São Paulo, domingo, 02 de setembro de 2001

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+ música

Decantando a República

Eterno complexado, cancionista brasileiro oscila entre sucumbir ao mercado ou entregar-se ao julgamento da história

Berenice Cavalcante
Heloisa Murgel Starling
José Eisenberg

especial para a Folha

Todo compositor brasileiro é um complexado,
Por que então essa mania danada,
Essa preocupação de falar tão sério (...)
E por que então essa vontade
De parecer herói ou professor universitário
(Aquela tal classe
Que ou passa a aprender com os alunos
-Quer dizer, com a rua-
Ou não vai sobreviver)?

(Tom Zé, "Complexo de Épico", 1973)

Agora falando sério. Muitos queriam não cantar com tanta seriedade as mazelas e querelas, conflitos e aflitos deste Brasil. Poucos sabiam se queriam ser bardos ou bufos, trovadores ou predadores. E ninguém decide, antes da hora marcada, se nasceu para enfrentar o mar ou se é faroleiro. Assim, quando Tom Zé se irritou com os heroísmos e academicismos do compositor popular, não foram poucos os que reclamaram da sua falta de engajamento mais explícito nos grandes debates políticos da nação.
Mas, de certo modo, ele tem razão: o nosso cancionista é um eterno complexado, com idéias e atitudes eventualmente reprimidas sobre se entrega seu lirismo à crítica da nossa história ou se larga essa mania de falar tão sério e sucumbe à prisão poética que o mercado tenta impor à arte. No fundo, porém, pouca importância tem a nobreza ou não das intenções do compositor brasileiro. Pouco importaria, na verdade, se preferisse não mentir, enganar, driblar, iludir tanto desencanto -esse canto ressoa sempre alguma coisa organicamente ligada à aventura nacional brasileira, atualizando com sua fluidez melódica os dados de um país que parece escapar-nos por entre os dedos, com suas pequenas expectativas cotidianas invariavelmente desniveladas, seus repentes de afetividade, sua ambiguidade civil, sua elegância esquiva, sua intolerável vulgaridade política, sua irônica melancolia.
Nesse sentido, e talvez não por acaso, a República e a canção popular moderna brasileira nasceram juntas há cerca de um século. E o compositor vem, desde então, resumindo, no tempo curto de uma cantiga, décadas de cotidiano e da vida coletiva brasileira, histórias imantadas por um novo sentido, porções inteiras do nosso vivere civilis concentradas em uma expressão comum.
Entretanto, se é possível pensar que o Brasil insiste como refrão dessa melodia, algo da vida do país também parece reproduzir sua presença nas dobras e sobras das estrofes de cada canção, como sete possíveis sugestões de diálogo entre a música popular, o pensamento social e a história intelectual brasileira:

"Na janela lateral do quarto de dormir"; entre o público e o privado O tempo que passou na janela fez com que diversos personagens de canções da música popular brasileira, debruçados sobre o parapeito, refletissem sobre as tênues e tensas relações entre o espaço privado da casa e o espetáculo público da rua, com sua política do conflito social e de manifestações de ações coletivas e cívicas.
No "Brejo da Cruz", muitas vezes a novidade é a vitrine, de vidro liso e transparente, mediando dois universos, ora opostos, ora convergentes, e permitindo que os cidadãos contemplem uns aos outros, descobrindo, nas suas semelhanças e diferenças, um terceiro universo nem tão público nem tão privado. Esse terceiro universo, simbolizado pela janela, exprime uma vocação política para a construção de espaços em que a esfera privada encontra expressão nas manifestações públicas do cidadão, e a esfera pública penetra a intimidade do indivíduo e da família.

"Brasil com s"; utopia e distopia da nação brasileira Um dos personagens mais recorrentes na nossa canção é o próprio Brasil, cantado de duas maneiras particulares: de um lado, em naturalismos modernistas que projetam paisagens por sobre seu vasto território e retratam a nação brasileira como uma utopia, em que a grandeza do futuro decorre de uma beleza natural e nacional, livre de contradições e conflitos. De outro lado, porém, índoles mais críticas e menos exaltadas cantam o Brasil como uma distopia, retrato em negativo do país que não somos, dos valores e das virtudes que não possuímos, uma espécie de Brasil em verso mas ao avesso -o fim do mundo, lugar de desterro e de injustas ironias.

"Festa acabada, músicos a pé"; cidadãos e párias A festa acabou, mas ninguém quer ir embora. O malandro, a mulher, o negro, o marginal, o guri, o otário, o retirante, o índio, o louco, o camponês continuam habitantes do Brasil. De fato, existe na nossa canção uma coleção de personagens sociais tipificados, todos equilibristas na tênue linha que separa o exercício da cidadania da exclusão social.

"Saudade"; "virtù" e fortuna Estamos habituados a compreender saudade apenas como um fenômeno da intimidade. Entretanto a saudade é, também, uma tristeza mimética em que o eu lírico se esforça por tentar combinar uma espécie de obrigação de lembrar-se daquele que se encontra distante com a consciência da distância inexorável que os separa -nesse caso, ela pode ser representada como uma articulação específica da relação entre a virtude daquele que lembra e a fortuna que ocasionou a distância do objeto da saudade. Mas, quando esse outro distante remete a sujeitos, eventos, feitos e ações, a saudade pode provocar e potencializar uma série de interações entre os conceitos de "virtù" e fortuna, tal como expressos na tradição do pensamento republicano.

"Onde o Brasil aprendeu a liberdade"; história, tirania e República Canções de protesto, sátiras políticas, exaltações de heróis cívicos, reconstrução e recriação mais ou menos alegórica de eventos esquecidos pela tradição política brasileira -todas essas opções se constituem em cenas organizadoras de uma história do país.

"A cidade não mora mais em mim"; sertão, litoral, modernidade, modernização Talvez não exista agente de integração e modernização do Brasil mais eficaz, no âmbito da cultura popular, do que a canção. Surgem da percepção de seus autores três leituras possíveis sobre as chances e as oportunidades de construção de um Brasil moderno: na mais conhecida, o sertão representa a força primitiva de uma região ainda dominada pela resistência ao moderno e imersa na tradição; em uma segunda leitura, o sinal se inverte e o sertão preserva algo da gênese da nação, um lugar fundador na cena imaginária da nacionalidade; já a terceira leitura procura colocar em causa os limites entre os dois brasis, dando à nossa modernidade feições de contraponto e contraste.

"O mundo dá voltas, camará": imagens da alteridade América Latina, Portugal, EUA e África: várias canções travam um diálogo explícito e direto com representações do estrangeiro. Em boa medida, essas canções buscam uma reconstrução da identidade nacional por intermédio da delimitação de traços de semelhança e/ou diferença entre a nossa cultura popular e aquelas constituídas em outros universos linguístico-culturais. Ora referindo-se à nossa inserção em um universo cultural mais amplo, como a América Latina, ora remetendo às especificidades que tornam a nossa experiência distinta, por exemplo, da norte-americana, muitas dessas canções se tornam veículos de uma etnologia comparada. Outras, porém, com suas referências a Portugal ou à África, buscam reconstituir as rupturas e continuidades que definem nossas principais heranças culturais.


Berenice Cavalcante é professora de história moderna na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autora de "José Bonifácio, Razão e Sensibilidade" (ed. da FGV).
Heloisa Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de "Lembranças do Brasil" (ed. Revan).
José Eisenberg é professor de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e autor de "As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno" (ed. da UFMG).


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