sociedades aristocráticas, como a helenística e a romana. Os exemplos mais longevos e ainda atualmente reeditados são "O Asno de Ouro", de Apuleio, e o "Satyricon", de Petrônio.
A ficção em prosa só vai ressurgir nas línguas vernáculas, perto do final da Idade Média. Popularização do "romance cortês" em versos, nasce a novela de cavalaria, veiculando as sagas dos povos europeus. Entre as mais famosas e duradouras contam-se as da demanda do Santo Graal, com o rei Artur e a Távola Redonda, e as de Carlos Magno.
Já no limiar do barroco, o Renascimento traz um recrudescimento da epopéia heróico-galante, em prosa, derivada da novela de cavalaria. Diferindo desta e de sua ênfase no coletivo e na busca espiritual, mas expansão dos protagonistas de seus episódios, nessas epopéias tardias há um herói individualizado e um entrecho sentimental. Podem trazer, ao invés de um herói, uma heroína, em muitos casos vestida de homem.
Essa figura literária, por analogia com as masculinas, é chamada em inglês de "errant damzel" ou "lady knight", aproximadamente "donzela errante" e "senhora cavaleiro" -para dar uma idéia das dificuldades de nomeá-la.
Entre elas, teremos eventuais personagens de Shakespeare, como a Rosalind de "Como Lhes Aprouver" ("As You Like It"). E chegará longe, romantismo adentro, até a única ópera composta por Beethoven, "Fidelio". Marfisa, Bradamante, Britomart, Clorinda -são essas as mais renomadas e mais divulgadas.
Entre elas situa-se Florinda, concebida em língua portuguesa por frei Gaspar Pires de Rebelo. Como qualquer cavaleiro andante, ela empunha as rédeas de seu corcel e sai "à aventura". Entretanto, donzela em armas que às vezes precisa dar batalha, se veste de homem, mas está mais empenhada em manter a fidelidade a seu amado, que supõe morto.

Misoginia
As peripécias revelam-se folhetinescas, inclusive com outras camuflagens de identidade, de modo que as reviravoltas da trama beiram o improvável. Mas o autor é paradoxal, pois, criando tão admirável representante do sexo feminino, se entrega a todo momento à misoginia: Florinda é a seu ver uma exceção à generalidade de seu malfadado sexo.
Qual é a demanda de Florinda? Equipara-se à demanda do Graal, uma busca espiritual e ética. Encontrar Arnaldo, a quem dera sua palavra de honra e que supunha morto desde o início, afinal se concretiza, porém praticamente como um brinde a sua constância.
O reconhecimento, de rigor nesse tipo de literatura, vai descobrir Arnaldo no Cavaleiro Só, vencedor de um torneio em que a mão de Florinda constitui o troféu em disputa.
Não há termos de louvor, por mais calorosos que sejam, que possam fazer jus ao erudito trabalho de Adma Muhana, da USP, especialista em filologia portuguesa. A transposição do texto respeita em medida equilibrada a bela dicção seiscentista, procurando adaptá-la ao leitor de hoje. Por sua vez, o aparato crítico cerca o leitor de todo o conforto, dando-lhe instrumentos para reforçar o prazer de uma leitura tão original, tão diferente da monotonia com que o mercado nos soterra.


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora titular de literatura na USP e autora de "No Calor da Hora" (Ática) e "Guimarães Rosa" (Publifolha). É organizadora de "Afonso Arinos - Contos" (ed. Martins Fontes, no prelo).

INFORTÚNIOS TRÁGICOS DA CONSTANTE FLORINDA
Autor:
Gaspar Pires de Rebelo
Organização: Adma Muhana
Editora: Globo
Quanto: R$ 45 (400 págs.)


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