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O BIÓGRAFO OLIVIER TODD FALA DOS
50 ANOS DA MORTE DE ALBERT
CAMUS, DAS DIVERGÊNCIAS COM
SARTRE E DA TENTATIVA DO
PRESIDENTE SARKOZY DE ENDEUSÁ-LO
"Não tenho
a impressão de
que Camus
tenha sido
simples: era
dilacerado
internamente"
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JOSYANE SAVIGNEAU
Ao rememorar o pensamento e o trabalho de Albert Camus, morto há 50
anos, Olivier Todd
destaca: "Foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um
artesão, muito mais que um filósofo da linhagem de Platão,
Kant, Sartre ou Wittgenstein".
Camus é o autor de uma das
obras mais significativas do século 20, que inclui romances
como "O Estrangeiro", "A Peste" e "A Queda". Recebeu, em
1957, o Nobel de Literatura.
Biógrafo do célebre escritor
francês -sobre quem escreveu
o livro "Albert Camus - Uma
Vida" (ed. Record)-, Todd avalia, em entrevista ao jornal "Le
Monde", que ele também foi
um "bom analista" do momento histórico em que viveu.
Camus atuou na resistência
ao nazismo durante a Segunda
Guerra, quando conheceu o escritor e filósofo existencialista
Jean-Paul Sartre (1905-80), de
quem ficou amigo.
Em 1951, lançou o livro de
ensaios "O Homem Revoltado"
[ed. Record], em que criticava a
opressão das ditaduras comunistas. A reação de Sartre ao livro motivou o rompimento da
amizade entre os dois. "Camus
se defendeu bem, mas a ruptura estava consumada", diz
Todd na entrevista abaixo.
PERGUNTA - Camus se tornou uma
espécie de ícone. Como o sr., biógrafo dele, explica isso?
OLIVIER TODD - As pessoas o mitificam no papel de alma bela.
Coisa que ele foi, para sua própria honra. Para mim, Camus
foi, em primeiro lugar, um escritor, um artista, um artesão,
muito mais que um filósofo da
linhagem de Platão, Kant, Sartre ou Wittgenstein.
Em dado momento, ele tentou exprimir uma filosofia à
francesa, extremamente literária. Voltou atrás. Muito cedo,
disse "não sou existencialista"
e, muito tarde, admitiu que não
era filósofo. Tanto melhor.
Ele não deixaria rastro nenhum na filosofia, concebida
como um saber totalizante. Sua
concepção do absurdo não resiste às contestações.
Para ele, é quase uma substância entre o homem angustiado e o mundo irracional; o
mundo não é nem absurdo nem
negro nem cor-de-rosa: ele é.
O absurdo não é, antes de
mais nada, a contingência? Camus foi um pensador político
que agiu com base em intuições, fundamentado em sua
própria experiência.
Nascido na Argélia [em 1913]
e morador de Argel, ele vinha
de uma família de "pieds-noirs"
[franceses nascidos na Argélia].
Sabia o que eram o proletariado
e a pobreza. Camus não foi um
visionário diante dos acontecimentos mundiais, mas se revelou bom analista do momento.
PERGUNTA - O que se diz desde então é que Camus sempre teria tido
razão e que Sartre teria sempre se
enganado.
TODD - Camus morreu em
1960 [em um acidente de carro]. Não sabemos como teria
reagido aos acontecimentos
-por exemplo, à Guerra do
Vietnã- sobre os quais Sartre
não demorou a manifestar sua
posição.
Como muitos intelectuais
franceses, Camus não entendia
nada de economia. Foi um homem politicamente honesto,
mesmo nos casos em que se enganou -com relação à Argélia- e em que teve razão -com
relação ao comunismo. Para
compreendê-lo, é preciso conhecer toda sua vida política.
Jovem, excelente jornalista
que escreveu no "Alger Républicain", antes da guerra, denunciou a miséria na Cabília [a
leste da capital da Argélia].
Foi repórter prodigioso, mais
fascinante que o editorialista
que se tornaria no "Combat" ou
no "L'Express" -esse é um
ponto de vista muito pessoal,
reconheço.
Ingressou no Partido Comunista argelino em 1934 e se
afastou dele porque o partido
não defendia suficientemente
os nacionalistas argelinos.
Seu silêncio com relação a
sua adesão ao partido me deixou perplexo. Quando, em
1945, negou ter sido comunista,
estava prestes a embarcar para
os EUA. Naquela época, os
americanos não davam vistos
de entrada aos membros do
Partido Comunista. Foi um pecadilho menor para um homem
que odiava a mentira.
Seu grande deslize foi a famosa e infeliz declaração, pouco lógica, que deu em Estocolmo, na Suécia, depois de receber o Prêmio Nobel, em 1957:
"Creio na Justiça, mas eu defenderia minha mãe antes da
Justiça". O jornal "Le Monde" a
publicou fora de contexto. Beuve-Méry [jornalista, 1902-89]
tinha previsto: "Em Estocolmo,
Camus só dirá besteiras."
Sobre Sartre e Camus, é preciso também voltar ao contexto
quanto à discussão da revista
"Les Temps Modernes" a respeito de "O Homem Revoltado". Trata-se de um monumento antológico da história literária, não da história política.
Tirando 50 páginas sobre o
comunismo e o Marx messiânico, não gosto desse livro, misto
de literatura, política, filosofia,
Rimbaud, Breton...
Uma parte de "O Homem Revoltado" tinha sido publicada
na "Temps Modernes". Ingênuo, Camus esperava uma crítica positiva. Ele encontrou
Sartre, que o preveniu: haverá
reservas. Perplexo e acabrunhado, Camus descobriu uma
crítica arrasadora e maldosa do
filósofo Francis Jeanson.
Magoado e um tanto quanto
arrogante, Camus começou seu
artigo em resposta às críticas
com "senhor diretor", o que irritou Sartre.
Camus se defendeu bem, mas
a ruptura estava consumada.
Em 1954, em "Os Mandarins"
[ed. Nova Fronteira], Simone
de Beauvoir faz de Camus um
personagem repugnante, até
mesmo colaboracionista.
Foi sempre um homem marcado por dúvidas, incerto quanto a seu talento. Já Sartre acreditava na genialidade dele. Politicamente, sou mais próximo
de Camus, mesmo sabendo que
dizer isso hoje é fácil.
Eu gostaria também que fosse lembrado que Sartre, criptocomunista, não se enganou
sempre. Por exemplo, com relação a Israel e aos palestinos,
com relação a Biafra [atual Nigéria]. É preciso parar de dizer
que ele nos enganou. Nós nos
enganamos com ele.
Eu tinha 19 anos quando conheci Sartre, em 1948. Ele teve
a gentileza de me receber com
bastante frequência. Conheci a
obra de Camus. Não o homem.
Chamou minha atenção o lado direto e simples de Sartre.
Não tenho a impressão de que
Camus tenha sido simples. Era
muito dilacerado internamente. As relações entre os dois foram assimétricas. Camaradagem, cumplicidade, festas, mas
não amizade. Tiveram atitudes
muito diferentes com relação à
ação. Camus pertenceu à Resistência ativa. Sartre, não.
PERGUNTA - Quais são os livros de
Camus que o sr. prefere?
TODD - "O Estrangeiro" [ed.
Record], "Noces" [Bodas,
1938], por seu lado lírico puro,
sem grandiloquência. E, sobretudo, "A Queda" [ed. Record].
Eu fazia perguntas frequentes a
Sartre sobre os livros de Camus. Ele preferia "A Queda",
"porque, nele, investiu e se escondeu por inteiro".
PERGUNTA - E na obra de Sartre?
TODD - Também ele é, para
mim, escritor antes de mais nada, ainda que se visse como filósofo que desvelava o mundo em
sua totalidade. Gosto de "A
Náusea" [ed. Nova Fronteira] e
de seus romances. Sobretudo
"A Infância de um Chefe" [conto do livro "O Muro", ed. Nova
Fronteira].
Gosto, sobretudo, de "As Palavras" [ed. Nova Fronteira],
um diamante negro que faz
contraponto a "A Queda". Em
"Situações" [ed. Cosac Naify],
há coisas extraordinárias sobre
o engajamento e um amontoado confuso político-dialético.
PERGUNTA - O que pensa das relações entre Camus e André Malraux?
TODD - Foram muito importantes. Também foram assimétricas. A correspondência entre
eles é fascinante. Camus era
um jovem desconhecido, e eles
se escreviam de igual para
igual. Foi graças a Pascal Pia e a
Malraux que "O Estrangeiro"
foi publicado.
Creio que Malraux nunca tenha comentado a obra de Camus. Quando Camus recebeu o
Nobel, ele disse: "É Malraux
quem deveria tê-lo ganho".
Nas relações de homem a homem de Camus, a sombra do
pai que ele nunca conheceu se
faz sentir a todo momento.
Foi o caso com Jean Grenier,
Malraux, Sartre, René Clair
-embora com este último tenha havido uma amizade um
pouco solene, a julgar pelas cartas trocadas.
Como estou falando sobre
documentos, é preciso mencionar que ainda há muita coisa
inédita. A correspondência
com certas mulheres importantes da vida de Camus, entre
elas Maria Casarès ou Mi, o último amor de Camus. Essas
cartas foram doadas à Biblioteca Nacional da França.
Ver Camus como ícone descarnado não é lhe render homenagem. É preciso conservá-lo vivo em sua complexidade e
suas contradições.
Nos últimos meses, vem sendo feito um grande esforço para
repintar o ícone. Os pretorianos intelectuais do Eliseu [palácio do governo francês] estão
lançando uma grande manobra
para, imagine só, "panteonizá-lo"! [leia texto ao lado]
Camus não é nem exemplar
nem edificante. Ele nos leva a
refletir. Que as pessoas o leiam,
em lugar de repetir generalidades sem compreender seu percurso. Gosto de uma resposta
que ele deu em uma de suas últimas entrevistas. Perguntaram-lhe: "Sr. Camus, o sr. ainda
faz parte da esquerda?". "Sim,
apesar dela e apesar de mim."
Atual, não?
A íntegra desta entrevista saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain .
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