São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

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"Elementos do Jornalismo" discute os perigos que ameaçam a atividade hoje, como a incorporação das empresas de mídia por grandes conglomerados

O negócio da notícia

Fernando Rodrigues
da Sucursal de Brasília

De tempos em tempos a mídia norte-americana reabre um debate sobre os rumos do jornalismo no país. Uma dessas ondas está em curso e guarda semelhança com o que se passa no Brasil. Concentração de jornais, revistas, emissoras de TV e rádio em grandes grupos econômicos, verdadeiros oligopólios. Desvio da função principal das empresas de mídia, com muitas delas se tornando apenas divisões de corporações que atuam ao mesmo tempo nas áreas de comunicação, tecnologia ou entretenimento. Banalização das grandes reportagens investigativas, muitas vezes fazendo os jornalistas reféns de procuradores -que, assim como no Brasil, se tornaram a grande fonte de notícias. Desmoralização do formato clássico de reportagens e noticiários de TV, agora imitados por programas cuja finalidade é outra. Todas essas situações estão listadas no livro "The Elements of Journalism" (Os Elementos do Jornalismo, editora Crown, EUA), escrito por Bill Kovach e Tom Rosenstiel, dois dos mais respeitados jornalistas norte-americanos. O livro foi lançado nos EUA em abril. É possível comprá-lo no Brasil apenas pela internet, em lojas virtuais como a Amazon (www.amazon.com), onde era oferecido por US$ 14 no início de agosto (mais as despesas de envio). O problema mais dramático apontado no livro é o confinamento das empresas jornalísticas em grandes conglomerados com atividades múltiplas. A America Online comprou a Time Warner. A Walt Disney Company comprou a ABC News. A General Electric comprou a NBC News. Os exemplos continuaram a surgir depois da impressão de "Elementos". Em 23 de julho, a Disney anunciou a compra de 100% da Fox Family Worldwide por US$ 3 bilhões. Mesmo rentáveis, algumas grandes e tradicionais empresas jornalísticas ficam perdidas dentro de megacorporações. Eis alguns dados apresentados no livro: "A ABC News representa menos de 2% dos lucros da Disney. A operação de notícias era responsável pela maior parte das receitas da Time, Inc., mas agora é só uma pequena fração dentro da operação da AOL (America Online). A NBC News responde por menos de 2% dos lucros da General Electric". Como as empresas jornalísticas vão fazer a cobertura de assuntos que envolvam companhias que pertencem a um mesmo conglomerado? Kovach e Rosenstiel recordam uma declaração cheia de sinceridade do CEO da Disney, Michael Eisner, logo depois da aquisição da ABC News. Eisner, segundo está registrado em "Elementos", declarou não considerar apropriado que a "Disney cubra a Disney". A sobreposição de empresas jornalísticas e não-jornalísticas na mesma corporação, segundo o livro, fez com que "os líderes jornalistas dos EUA se transformassem em homens de negócios". Metade dos entrevistados para o livro de Kovach e Rosenstiel disse gastar "pelo menos um terço do tempo de trabalho com assuntos de negócios da empresa do que com jornalismo". Apesar de apresentar um quadro pessimista para o futuro do jornalismo, o livro é sóbrio e fica longe da histeria usual que se observa em alguns tratados de "media criticism". Os dois autores fazem uma compilação de um extenso trabalho iniciado em 1997, quando 25 dos mais importantes jornalistas dos Estados Unidos se reuniram em Harvard para discutir o que tinha acontecido com a profissão nos anos entre Watergate (1974) e Whitewater (era Clinton). Watergate foi o escândalo -revelado pela mídia- que culminou com a queda do então presidente Richard Nixon. Whitewater foi um dos casos mais turbulentos do período Clinton. Depois da reunião no clube da Faculdade de Harvard (no Estado de Massachusetts, Costa Leste), os 25 jornalistas criaram um grupo chamado "Committee of Concerned Journalists" (em português, algo como Comitê dos Jornalistas Interessados ou Preocupados). Por que preocupados? A resposta está no livro. "Os jornalistas compareceram porque sentiram que alguma coisa estava seriamente errada com a sua profissão. (...) O público, por sua vez, cada vez mais passou a desconfiar de jornalistas ou até a odiá-los. Em 1999, apenas 21% dos norte-americanos achavam que a imprensa se preocupava com as pessoas. Esse percentual era de 41% em 1985. Apenas 58% respeitavam o papel de "cão de guarda" da imprensa, sendo que o percentual era de 67% em 1985. Menos da metade, apenas 45%, achava que a imprensa protegia a democracia." "Os Elementos do Jornalismo" ficou pronto depois da realização de 21 fóruns aos quais compareceram mais de 3.000 pessoas. Foram tomados os depoimentos de 300 jornalistas. Uma equipe de pesquisadores universitários gravou 103 horas de entrevistas com jornalistas a respeito dos valores da profissão. Duas perguntas básicas foram feitas. Primeiro, se os profissionais da área consideravam jornalismo uma forma diferente de comunicação em relação aos outros meios e, em caso afirmativo, qual seria a diferença. A segunda pergunta foi se são necessárias mudanças no jornalismo praticado nos EUA, mas se é também preciso manter alguns princípios centrais -e quais seriam esses princípios. Concluiu-se que há nove princípios básicos. Estes são os elementos do jornalismo, o título do livro: 1) a primeira obrigação do jornalismo é com a verdade;
2) sua primeira lealdade é com os cidadãos;
3) sua essência é a disciplina da verificação;
4) seus praticantes precisam manter independência em relação a quem é protagonista de suas reportagens;
5) o jornalismo precisa servir como um monitor independente do poder;
6) o jornalismo deve abrir espaço para a crítica e o compromisso público;
7) o jornalismo deve se esforçar para apresentar o que é significativo de forma interessante e relevante;
8) o jornalismo deve manter a notícia completa e proporcional;
9) os jornalistas devem ter permissão para exercer sua consciência pessoal.

Paralelo com o Brasil Há um capítulo para cada um dos "elementos". Um dos paralelos possíveis com o Brasil é a tendência de jornalistas cada vez mais se basearem em investigações em andamento para fazer suas reportagens. "É um desenvolvimento mais recente e se torna cada vez mais comum. Nesse caso, a reportagem é feita com base numa descoberta ou vazamento de informação de uma investigação oficial em andamento ou em preparação, normalmente conduzida por agências governamentais."
A semelhança com o Brasil e com Brasília não pára aí. "Trata-se de uma marca do jornalismo em Washington, uma cidade onde frequentemente o governo fala consigo mesmo por intermédio da imprensa", dizem os autores.
E mais: "A chance de ser usado por fontes ligadas a uma investigação em andamento é grande. Em vez de monitorar instituições poderosas, a imprensa fica em posição vulnerável e pode se tornar uma ferramenta. É necessário ter muito cuidado. Paradoxalmente, alguns meios de comunicação acham o oposto: que podem ficar mais livres para noticiar suspeitas ou alegações apenas por estar atribuindo a informação a uma fonte oficial em vez de ter de confiar numa investigação própria".

Neutro ou independente? Quando listam no início do livro os nove elementos do jornalismo, os autores justificam a razão de haver apenas esse número de itens. Antecipam que podem ser criticados por talvez exagerarem na simplificação.
A crítica principal da qual os autores se defendem por antecipação é sobre a não-inclusão de algo específico para o conceito de neutralidade do jornalismo. Kovach e Rosenstiel têm uma explicação a respeito.
"Pela primeira vez na nossa história, as notícias estão sendo produzidas cada vez mais por companhias de fora do jornalismo, e essa nova organização econômica é importante. Nós estamos enfrentando a possibilidade de o noticiário independente ser substituído por interesses comerciais apresentados como notícia." E, para concluir, "ser imparcial ou neutro não é um princípio central do jornalismo (...). O passo crítico (...) não é neutralidade, mas independência".
O argumento implícito no livro é o de que nenhum jornal nem jornalista é neutro. O importante é buscar, como se aprende nas escolas de jornalismo, caminhar na direção da neutralidade.
Já a independência é algo diferente, muito mais palpável e concreto. Segundo o livro de Kovach e Rosenstiel, cada vez menos veículos podem ostentar esse adjetivo nos EUA. No Brasil, o cenário é parecido. Mas aqui ainda não houve um trabalho de fôlego como "Os Elementos do Jornalismo" para diagnosticar com mais precisão o que se passa na mídia.


The Elements of Journalism
205 págs., US$ 20,00 (preço de capa)
de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Ed. Crown (EUA).




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