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+(s)ociedade
O urbanista das multidões
Marshall Berman comenta seu novo livro, que mostra a Times Square como modelo de convivência na cidade
O Rio
tem muito
em comum
com Nova York;
dá para viver
lá sem carro
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Mark Lennihan - 1º.jan.1999/ Associated Press
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A Times Square, em Nova York, lotada durante comemoração de
Ano Novo
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Entra Marx. Entra
Freud. Entram milhares de transeuntes
vindos de metrô e começa a função: anedotas sobre a cidade. Esse é o roteiro de "Um Século em Nova
York - Espetáculos em Times
Square", de Marshall Berman
(Cia. das Letras, trad. Rosaura
Eichenberg, 376 págs., R$ 55).
Conhecido por sua análise da
ideia de modernidade, em escritos como "Tudo o Que é Sólido Desmancha no Ar", Berman apresenta a praça como
exemplo bem-sucedido de convivência moderna. O urbanismo explica: a Times Square não
seria o que é se não fosse acessível -é um importante destino do metrô desde 1905- e
cheia de diversidade.
Em entrevista à Folha, de
sua residência, o professor da
Universidade da Cidade de Nova York diz que a ideia de espalhar uma cidade ao longo de rodovias, oposta ao que a Times
Square representa, está dando
lugar a um urbanismo melhor.
"O preço do petróleo, a pressão ambiental e a consciência
aumentando nos levam ao
transporte em massa e à reconcentração de energia", diz Berman, que elogiou a estrutura
urbana de Curitiba e do Rio de
Janeiro -nesta cidade, ele fará
uma palestra em setembro.
FOLHA - Ainda acha que Brasília é
um mau exemplo de modernidade?
MARSHALL BERMAN - Com certeza. Quando ouvi falar pela primeira vez da cidade, pareceu-me que havia grande coisa lá.
Mas os moradores viram que
era um desastre levar a vida em
uma cidade cujos segmentos
não interagem.
Se, ao sair do trabalho, você
quisesse se reunir com alguém
para tomar um café, precisaria
tomar um ônibus para outra
parte da cidade. Pareceu-me
uma coisa perversa, pois, na
maioria das vezes, as pessoas
não acham que vale a pena.
Brasília é construída de modo a evitar que as pessoas se encontrem. Perde-se muito do excitante, do especial da vida moderna. Ironicamente, a América Latina começa com algo como o modelo espanhol de urbanismo, as cidades construídas
ao redor da "plaza mayor".
Em Brasília, Niemeyer [que
organizou o concurso para escolha do Plano Piloto, vencido
por Lucio Costa] não queria funis aonde todos confluíssem. É
importante ver o que isso tem
de antidemocrático.
FOLHA - Projetos "extremos", como o de Brasília, são uma coisa do
século 20 ou ainda há demanda?
BERMAN - Será que Brasília era
apropriada mesmo para os
tempos de ontem? Só se você
aceitar o modelo de Luís 14 em
Versalhes, de o governo manter
distância do povo. Luís 14 era
um dos heróis de Le Corbusier.
Para Niemeyer, seguidor de Le
Corbusier e de Stálin, esse estilo de autocracia fazia sentido.
Quando as pessoas exigem democracia (e cada vez mais povos fazem isso no mundo), querem o governo a seu alcance.
FOLHA - A Times Square é o melhor
exemplo de modernidade?
BERMAN - Pelo menos um
exemplo muito bom. Há outros, como a Picadilly, em Londres, e o que costumava ser a
Potsdamer Platz, em Berlim
-exceto porque esta foi destruída por bombardeios [na Segunda Guerra Mundial] e o que
se construiu depois é muito
mais parecido com Brasília.
Um dos temas centrais das
cidades do século 19 era a multidão. Uma forma de planejamento urbano e de teoria social
foi tentar "descongestionar" as
cidades ou, em vez de cidades,
investir em subúrbios. Dissolver a multidão significa de certa
forma separar as pessoas. Juntas, elas têm potencial de ação e
de serem algo diferente do que
eram; uma forma de controle é
espalhar as pessoas.
Poderíamos dizer que Brasília é a cidade de ontem, enquanto Curitiba [por seu sistema de transporte público] é a
cidade de amanhã.
Uma das coisas que amo na
Times Square é que se trata de
um espaço onde todos colidem.
É uma das melhores coisas que
podemos ter na modernidade
-alguns dos problemas crônicos da modernidade são a automatização, a solidão.
FOLHA - Em São Paulo, Rio e Brasília, as pessoas compram um carro
assim que podem para deixar de depender do transporte público. Em
Manhattan, as pessoas caminham
ou tomam o metrô. Como isso nos
afeta culturalmente?
BERMAN - Há uma tremenda
pressão para se evitar a multidão, a ponto de fazer as cidades
menos democráticas. Na Times
Square, as pessoas podem
"conferir" umas as outras.
Já nas cidades do "cinturão
do sol" é assim: o centro é vazio
ou praticamente não existe.
Houston [Texas] tem uma demografia bem complicada, nada diferente de Nova York, só
que em Nova York ela está na
rua, você a vê na rua. Em Houston, as vizinhanças são segregadas, só vemos quão multicultural é a cidade ao vermos as pessoas em seus carros na rodovia.
Pensamos "que fascinante!
Filipinos!" ou "Olha, coreanos".
Mas não há lugar onde essas
pessoas se reúnam. Alguns
pensam que isso é um triunfo
do planejamento urbano. Estive lá nos anos 90 e vi anúncios
de novos edifícios de escritórios que diziam: "Você não precisará mais pôr os pés em
Houston". Iria do seu subúrbio
para uma rodovia, para uma garagem subterrânea, fazer compras num shopping.
FOLHA - Em São Paulo, os cartazes
gigantes foram banidos como poluição visual, mas houve quem dissesse que perdemos uma forma de arte. Qual é sua opinião?
BERMAN - Não vi isso, mas sinto
que seja um desastre. Os cartazes gigantes e a publicidade do
século 20 criaram uma atmosfera de "pop art" que, em muitas partes do mundo, é magnífica. Pessoas vão à Times Square
só para ver luzes. Banir isso parece uma reviravolta: as ideologias modernas vêm da cidade e
se voltam contra ela.
Entendo a ideia de ter um zoneamento para os cartazes gigantes, diferentemente de bani-los completamente, o que é
um ferimento autoinfligido
-afeta uma razão para querermos estar na cidade. Mas não
conheço muito sua cidade.
FOLHA - É uma cidade frequentemente comparada a Nova York...
BERMAN - O Rio tem muito em
comum com Nova York, no
sentido de que o sistema de
ruas é decifrável, dá para viver
lá sem um carro. Nesse sentido,
Nova York também é mais europeia que qualquer outra cidade norte-americana.
FOLHA - Como chamaria a oposição entre a Manhattan "romântica"
do livro e os subúrbios compartimentados dos EUA? Paradoxo, contradição ou complementaridade?
BERMAN - Acho que são coisas
complementares, sim, mas isso
não foi adequadamente compreendido até os anos 1970, numa época em que Nova York estava em dificuldades financeiras. Depois da Segunda Guerra
Mundial, as cidades dependiam
de dinheiro federal. Quando o
governo Nixon [1969-74] "puxou a tomada", foi um desastre
para Nova York.
As pessoas começaram a se
perguntar: "o que esta cidade
tem a oferecer?" Uma das coisas era que oferecia espaço para
todos -a Times Square é o arquétipo do "espaço para todos".
Um dos primeiros grandes
sucessos da gravadora Motown
foi "Dancing in the Street"
[Dançando na Rua]. Fizeram
um vídeo meio primitivo, com
pessoas dançando no centro de
cidades americanas. Só que era
difícil achar centros -o sistema
federal de rodovias os havia
destruído. Nova York era notável por ter mantido seu centro
mais ou menos intacto.
FOLHA - E em que a Times Square é
diferente da própria Nova York?
BERMAN - É uma supercidade:
toma características que existem por toda a cidade e as concentra, mistura, criando um
enorme espetáculo.
Durante a crise fiscal, houve
anos de abuso contra Nova
York, a mídia contra ela. A cidade já era um centro de "showbiz", mas precisava de ajuda federal para manter a infraestrutura e os serviços públicos.
O clímax foi quando Gerald
Ford, o presidente que sucedeu
Nixon, disse que vetaria um
empréstimo porque o destino
da cidade não era do interesse
do povo norte-americano. Mas
as pessoas acabaram entendendo que as atrações de Nova
York não eram só interessantes, mas também economicamente vitais; que as luzes brilhantes traziam dinheiro.
FOLHA - A Times Square virou um
símbolo do triunfo do capitalismo?
BERMAN - Um símbolo de como
o capitalismo pode criar um espaço divertido e excitante, que
pode ser aproveitado mesmo
sem capital -milhares de pessoas todos os dias apenas pegam o metrô e vão até lá. Meus
pais faziam isso. As pessoas
apenas querem ir lá e se deixar
levar pelas luzes.
FOLHA - O que a crise econômica
ensina sobre o capitalismo moderno
e espetáculos caros como a Times
Square?
BERMAN - Não acho que a Times Square seja cara -usa
transporte público e a energia
usada lá não é nada comparada
ao que gastamos em nossos elaborados sistemas de computador. E não se destina aos super-ricos -eles não querem estar
com milhões de pessoas.
FOLHA - O sr. lista dois princípios: o
do "direito à cidade" e o de que "cidades são vulneráveis". O sr. se importa com a vida em comunidade...
BERMAN - Jane Jacobs [1916-2006], autora de "Morte e Vida
de Grandes Cidades", descreve
os acontecimentos da vida comum, como num romance realista. Foi muito influente, mas
só falou da vizinhança comum.
Não há lugares como a Times
Square -não que ela os condene. Tentei no livro algo como a
literatura dela, mostrar que esse espetáculo é interessante como as comunidades dela.
FOLHA - Então a solidão é seu pior
inimigo?
BERMAN - Não sei. Talvez o concreto seja meu pior inimigo.
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