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+ música
Decantando a República
Eterno complexado, cancionista brasileiro oscila entre sucumbir ao mercado ou entregar-se ao julgamento da história
Berenice Cavalcante
Heloisa Murgel Starling
José Eisenberg
especial para a Folha
Todo compositor brasileiro é um complexado,
Por que então essa mania danada,
Essa preocupação de falar tão sério (...)
E por que então essa vontade
De parecer herói ou professor universitário
(Aquela tal classe
Que ou passa a aprender com os alunos
-Quer dizer, com a rua-
Ou não vai sobreviver)?
(Tom Zé, "Complexo de Épico", 1973)
Agora falando sério. Muitos queriam não cantar
com tanta seriedade as mazelas e querelas, conflitos e aflitos deste Brasil. Poucos sabiam se
queriam ser bardos ou bufos, trovadores ou
predadores. E ninguém decide, antes da hora marcada,
se nasceu para enfrentar o mar ou se é faroleiro. Assim,
quando Tom Zé se irritou com os heroísmos e academicismos do compositor popular, não foram poucos os
que reclamaram da sua falta de engajamento mais explícito nos grandes debates políticos da nação.
Mas, de certo modo, ele tem razão: o nosso cancionista é um eterno complexado, com idéias e atitudes eventualmente reprimidas sobre se entrega seu lirismo à crítica da nossa história ou se larga essa mania de falar tão
sério e sucumbe à prisão poética que o mercado tenta
impor à arte. No fundo, porém, pouca importância tem
a nobreza ou não das intenções do compositor brasileiro. Pouco importaria, na verdade, se preferisse não
mentir, enganar, driblar, iludir tanto desencanto -esse
canto ressoa sempre alguma coisa organicamente ligada à aventura nacional brasileira, atualizando com sua
fluidez melódica os dados de um país que parece escapar-nos por entre os dedos, com suas pequenas expectativas cotidianas invariavelmente desniveladas, seus
repentes de afetividade, sua ambiguidade civil, sua elegância esquiva, sua intolerável vulgaridade política, sua
irônica melancolia.
Nesse sentido, e talvez não por acaso, a República e a
canção popular moderna brasileira nasceram juntas há
cerca de um século. E o compositor vem, desde então,
resumindo, no tempo curto de uma cantiga, décadas de
cotidiano e da vida coletiva brasileira, histórias imantadas por um novo sentido, porções inteiras do nosso vivere civilis concentradas em uma expressão comum.
Entretanto, se é possível pensar que o Brasil insiste como refrão dessa melodia, algo da vida do país também
parece reproduzir sua presença nas dobras e sobras das
estrofes de cada canção, como sete possíveis sugestões
de diálogo entre a música popular, o pensamento social
e a história intelectual brasileira:
"Na janela lateral do quarto de dormir"; entre o público e o privado
O tempo que passou na
janela fez com que diversos personagens de canções da
música popular brasileira, debruçados sobre o parapeito, refletissem sobre as tênues e tensas relações entre o
espaço privado da casa e o espetáculo público da rua,
com sua política do conflito social e de manifestações de
ações coletivas e cívicas.
No "Brejo da Cruz", muitas vezes a novidade é a vitrine, de vidro liso e transparente, mediando dois universos, ora opostos, ora convergentes, e permitindo que os
cidadãos contemplem uns aos outros, descobrindo, nas
suas semelhanças e diferenças, um terceiro universo
nem tão público nem tão privado. Esse terceiro universo, simbolizado pela janela, exprime uma vocação política para a construção de espaços em que a esfera privada encontra expressão nas manifestações públicas do
cidadão, e a esfera pública penetra a intimidade do indivíduo e da família.
"Brasil com s"; utopia e distopia da nação brasileira Um dos personagens mais recorrentes na nossa canção é o próprio Brasil, cantado de duas maneiras particulares: de um lado, em naturalismos modernistas que
projetam paisagens por sobre seu vasto território e retratam a nação brasileira como uma utopia, em que a
grandeza do futuro decorre de uma beleza natural e nacional, livre de contradições e conflitos.
De outro lado, porém, índoles mais críticas e menos
exaltadas cantam o Brasil como uma distopia, retrato
em negativo do país que não somos, dos valores e das
virtudes que não possuímos, uma espécie de Brasil em
verso mas ao avesso -o fim do mundo, lugar de desterro e de injustas ironias.
"Festa acabada, músicos a pé"; cidadãos e párias A festa acabou, mas ninguém quer ir embora. O malandro, a mulher, o negro, o marginal, o guri, o otário, o
retirante, o índio, o louco, o camponês continuam habitantes do Brasil. De fato, existe na nossa canção uma coleção de personagens sociais tipificados, todos equilibristas na tênue linha que separa o exercício da cidadania da exclusão social.
"Saudade"; "virtù" e fortuna Estamos habituados a compreender saudade apenas como um fenômeno da intimidade. Entretanto a saudade é, também,
uma tristeza mimética em que o eu lírico se esforça por
tentar combinar uma espécie de obrigação de lembrar-se daquele que se encontra distante com a consciência
da distância inexorável que os separa -nesse caso, ela
pode ser representada como uma articulação específica
da relação entre a virtude daquele que lembra e a fortuna que ocasionou a distância do objeto da saudade.
Mas, quando esse outro distante remete a sujeitos,
eventos, feitos e ações, a saudade pode provocar e potencializar uma série de interações entre os conceitos de
"virtù" e fortuna, tal como expressos na tradição do
pensamento republicano.
"Onde o Brasil aprendeu a liberdade"; história, tirania e República
Canções de protesto, sátiras políticas, exaltações de heróis cívicos, reconstrução e recriação mais ou menos alegórica de eventos esquecidos pela tradição política brasileira -todas essas opções se constituem em cenas organizadoras de uma história do país.
"A cidade não mora mais em mim"; sertão, litoral, modernidade, modernização Talvez não exista agente de integração e modernização do Brasil
mais eficaz, no âmbito da cultura popular, do que a canção. Surgem da percepção de seus autores três leituras
possíveis sobre as chances e as oportunidades de construção de um Brasil moderno: na mais conhecida, o sertão representa a força primitiva de uma região ainda
dominada pela resistência ao moderno e imersa na tradição; em uma segunda leitura, o sinal se inverte e o sertão preserva algo da gênese da nação, um lugar fundador na cena imaginária da nacionalidade; já a terceira
leitura procura colocar em causa os limites entre os dois
brasis, dando à nossa modernidade feições de contraponto e contraste.
"O mundo dá voltas, camará": imagens da alteridade América Latina, Portugal, EUA e África: várias canções travam um diálogo explícito e direto com representações do estrangeiro. Em boa medida, essas canções buscam uma reconstrução da identidade nacional por intermédio da delimitação de traços de semelhança e/ou
diferença entre a nossa cultura popular e aquelas constituídas em outros universos linguístico-culturais. Ora
referindo-se à nossa inserção em um universo cultural
mais amplo, como a América Latina, ora remetendo às
especificidades que tornam a nossa experiência distinta, por exemplo, da norte-americana, muitas dessas
canções se tornam veículos de uma etnologia comparada. Outras, porém, com suas referências a Portugal ou à
África, buscam reconstituir as rupturas e continuidades
que definem nossas principais heranças culturais.
Berenice Cavalcante é professora de história moderna na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro e autora de "José Bonifácio,
Razão e Sensibilidade" (ed. da FGV).
Heloisa Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de "Lembranças do Brasil"
(ed. Revan).
José Eisenberg é professor de ciência política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e autor de "As Missões Jesuíticas e o
Pensamento Político Moderno" (ed. da UFMG).
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