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Ponto de Fuga
Misteriosos ímpetos
A mostra "Virada Russa" é o que deveria ser toda exposição de arte: um conjunto estimulante e conexo, baseado na compreensão das obras, sem bizarrices de curadores
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Tanta gente é capaz de desatinos por causa de um
quadro. Há roubos espetaculares e colecionadores
compulsivos, há maníacos querendo a obra-prima para si, só
para si, para mais ninguém: um
deles determinou em testamento que um Van Gogh de
sua propriedade fosse enterrado com ele. Ao que parece, os
herdeiros, sábios, deram um
jeito de desobedecer à cláusula:
tanto melhor.
Quem não se interessa por
obras de arte não entende bem
esses comportamentos estranhos. É que delas, das obras,
emanam forças prodigiosas.
Não é possível quantificar essas energias, mas basta nos expormos a elas, sem reticências,
para que comecem a agir. Isso
pode parecer conversa fiada,
mas é o que comprova a extraordinária mostra "Virada
Russa", que esteve em Brasília,
deve vir a São Paulo [em setembro] e está agora no CCBB
do Rio de Janeiro.
As obras vieram do Museu
Estatal Russo de São Petersburgo, 123 ao todo, e foram escolhidas a dedo. Grandes nomes, como Kandinsky ou Chagall, estão representados de
modo soberbo. O conjunto fascina: nada de uma pletora descontrolada, mas o encadeamento num fluxo coerente e
expressivo.
É o que deveria ser toda exposição de arte: um conjunto
estimulante e conexo, baseado
na compreensão inteligente
das obras, sem bizarrices de curadores. A montagem e a iluminação evidenciam cada obra,
pondo-as em contato umas
com as outras.
É impossível ficar indiferente diante de tão formidável
ebulição criadora. Ali se compreende bem porque a arte é
capaz de desencadear paixões
alucinadas.
Fôlego
O século 19 na cultura russa
foi surpreendente pelas cruciais obras literárias e musicais
que produziu. As artes plásticas, porém, permaneceram
modestas.
A intensa renovação que
ocorre desde o início do século
passado nasce da crença na modernidade, artística e social,
nas suas capacidades transformadoras. Além de alguma coisa
que não se explica: um sopro
coletivo de gênio.
Foco
Os estudos sobre o período
recoberto pela mostra do
CCBB costumam recortar fases, movimentos, grupos. Separam suprematismo e construtivismo, analisam vínculos com
futurismo, "fauves", simbolismo, expressionismo, primitivismo.
No entanto, por mais diferentes que sejam as obras, elas
parecem brotar de um mesmo
solo fecundo. São, todas, habitadas por ímpetos enérgicos.
Mesmo as do final, sob o stalinismo, nos anos de 1930, vibram, intensas.
Um pintor como Samokhválov, em telas cujos títulos, por si
só, são arrepiantes -"O Komsomol Militarizado" (1932/33)
e "Operária de Metrô com Furadeira"-, é capaz, graças à
enérgica concentração cromática e à abreviação das formas,
de expressar um vigor em nada
artificial.
Viço
Os quadros suprematistas de
Malevitch, presentes na exposição "Virada Russa", agregam
formas ortogonais de cores fortes, regidas por geometria estrita. Mondrian as empregava
também.
Basta, no entanto, comparar
um e outro para sentir a diferença entre o caráter contemplativo, imóvel, parmenídico,
de Mondrian, e a pulsação veemente de Malevitch.
Uma sala admirável reúne o
célebre tríptico "Quadrado Negro, Círculo Negro e Cruz Negra", que Malevitch pintou em
1923. Ali também não é uma
geometria que, tirânica, leva as
formas para as abstrações inefáveis, mas que se concretiza,
poderosa, graças à intensidade
das proporções e à vitalidade da
matéria na qual é vazada. O
grande círculo negro, que se
desloca para o canto superior
direito da tela, arrebata o olhar
e destrói qualquer estatismo
transcendente.
jorgecoli@uol.com.br
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