São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2001

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Para autora de livro sobre o fenômeno Harry Potter, razões do sucesso da história do menino bruxo e dos filmes da Disney são distintas

Imaginários confrontados

Divulgação
Cena do filme "Harry Potter e a Pedra Filosofal", em cartaz em São Paulo


Alcino Leite Neto
de Paris

O universo de Disney é poético. O da saga "Harry Potter" é prosaico e maravilhoso. O primeiro tira sua força de construções visuais e musicais. O segundo, do realismo dos romances de aventuras mesclado ao contos de fadas. É o que pensa a pesquisadora e professora de filosofia Isabelle Smadja, autora de "Harry Potter - Les Raisons d'un Succès" (As Razões de um Sucesso). O livro será lançado nos próximos dias pela prestigiosa PUF (Presses Universitaires de France).
O ensaio se debruça sobre um enigma: como Joanne K. Rowling, a autora escocesa de "Harry Potter", pôde convencer as crianças de todo o mundo, cada vez mais seduzidas por imagens, a ler os seus longos livros? Foi um mistério que a própria Smadja enfrentou em casa, ao ver os seus quatro filhos ficarem fascinados pelo personagem.
Segundo a pesquisadora, Rowling conseguiu trabalhar as angústias atuais das crianças dando a ela a forma reconfortadora dos contos infantis. A magia faz sua aparição num ambiente contemporâneo, onde a morte, a guerra, o racismo, a separação dos pais, o futuro incerto estão presentes, mas jamais são banalizados. Para Smadja, Harry Potter apareceu quando as crianças já "estavam cansadas da acumulação de cadáveres" dos videogames e filmes.
A transposição de "Harry Potter" para o cinema, na opinião da pesquisadora, é um acontecimento único para as crianças. Vai permitir que elas, depois de devorarem os livros, possam confrontar o mundo imaginário construído na leitura com o das imagens que lhes chegam prontas. "Não é todos os dias que se oferece às crianças a possibilidade de fazer com que um livro possa concorrer com um filme", diz Smadja, 40, na entrevista a seguir.

Há alguma coisa de Walt Disney nas histórias de Harry Potter?
Não. Eu creio que o imaginário de Walt Disney seja poético e tire sua potência daquilo que é muito visual e muito musical. O universo de J.K. Rowling, por sua vez, fascina menos por sua poesia do que por seu conjunto de ressonâncias narrativas (há alusões aos contos e às lendas, à mitologia, à Bíblia, à história mundial...) e pela sinceridade de que são dotados os seus personagens infantis.
E, no filme "Harry Potter", a sra. vê algo das produções de Walt Disney?
Sim, claro. Isso se vê por exemplo a partir da diferença acentuada entre o livro e a sua adaptação para o cinema. O livro começa pela descrição de um universo muito cotidiano, o de uma família londrina típica. Será apenas algumas páginas mais tarde que a magia fará a sua aparição, quando o mago Dumbledore apaga todas as lâmpadas da rua dos Dursley ao mesmo tempo, a fim de abrir o território à magia. Ora, no filme, a primeira imagem já nos mostra Dumbledore fazendo sua mágica. Isso me parece muito significativo: para uma escritora como Rowling, há todo um trabalho de leitura, de preparação, que é necessário antes de alcançar o sonho e a magia. Enquanto para o realizador entrar numa sala de cinema é imediatamente entrar no mundo mágico, como ocorre nos filmes de Disney.
O que ocorre com os contos infantis quando são transpostos para os quadrinhos e filmes, como fez Disney?
A capacidade que as crianças têm de investir imaginariamente na história e nos personagens é enfraquecida. A leitura nos coloca em uma relação solitária com nós mesmos e os nossos sonhos, enquanto os filmes são acontecimentos públicos e supõem a presença de outros espectadores. Talvez a transposição em filme seja menos eficaz para que a criança possa, a partir do conto, construir uma personalidade original e uma identidade.
Mas com o filme "Harry Potter", as crianças que leram o livro antes vão poder confrontar o seu próprio imaginário a um outro, que não corresponde àquele que elas concebiam quando fizeram a sua leitura. Haverá, ao menos uma vez, uma participação muito ativa e crítica no olhar que elas vão lançar ao filme. Não é todos os dias que se oferece às crianças a possibilidade de fazer com que um livro possa concorrer com um filme.
Como a sra. situa as histórias de Harry Potter na mitologia dos contos de fadas?
A obra se constrói desde o início sobre o modelo da Gata Borralheira. Ela dorme entre as cinzas da casa de sua madrasta, enquanto Harry dorme embaixo da escada da casa dos Dursley. Como ela, Harry é órfão e educado por pessoas detestáveis que o odeiam. Contudo ele herdou de seu pai e de sua mãe qualidades como a coragem, que o farão triunfar sobre os perigos.
A estrutura do conto de fadas se prolonga com a tripla intervenção do maravilhoso sobre o menino Harry Potter: uma primeira intervenção maléfica, a do horrível Valdemort, que matou os seus pais e que vai persegui-lo ao longo da narrativa; e duas outras, benéficas, uma da mãe que morreu para salvar o seu bebê miraculosamente, outra do mágico Dumbledore, que protege Harry na medida de seu poder.
Mas a autora substituiu as angústias do tempo de Charles Perrault e que aparecem nos contos tradicionais (o medo do lobo em "Chapeuzinho Vermelho", da fome em "O Pequeno Polegar", da mortalidade das mulheres que dão a luz em "A Gata Borralheira"...) por uma angústia atual: a da guerra e do ódio racista.
O que levou as crianças, num mundo dominado por imagens, a ler os livros grossos da saga "Harry Potter"?
Talvez o livro de Rowling tenha chegado num momento em que as crianças estivessem cansadas com a acumulação de cadáveres, tal como se vê hoje nos videogames, nos filmes e nas outras histórias. O que agrada nos livros dela é que eles criam uma relação mais autêntica com a morte, a amizade e o saber. Enquanto a morte é completamente banalizada e desumanizada nas demais obras, em Rowling ela é vivida como um acontecimento excepcional e trágico: é um momento grave que tem repercussões profundas na psicologia da criança. Além disso, a morte sempre toca um personagem que, no romance, era muito individualizado e conhecido pelos leitores, de modo que ela provoca uma emoção e uma tristeza reais.
É sobretudo essa relação com a morte que fascina?
Não apenas. Seu sucesso vem do fato de que a autora consegue construir um romance de aventuras para jovens adolescentes, dando a ele em parte a forma e o conteúdo tranquilizadores dos contos de fadas. Os videogames e filmes envolvem as crianças nas angústias em relação ao estado do planeta, o avanço das ciências, os conflitos entre os povos, mas não as tranquilizam jamais. Com Rowling é diferente: ela não fecha os olhos às angústias das crianças, mas esse mundo é colocado sob a proteção de um mágico. Temos a certeza de que um autor benfeitor, que tomou o partido de seu herói benevolente, domina a história. Essa incursão do maravilhoso no meio de um universo muito realista responde ao desejo de estar seguro quando o futuro é incerto.
Trata-se, ainda, de um romance que se lê muito bem à luz da psicanálise, de tal modo a relação edípica de Harry com seus pais é forte (por exemplo, Harry, no sonho, toma às vezes o lugar de seu pai junto à mãe). É um livro enfim que contém uma crítica social e uma moral: é preciso saber desobedecer às leis quando elas são injustas, é preciso saber preferir a generosidade ao dinheiro e à ambição social; e é preciso ser capaz de preferir a magia do sonho e da leitura ao regime materialista e técnico que deixa o mundo desencantado.



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