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Leia trecho de ensaio de Antonio Candido sobre "Grande Sertão: Veredas"
O homem dos avessos
ANTONIO CANDIDO
Na extraordinária obra-prima
"Grande Sertão: Veredas" há de
tudo para quem souber ler, e nela
tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá
abordá-la a seu gosto, conforme o
seu ofício; mas em cada aspecto
aparecerá o traço fundamental do
autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar.
Numa literatura de imaginação
vasqueira, onde a maioria costeia
o documento bruto, é deslumbrante essa navegação no mar alto, esse jorro de imaginação criadora na linguagem, na composição, no enredo, na psicologia. Pode-se adotar como roteiro crítico o
ponto de vista de Cavalcanti
Proença, no admirável estudo sobre o estilo de Guimarães Rosa
que publicou na "Revista do Livro", onde menciona a "ampla
utilização de virtualidades da nossa língua" (1). Para o artista, o
mundo e o homem são abismos de
virtualidades, e ele será tanto mais
original quanto mais fundo baixar
na pesquisa, trazendo como resultado um mundo e um homem diferentes, compostos de elementos
que deformou a partir dos modelos reais, consciente ou inconscientemente propostos. Se o puder
fazer, estará criando o seu mundo,
o seu homem, mais elucidativos
que os da observação comum,
porque feitos com as sementes que
permitem chegar a uma realidade
em potência, mais ampla e mais
significativa. Cavalcanti Proença
mostrou como Guimarães Rosa
penetra no miolo do idioma, alcançando uma espécie de posição-chave, a partir da qual pôde
refazer a seu modo o caminho da
expressão, inventando uma linguagem capaz de conduzir a alta
tensão emocional da obra.
Registrando o aparecimento
desta numa resenha breve, sugeri,
sem especificar, esse caráter de invenção baseada num ponto de
partida em que tudo estivesse no
primórdio absoluto, na esfera do
puro potencial. Parecia que, de fato, o autor quis e conseguiu elaborar um universo autônomo, composto de realidades expressionais
e humanas que se articulam em relações originais e harmoniosas,
superando por milagre o poderoso
lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma.
Na resenha, utilizei o exemplo da
música e lembrei a posição de Bela
Bartók, forjando um estilo erudito, refinadíssimo, a partir do material folclórico, recolhido em
abundância e, depois, elaborado
de maneira a dar impressão que o
compositor se havia posto na nascedouro da inspiração do povo,
para abrir um caminho que permite chegar à expressão universal.
A experiência documentária de
Guimarães Rosa, a observação da
vida sertaneja, a paixão pela coisa
e pelo nome da coisa, a capacidade
de entrar na psicologia do rústico
-tudo se transformou em significado universal graças à invenção,
que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais
a arte não sobrevive: dor, júbilo,
ódio, amor, morte- para cuja órbita nos arrasta a cada instante,
mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o sertão é o
mundo.
Nota:
1. M. Cavalcanti Proença, "Alguns Aspectos formais de "Grande Sertão: Veredas'",
"Revista do Livro", nš 5, março de 1957,
págs. 37-54. Este estudo foi posteriormente incluído em "Trilhas do "Grande
Sertão'", "Cadernos de Cultura", Ministério
da Educação e Cultura, Rio, 1958, o qual,
por sua vez, veio a fazer parte do livro
"Augusto dos Anjos e Outros Ensaios", José Olímpio, Rio, 1959, págs. 151-241.
Trecho extraído de ensaio publicado em "Tese e
Antítese" (Cia. Ed. Nacional).
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