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Para autora de livro sobre o fenômeno Harry Potter, razões do sucesso da história do menino bruxo e dos filmes da Disney são distintas
Imaginários confrontados
Divulgação
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Cena do filme "Harry Potter e a Pedra Filosofal", em cartaz em São Paulo |
Alcino Leite Neto
de Paris
O universo de Disney é poético. O da saga
"Harry Potter" é prosaico e maravilhoso. O
primeiro tira sua força de construções visuais
e musicais. O segundo, do realismo dos romances de aventuras mesclado ao contos de fadas. É o
que pensa a pesquisadora e professora de filosofia Isabelle Smadja, autora de "Harry Potter - Les Raisons
d'un Succès" (As Razões de um Sucesso). O livro será
lançado nos próximos dias pela prestigiosa PUF (Presses Universitaires de France).
O ensaio se debruça sobre um enigma: como Joanne
K. Rowling, a autora escocesa de "Harry Potter", pôde
convencer as crianças de todo o mundo, cada vez mais
seduzidas por imagens, a ler os seus longos livros? Foi
um mistério que a própria Smadja enfrentou em casa,
ao ver os seus quatro filhos ficarem fascinados pelo personagem.
Segundo a pesquisadora, Rowling conseguiu trabalhar as angústias atuais das crianças dando a ela a forma
reconfortadora dos contos infantis. A magia faz sua
aparição num ambiente contemporâneo, onde a morte,
a guerra, o racismo, a separação dos pais, o futuro incerto estão presentes, mas jamais são banalizados. Para
Smadja, Harry Potter apareceu quando as crianças já
"estavam cansadas da acumulação de cadáveres" dos
videogames e filmes.
A transposição de "Harry Potter" para o cinema, na
opinião da pesquisadora, é um acontecimento único
para as crianças. Vai permitir que elas, depois de devorarem os livros, possam confrontar o mundo imaginário construído na leitura com o das imagens que lhes
chegam prontas. "Não é todos os dias que se oferece às
crianças a possibilidade de fazer com que um livro possa concorrer com um filme", diz Smadja, 40, na entrevista a seguir.
Há alguma coisa de Walt Disney nas histórias de Harry
Potter?
Não. Eu creio que o imaginário de Walt Disney seja
poético e tire sua potência daquilo que é muito visual
e muito musical. O universo de J.K. Rowling, por sua
vez, fascina menos por sua poesia do que por seu
conjunto de ressonâncias narrativas (há alusões aos
contos e às lendas, à mitologia, à Bíblia, à história
mundial...) e pela sinceridade de que são dotados os
seus personagens infantis.
E, no filme "Harry Potter", a sra. vê algo das produções
de Walt Disney?
Sim, claro. Isso se vê por exemplo a partir da diferença acentuada entre o livro e a sua adaptação para o
cinema. O livro começa pela descrição de um universo muito cotidiano, o de uma família londrina típica. Será apenas algumas páginas mais tarde que a
magia fará a sua aparição, quando o mago Dumbledore apaga todas as lâmpadas da rua dos Dursley ao
mesmo tempo, a fim de abrir o território à magia.
Ora, no filme, a primeira imagem já nos mostra
Dumbledore fazendo sua mágica. Isso me parece
muito significativo: para uma escritora como Rowling, há todo um trabalho de leitura, de preparação,
que é necessário antes de alcançar o sonho e a magia.
Enquanto para o realizador entrar numa sala de cinema é imediatamente entrar no mundo mágico,
como ocorre nos filmes de Disney.
O que ocorre com os contos infantis quando são transpostos para os quadrinhos e filmes, como fez Disney?
A capacidade que as crianças têm de investir imaginariamente na história e nos personagens é enfraquecida. A leitura nos coloca em uma relação solitária com nós mesmos e os nossos sonhos, enquanto
os filmes são acontecimentos públicos e supõem a
presença de outros espectadores. Talvez a transposição em filme seja menos eficaz para que a criança
possa, a partir do conto, construir uma personalidade original e uma identidade.
Mas com o filme "Harry Potter", as crianças que leram o livro antes vão poder confrontar o seu próprio imaginário a um outro, que não corresponde
àquele que elas concebiam quando fizeram a sua leitura. Haverá, ao menos uma vez, uma participação
muito ativa e crítica no olhar que elas vão lançar ao
filme. Não é todos os dias que se oferece às crianças a
possibilidade de fazer com que um livro possa concorrer com um filme.
Como a sra. situa as histórias de Harry Potter na mitologia dos contos de fadas?
A obra se constrói desde o início sobre o modelo da
Gata Borralheira. Ela dorme entre as cinzas da casa
de sua madrasta, enquanto Harry dorme embaixo
da escada da casa dos Dursley. Como ela, Harry é órfão e educado por pessoas detestáveis que o odeiam.
Contudo ele herdou de seu pai e de sua mãe qualidades como a coragem, que o farão triunfar sobre os
perigos.
A estrutura do conto de fadas se prolonga com a
tripla intervenção do maravilhoso sobre o menino
Harry Potter: uma primeira intervenção maléfica, a
do horrível Valdemort, que matou os seus pais e que
vai persegui-lo ao longo da narrativa; e duas outras,
benéficas, uma da mãe que morreu para salvar o seu
bebê miraculosamente, outra do mágico Dumbledore, que protege Harry na medida de seu poder.
Mas a autora substituiu as angústias do tempo de
Charles Perrault e que aparecem nos contos tradicionais (o medo do lobo em "Chapeuzinho Vermelho", da fome em "O Pequeno Polegar", da mortalidade das mulheres que dão a luz em "A Gata Borralheira"...) por uma angústia atual: a da guerra e do
ódio racista.
O que levou as crianças, num mundo dominado por imagens, a ler os livros grossos da saga "Harry Potter"?
Talvez o livro de Rowling tenha chegado num momento em que as crianças estivessem cansadas com
a acumulação de cadáveres, tal como se vê hoje nos
videogames, nos filmes e nas outras histórias. O que
agrada nos livros dela é que eles criam uma relação
mais autêntica com a morte, a amizade e o saber. Enquanto a morte é completamente banalizada e desumanizada nas demais obras, em Rowling ela é vivida
como um acontecimento excepcional e trágico: é um
momento grave que tem repercussões profundas na
psicologia da criança. Além disso, a morte sempre
toca um personagem que, no romance, era muito individualizado e conhecido pelos leitores, de modo
que ela provoca uma emoção e uma tristeza reais.
É sobretudo essa relação com a morte que fascina?
Não apenas. Seu sucesso vem do fato de que a autora
consegue construir um romance de aventuras para
jovens adolescentes, dando a ele em parte a forma e o
conteúdo tranquilizadores dos contos de fadas. Os
videogames e filmes envolvem as crianças nas angústias em relação ao estado do planeta, o avanço
das ciências, os conflitos entre os povos, mas não as
tranquilizam jamais. Com Rowling é diferente: ela
não fecha os olhos às angústias das crianças, mas esse mundo é colocado sob a proteção de um mágico.
Temos a certeza de que um autor benfeitor, que tomou o partido de seu herói benevolente, domina a
história. Essa incursão do maravilhoso no meio de
um universo muito realista responde ao desejo de
estar seguro quando o futuro é incerto.
Trata-se, ainda, de um romance que se lê muito
bem à luz da psicanálise, de tal modo a relação edípica de Harry com seus pais é forte (por exemplo,
Harry, no sonho, toma às vezes o lugar de seu pai
junto à mãe). É um livro enfim que contém uma crítica social e uma moral: é preciso saber desobedecer
às leis quando elas são injustas, é preciso saber preferir a generosidade ao dinheiro e à ambição social; e é
preciso ser capaz de preferir a magia do sonho e da
leitura ao regime materialista e técnico que deixa o
mundo desencantado.
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