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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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PONTO DE FUGA

Uma certa asfixia

Jorge Coli
especial para a Folha

Certamente existiram artistas infelizes antes. Mas foram os românticos que fizeram as formas mais sinceras das artes brotarem das dificuldades de viver. Eles prepararam o terreno para existências radicais, gente que entrou para a infelicidade como quem entra para o convento. Baudelaire, Van Gogh, Artaud foram casos emblemáticos. Inventaram mundos artísticos plenamente novos e decisivos para a sensibilidade contemporânea.
É Artaud quem mostra o amálgama mais compacto entre vida e obra, uma parecendo fragmento da outra. Passou nove anos internado como louco. Repetia que morrera em cada eletrochoque. Ao sair do hospício, em 1946, redigiu alguns de seus textos mais fundamentais: teve dois anos para isso, antes que a morte chegasse. Entre eles está "Van Gogh, o Suicida da Sociedade", editado agora em português pela editora José Olympio, num livro pequeno e bonito, com tradução enérgica de Ferreira Gullar. "A vida do poeta Artaud foi um incêndio que ninguém, nem mesmo seus melhores amigos e amigas, podiam extinguir nem mesmo circunscrever nem mesmo aceitar. Ele não tinha outra saída, senão a revolta. A revolta quotidiana, integral, definitiva": essas frases são de Philippe Soupault, o mais intransigente dos dadaístas.
Artaud identificava-se com Van Gogh, o criador suicida, que também fora um internado. Odiava a psiquiatria, a medicina cega, em suas fúrias pelas normalizações dos comportamentos. Lacan, que examinou Artaud em 1938, o declarou definitivamente "estabilizado", mas incapaz, para sempre, de criar.

Passado - O "Van Gogh" de Artaud é fulminante em sua lucidez acusadora. Mas a própria força do escrito parece de outros tempos. Há uma espécie de exotismo longínquo nessa rebeldia tremenda. Hoje, alguém ainda pode representar o papel irredutível de Artaud com oportunismo eficaz. Porém o verdadeiro enfrentamento entre indivíduo e sociedade, que caracterizava aqueles criadores enraivecidos, parece impossível nestes dias de agora, carregados de outras inquietações, quando tudo se dissolve em arranjos. Seria preciso reinventar a revolta, coisa nada fácil.

Claves - O estudante tímido tem um projeto de doutorado sobre "o esquecimento na literatura". Enquanto espera uma bolsa, consegue um trabalho: revisar a autobiografia de Bergmann, o maior compositor alemão vivo, comparado a Beethoven ou a Brahms.
Já há algo de estranho em imaginar algum músico como o Beethoven ou o Brahms de agora, tão diferentes são as situações culturais entre as épocas.
O romance "O Acorde de Tristão" (Companhia das Letras), de Hans-Ulrich Treichel, tem humor "circunspecto", pairando numa atmosfera meio enevoada. Ela envolve o jovem Georg Zimmer, perdido ao sair da universidade, contemplando de fora o grande criador, seguindo-o, transparente e insignificante, à Escócia, a Nova York, à Sicília.
Treichel não caricatura a música desse Bergmann fictício e descreve, com interesse, uma de suas composições. Situa tudo, porém, sob um olhar que desfaz vigores e sentidos. Nesse quadro, seria impossível, por exemplo, imaginar um gesto qualquer de insubmissão. A música de Wagner sabe desagregar as vontades do ouvinte, para ocupá-lo inteiro, infundindo nele suas próprias intensidades. Em "O Acorde de Tristão", porém, qualquer intensidade é abandonada.
Eis as últimas linhas: "Georg, não mais na borda, mas no meio da escuridão, ouviu Bergmann tocar um acorde. Abafado, sombrio, interrompendo-se de forma abrupta. Um acorde que parecia emergir de um abismo e ao qual nada se seguiu. Só o silêncio, e nada mais".

Dentinhos - Um mundo artificial, como o das ilustrações infantis, algo assim entre Tim Burton e Amélie Poulain. Não deve ser visto como um thriller ou como um filme de terror. É antes um conto sombrio, em tom de fábula para crianças. "A Vingança de Willard", primeira realização de Glen Morgan, traz a história de um rapaz acanhado que se serve da cumplicidade com ratos para se vingar de injustiças quotidianas. Os roedores são simpáticos e a humanidade, muito desagradável.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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