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Em conto agora traduzido no Brasil, Dostoiévski aborda os conflitos
políticos e culturais da Rússia do século 19 de forma cômica e delirante
Uma resposta fantástica
HOMERO FREITAS DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
No início de 1873, ao publicar o conto "Bobók", ou
"Notas de uma Pessoa",
Fiódor Dostoiévski (1821-1881) já tinha escrito boa parte de
sua obra de ficção. Um mês antes,
para enfrentar a habitual falta de dinheiro, ele assumira o cargo de redator-chefe de "Grajdanin" (O Cidadão), um semanário de política e literatura editado em São Petersburgo
que era porta-voz da direita czarista.
Ali, publicava também a coluna
"Diário de um Escritor", com reflexões de cunho histórico-filosófico
sobre a conturbada atualidade russa,
suas idéias literárias e, vez ou outra,
algum conto ou novela, como é o caso desse "Bobók".
A situação na Rússia não ia nada
bem. A intelligentsia crescia e tentava ocupar os espaços de atuação política, abertos com as reformas promulgadas por Alexandre 2º em 1861,
que tinham abolido a servidão e
criado condições mínimas para a
implantação do capitalismo e o surgimento de uma sociedade burguesa. Esse segmento de oposição ao
poder autocrático, constituído de
nobres, intelectuais e letrados, cujas
correntes ideológicas iam do centro
à extrema-esquerda, pretendia grosso modo instruir o povo, conscientizá-lo de seus direitos e conferir-lhe
cidadania.
A direita não deixava por menos.
Apoiada nos estatutos do império,
defendia a ferro e a fogo a autoridade
do czar e do Santo Sínodo, perseguia, censurava e fazia deportar para
os trabalhos forçados, quando não
executar, aqueles que se envolviam
com o liberalismo. No interior da intelligentsia, as disputas ideológicas
corriam soltas, as facções mais à esquerda tentavam impor ao movimento formas mais radicais de atuação.
Dostoiévski, antigo simpatizante
do socialismo, condenado por isso
aos trabalhos forçados na Sibéria, tinha causado perplexidade nos
meios progressistas, por apresentar
um retrato da intelligentsia nada lisonjeiro em seu romance "Os Demônios", publicado em dezembro
do ano anterior. Isso lhe valeu uma
saraivada de críticas negativas, além
dos epítetos de traidor da causa, renegado e até mesmo louco.
"Bobók", a que o leitor brasileiro
terá acesso numa bela tradução direta do russo, elaborada por Paulo Bezerra, é uma resposta do escritor aos
seus críticos de então e de antes, como demonstra o tradutor no minucioso ensaio analítico que acompanha o conto. E que resposta!
Sono e vigília
Mas não é só isso, certamente. Trata-se de um conto fantástico, cuja
ação (quase nenhuma), narrada por
um literato amigo do copo, se passa
num cemitério. Depois do enterro
de um parente distante, o escritor
Ivan Ivánitch deita-se em cima de
um túmulo para tirar um cochilo.
Ao acordar, se é que chega a fazê-lo,
começa a ouvir as vozes dos defuntos que o rodeiam, a maioria deles
aristocratas, e mais não conto, que é
para não tirar o prazer do leitor.
Balbucio? Bobók... bobók... Borborigmo, burburinho? Bobók... bobók... Algo que vem do fundo e explode surdamente à superfície? Bobók... bobók... Carniça em fermentação? Bobók... bobók é fava. O morto
em seu caixão. Embrião da próxima
vida. Enxofre aprisionado na matéria. Alimento dos mortos. "Elemento essencial para a comunhão com
os Invisíveis" ("Dictionnaire des
Symboles", de J. Chevalier e A.
Gheerbrant; Paris, R. Laffont, 1982).
Morto o sujeito, diz que o espírito
ainda leva algum tempo a abandonar o cadáver. A demora, segundo
os entendidos, depende de várias
coisas. Da percepção da própria
morte, do grau de apego do finado
às coisas terrenas, de seu estágio de
evolução espiritual, de mistérios inacessíveis à compreensão humana, e
assim por diante.
Pelo menos, esta é a explicação que
dá à sociedade dos mortos ali reunida o falecido "filósofo, naturalista e
grão-mestre" Platon Nikoláievitch,
cujo nome remete aos "Diálogos Socráticos" que têm a morte por tema.
De onde ele tirou isso? Ora, a própria
Igreja Ortodoxa celebra o ofício referente ao "Sorokovíny", o período de
40 dias após a morte, durante o qual
a alma passa por uma série de provações antes de se desligar definitivamente do corpo.
Outra coisa não disse Allan Kardec, o fundador da doutrina espírita,
que codificou esses assuntos no século 19 em seu "Livro dos Espíritos"
(1857), seguindo os mais modernos
métodos do pensamento positivista.
Antes dele, o filósofo e inventor sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772) também desenvolvera algo semelhante em seus textos teosóficos.
Já o suíço Johann Kaspar Lavater
(1741-1801), inventor da "fisiognomia" e partidário das teorias de Swedenborg, manteve por correspondência (1798) interessante discussão
com a czarina Maria, mulher de
Paulo 1º, a respeito do "estado da alma após a morte" ("Correspondance Inédite de Lavater avec l'Impératrice Marie de Russie", em "Revue
Spirite - Journal d'Etudes Psychologiques", março de 1868).
As idéias de Swedenborg tiveram
significativa repercussão na Rússia
durante o século 19. Suas "descobertas" eram assunto obrigatório nas altas rodas, dando ensejo, inclusive, à
prática de jogos de salão em que se
invocavam os espíritos dos mortos.
Poucos o tinham lido, tanto que em
"A Dama de Espadas", numa de suas
provocativas mistificações, Púchkin
ridiculariza o fato, inventando uma
citação à guisa de epígrafe, cuja autoria atribui ao pensador sueco.
Espíritos e narrativa
É de se imaginar, também, que o
"Livro dos Espíritos" tenha causado
"frisson" na aristocracia russa. De
qualquer modo, a idéia de uma influência de Swedenborg na obra de
Dostoiévski foi sugerida pela primeira vez pelo estudioso Leonid
Grossman em "A Biblioteca de Dostoiévski - Materiais Inéditos" (1919).
Grossman informa que o escritor
possuía diversos livros de e sobre
Swedenborg, inclusive a primeira
tradução para o russo de seu "O
Mundo dos Espíritos". Porém, não
se pode esquecer que em "Bobók" as
concepções de Swedenborg são
apresentadas em chave cômica, já
que se trata de um conto satírico,
inspirado nos modelos de sátira menipéia da Antigüidade.
Em "O Universo de Bobók", evocando diversos estudiosos russos,
mas principalmente Mikhail Bakhtin, Paulo Bezerra propõe esse conto
como repositório dos principais
procedimentos de composição de
que se servia Dostoiévski em sua
práxis.
Assim, além da sátira menipéia, o
ensaísta trata do uso particular que
Dostoiévski fazia do fantástico, como elemento de revelação da realidade. Esmiúça com riqueza documental e analítica a questão do dialogismo e das relações dialógicas
que se estabelecem nesta narrativa
com outras obras da literatura clássica (Sêneca, Platão, Luciano de Samósata) e com a tradição russa
(Púchkin, Gógol, Odóievski, Schedrin etc.). Enfim, a leitura do ensaio
complementa bem a leitura do conto e permite ao leitor fazer uma idéia
mais nítida de que bobók é esse. Bobók... bobók...
Homero Freitas de Andrade é professor
de literatura russa da USP e tradutor. Autor
de "O Diabo Solto em Moscou" (Edusp) e organizador de "Os Males do Tabaco e Outras
Peças em um Ato", de Tchekhov (Ateliê).
Bobók
176 págs., R$ 29
de Fiódor Dostoiévski. Tradução de Paulo
Bezerra. Ed. 34 (r. Hungria, 592, Jardim Europa, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/
11/ 3816-6777).
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