São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2001

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Nascido há cem anos, Walt Disney criou uma das mais importantes empresas de entretenimento do planeta, cujos produtos chegam a se confundir com os EUA

O construtor do império

Esther Hamburger
especial para a Folha

No dia 11 de setembro, logo após os atentados que implodiram as torres gêmeas do World Trade Center e destruíram parcialmente o prédio do Pentágono em Washington, especulou-se que os parques da Disney estariam entre os possíveis alvos de novos ataques.
De fato eles são reconhecidos como área de segurança nacional e perderam 82% de seu faturamento no último trimestre, o que sugere o quanto os diversos produtos que carregam o logo do criador do Mickey Mouse se confundem com os Estados Unidos.
Walter Elias Disney, a personagem central na criação dessa engrenagem que começou na garagem de seu tio e que se tornaria uma das maiores empresas de entretenimento do mundo, estaria fazendo cem anos na próxima quarta-feira, dia 5 de dezembro.
Trata-se de uma figura controvertida. Saudado como protótipo de empresário bem-sucedido, laureado dezenas de vezes pela Academia de Cinema de Hollywood, sua biografia é muitas vezes reconstituída como exemplo de persistência, perfeccionismo e ousadia, símbolo e encarnação da empresa construída a sua semelhança.
Outras vezes, contudo, é denunciado por seu anti-semitismo, seu comprometimento com o macartismo, sua falta de generosidade para com os funcionários, características pessoais congruentes com o conteúdo convencional de seus filmes. Especula-se sobre sua identidade sexual. Discute-se a hipótese, negada pela família, de que uma possível origem adotiva esteja na raiz da ambição que teria alimentado uma ânsia desmedida de ascensão e que justificaria a preferência do realizador por histórias de órfãos em busca de identidade. Nascido em 1901, em Chicago, em uma família de cinco filhos, o pai descendente de irlandeses puritanos, sem muitos recursos, não terminou os estudos e não frequentou a universidade. Teve uma infância itinerante no Meio-Oeste, Missouri e Kansas, a América profunda.
Walt Disney representa um caso espetacular de "self made man", um cartunista que, a partir do desenho animado, construiu um império fabricante de personagens e histórias que há décadas participam do cotidiano de habitantes do planeta, inclusive brasileiros. Vale notar que Disney esteve no Brasil, em 1941, em missão oficial americana, no mesmo programa de desenvolvimento de política de "boa vizinhança" que trouxe Orson Welles. Na ocasião, Disney criou o Zé Carioca, representação literal do convívio intercultural, fez um documentário, "Alô Brasil" ou "Aquarela do Brasil", que, como o nome diz, divulgava a música de Ari Barroso, e fez sugestões para o logotipo da Força Expedicionária Brasileira.
No início da década de 20, na cidade de Kansas, onde juntamente com Ub Iwerks, um parceiro constante dos primeiros anos, e segundo muitos, autor principal do traço adocicado dos personagens, Disney trabalhou em publicidade e fez seus primeiros curtas de animação. Sem muita perspectiva de crescimento na pequena cidade, Walter se juntou ao irmão Roy, que seria sempre seu parceiro e administrador principal da companhia em Los Angeles.
Inovações técnicas fizeram a marca nos primeiros anos. A insistência em manter uma estrutura de produção independente dos grandes estúdios -que, como se sabe, fizeram a indústria cinematográfica de Hollywood- garantiu o crescimento inusitado da empresa.
A abertura precoce, já nos anos 30, ao merchandising nos mais diversos produtos, de livros a brinquedos portadores da marca Disney, diversificou as fontes de renda e permitiu a consolidação da máquina, sempre em torno do produto principal: o filme de animação.
Disney criou o Mickey em 1927, quando o cinema sonoro surgia: um de uma série de quatro curtas, "Steamboat Willie" prometia sucesso. Depois de pronto o filme, o diretor decidiu sonorizá-lo, lançando, em 1928, seu legendário personagem no primeiro filme de animação com som sincronizado.
A operação, artesanal e improvisada, envolveu a complicada tarefa de articular movimento e música, além de ruídos produzidos por meio do manuseio de objetos e voz -no caso da de Mickey, nesse, nos próximos três filmes e em "Fantasia", a do próprio diretor. O processo sugeriu o aumento da velocidade de projeção dos então 18 quadros por segundo para 24. Com roteiro e música inspirados no teatro de vaudeville, o desenho era dirigido a adultos. O sucesso estimulou uma sequência de outros curtas, animados pelo aprimoramento da técnica, sofisticação dos "story boards", crescimento do número de personagens, concentração no público infantil. Surgiram Minnie, Pluto, Horácio e Clarabela. Mickey, ligeiramente remodelado, permaneceu a estrela inconteste até que o Pato Donald, criado em 1934, foi ganhando popularidade.
Em 1937 "Branca de Neve e os Sete Anões", o primeiro longa-metragem de animação, representa um novo marco. Aqui Disney introduziu a "câmera múltipla", que, por meio de uma série de níveis de acetato, permitiu a profundidade de campo no desenho animado e garantiu ao filme um Oscar especial por inovação. Seguiram-se "Pinóquio", "Fantasia", "Dumbo" e "Bambi", no qual Disney já não atuava como diretor, limitando-se à produção.
Durante a guerra, o estúdio, já com cerca de mil funcionários, se ocupou da produção de filmes educacionais e de propaganda, participando dos esforços de expansão de influência internacional que marcaram a entrada dos Estados Unidos no conflito e da qual a visita ao Brasil fazia parte. Em 1941 os funcionários do estúdio realizaram uma greve geral, que paralisou o estúdio. A reação autoritária e negativa de Walt Disney representa uma marca indelével em sua carreira.
Entre curtas e longas, de 1922, quando fez seu primeiro filme, a 1966, Walt Disney produziu 576 filmes, tendo dirigido 111. De 1954 a 1966, quando morreu, Disney apresentou um programa semanal de televisão, que difundia os seus outros produtos, especialmente a Disneylândia, inaugurada em 1955, abrindo uma nova frente de trabalho.
Após a morte de Disney, os filmes da companhia, como "Mary Poppins" e "Mogli" continuaram a fazer sucesso. Mas a empresa entrou em decadência, até a contratação, em 1984, de Michael Eisner, vindo da Paramount, que já no ano seguinte daria novo impulso à companhia, adquirindo a rede ABC de televisão.
O empreendimento cresceu nos últimos anos, mas a fórmula pouco se alterou e há muito já não vigora a aura de inovação que marcou a Disney no início. Sucessos como "O Rei Leão", "Aladin", "A Bela e a Fera", parecem reproduzir em linhas gerais as convenções estabelecidas nos primeiros filmes.
Para além das biografias oficiais e das futricas usuais, há poucos trabalhos de fôlego que ajudem a entender o fenômeno Disney. É possível encontrar tratados de administração baseados no exemplo Disney, caso de empresa que alimenta a sinergia de produtos diversos. Mas quais são os ingredientes que alicerçam a montagem de um complexo que até hoje produz sucessos? O que explica que filmes lançados há 50 anos continuem a sensibilizar pais e filhos, em diversos locais do planeta?
Nos anos 70, Ariel Dorfman e Armand Mattelart escreveram "Para Ler o Pato Donald", um livro que denunciava o conteúdo imperialista das histórias em quadrinhos de Walt Disney, como braço ideológico do colonialismo norte-americano. Os autores chamam a atenção para a ausência de progenitores, especialmente na família do Pato Donald, um tio, sobrinho ele mesmo do Tio Patinhas, que cria três sobrinhos. Apontam o puritanismo e a falta de família como elementos exógenos à cultura latino-americana, impostos através dos quadrinhos. Nos anos 90, Frederic Jameson, motivado pela inauguração da Disneylândia francesa nos arredores de Paris, discute a expansão da cultura americana na Europa em tempos de globalização.
Mas a indagação permanece. A resposta, ao menos em parte, talvez esteja no tom fabuloso da narrativa dos filmes clássicos de Disney. Ao contrário do que se fazia no cerne da indústria cinematográfica de então, marcada por narrativas naturalistas, com cenários e figurinos situados no tempo contemporâneo, pontuadas de referências a datas e locais definidos, as animações Disney, dos primeiros trabalhos, nos anos 20, evolui para a linha que se consolidaria nos anos 30, evitam especificações de tempo e espaço.
Personagens desenhados podem envelhecer menos. Especialmente quando suas roupas e objetos são pensadas como pertencentes a todo ou nenhum tempo. Essas versões cinematográficas animadas, baseadas no repertório das crianças ocidentais, foram inúmeras vezes relançadas, se tornando um repertório compartilhado por diversas gerações de espectadores.
Ao contrário dos filmes clássicos do cinema de Hollywood, os filmes Disney foram lançados e relançados, incrementando sua trajetória comercial. E são vistos e revistos em vídeo por crianças que são netas ou bisnetas das primeiras espectadoras da "Branca de Neve". Os produtos Disney conseguiram manter um apelo repetidamente renovado, movido primeiro a inovação tecnológica e, depois, por propiciar experiências comuns a um público de diversas idades, etnias, classes etc... Mas já não encarnam "a" novidade.
Não deixa de ser sintomático que o lançamento do filme da Disney da temporada, "Monstros S.A." (Monsters Inc., que estréia no Brasil no próximo dia 14), tenha sido ofuscado pelo lançamento mundial de "Harry Potter", o filme do momento, que apela simultaneamente a várias gerações.


Esther Hamburger é antropóloga e professora na Escola de Comunicações e Artes da USP.


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