São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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Leia trecho de ensaio de Antonio Candido sobre "Grande Sertão: Veredas"
O homem dos avessos

ANTONIO CANDIDO

Na extraordinária obra-prima "Grande Sertão: Veredas" há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar.
Numa literatura de imaginação vasqueira, onde a maioria costeia o documento bruto, é deslumbrante essa navegação no mar alto, esse jorro de imaginação criadora na linguagem, na composição, no enredo, na psicologia. Pode-se adotar como roteiro crítico o ponto de vista de Cavalcanti Proença, no admirável estudo sobre o estilo de Guimarães Rosa que publicou na "Revista do Livro", onde menciona a "ampla utilização de virtualidades da nossa língua" (1). Para o artista, o mundo e o homem são abismos de virtualidades, e ele será tanto mais original quanto mais fundo baixar na pesquisa, trazendo como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscientemente propostos. Se o puder fazer, estará criando o seu mundo, o seu homem, mais elucidativos que os da observação comum, porque feitos com as sementes que permitem chegar a uma realidade em potência, mais ampla e mais significativa. Cavalcanti Proença mostrou como Guimarães Rosa penetra no miolo do idioma, alcançando uma espécie de posição-chave, a partir da qual pôde refazer a seu modo o caminho da expressão, inventando uma linguagem capaz de conduzir a alta tensão emocional da obra.
Registrando o aparecimento desta numa resenha breve, sugeri, sem especificar, esse caráter de invenção baseada num ponto de partida em que tudo estivesse no primórdio absoluto, na esfera do puro potencial. Parecia que, de fato, o autor quis e conseguiu elaborar um universo autônomo, composto de realidades expressionais e humanas que se articulam em relações originais e harmoniosas, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma. Na resenha, utilizei o exemplo da música e lembrei a posição de Bela Bartók, forjando um estilo erudito, refinadíssimo, a partir do material folclórico, recolhido em abundância e, depois, elaborado de maneira a dar impressão que o compositor se havia posto na nascedouro da inspiração do povo, para abrir um caminho que permite chegar à expressão universal.
A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico -tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte- para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o sertão é o mundo.


Nota:
1. M. Cavalcanti Proença, "Alguns Aspectos formais de "Grande Sertão: Veredas'", "Revista do Livro", nš 5, março de 1957, págs. 37-54. Este estudo foi posteriormente incluído em "Trilhas do "Grande Sertão'", "Cadernos de Cultura", Ministério da Educação e Cultura, Rio, 1958, o qual, por sua vez, veio a fazer parte do livro "Augusto dos Anjos e Outros Ensaios", José Olímpio, Rio, 1959, págs. 151-241.


Trecho extraído de ensaio publicado em "Tese e Antítese" (Cia. Ed. Nacional).



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