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A redução da política
LEIA A SEGUIR TEXTO INÉDITO ESCRITO PARA INTRODUZIR A EDIÇÃO BRASILEIRA DE "CONVITE A UMA
SOCIOLOGIA REFLEXIVA", QUE SERÁ LANÇADO PELA EDITORA RELUME-DUMARÁ ATÉ O FINAL DE MARÇO
por Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant
Quando de sua publicação original em inglês, em 1992, este livro, fruto de uma colaboração
transatlântica de vários anos,
pretendia inovar ao mesmo tempo por
seu tema e por sua forma, ambos concebidos para prolongar e amplificar o que
havia sido no início uma experiência de
pedagogia da pesquisa. Seu objetivo:
provocar um curto-circuito nos intermediários habituais, contornar as reservas
de caça, esclarecer as zonas de sombra e
aplainar os mal-entendidos que cercam
a "teoria da prática" desenvolvida e aplicada por Pierre Bourdieu e seus colaboradores há três décadas numa vasta frente empírica. Em suma, afastar obstáculos
e lançar passarelas visando a facilitar a
circulação internacional de ferramentas
de construção sociológica, cuja fecundidade se afirma e cresce à medida que se
amplia seu campo de aplicação.
Dentre esses obstáculos -dificuldades
linguísticas, acidentes de tradução, diferenças filosóficas, convicções metodológicas, interferências dos inconscientes
nacionais que servem de suporte invisível aos diversos campos intelectuais de
recepção e interesses universitários que
com demasiada frequência determinam
a migração das idéias através de fronteiras-, o mais tenaz é sem dúvida o que se
refere às especificidades da tradição epistemológica na qual se enraíza o projeto,
isto é, o racionalismo histórico, associado aos trabalhos de Gaston Bachelard,
Georges Canguilhem, Jean Cavaillès e
Alexandre Koyré. Essa tradição, decididamente internacionalista e no entanto
pouco conhecida fora da França (salvo,
indiretamente e sob uma forma muito
modificada, por meio da obra do primeiro Foucault), oferece à sociologia uma
concepção da ciência ativa e (auto)crítica, liberta dos dogmas siameses da imaculada concepção e do instrumentalismo eternamente maculado por suas origens, e portanto propicia uma via de saída da alternativa estéril entre o positivismo instrumental que domina a ciência
social norte-americana e o hermeneutismo generalizado que lhe serve de contrapartida na maioria dos outros países (1).
Vale dizer de passagem que a perspectiva
sociológica aqui defendida e exemplificada se inscreve em oposição frontal a
essa espécie de niilismo científico mestiço de relativismo cultural e moral que se
deu o nome grandiloquente de "pós-modernismo" e que só faz adaptar ao gosto
deste início de milênio a velha recusa filosófica e literária da possibilidade de
uma ciência da sociedade que Durkheim
já confrontava em sua época em suas batalhas com o establishment sorbonnista.
A forma do livro decorria desde então
aos nossos olhos diretamente do objetivo desejado: o diálogo crítico se oferecia
de fato como o melhor ou mesmo o único meio de escapar ao peso de um "tractatus", enquanto dava uma visão de conjunto de um projeto de pesquisa difícil de
conter nas disciplinas e nas rotinas de
uma exposição canônica. Ao custo de
um longo trabalho de compilação e de
análise bibliográficas, Loïc Wacquant,
que teve a iniciativa da interrogação, pôde se fazer o porta-voz de todo o campo
das ciências sociais e expor Pierre Bourdieu à completa gama de problemas, objeções e críticas que lhe poderiam ser dirigidas pelo conjunto dos pesquisadores,
isto é, potencialmente, dos leitores. Isso
com o fim de transmitir a estes, sob uma
forma ao mesmo tempo coesa e articulada, os princípios geradores, os conceitos-chave e os principais resultados de uma
série integrada de pesquisas inseparavelmente teóricas e empíricas.
O que é feito dele, dez anos depois? A
obra, assim como o conhecimento e o reconhecimento da obra, progrediram de
maneira exponencial por todo o mundo,
notadamente no Brasil, onde se multiplicaram os trabalhos disponíveis em tradução mas também e sobretudo as pesquisas brasileiras que eles inspiraram
nas disciplinas e nos domínios públicos
mais variados, do campesinato aos intelectuais, passando pela escola e a economia, a arte e o esporte, a imigração e a dominação de gênero, o consumo e o Estado. A tal ponto que hoje seria praticamente impossível apresentar, como se
pôde fazer em 1992, um panorama completo em escala internacional desses trabalhos, o que no entanto daria a plena
medida da potência heurística e da universalidade de um sistema conceitual
inicialmente elaborado a propósito de
um universo social muito particular.
Quanto à reflexividade, que é a razão
de ser e o coração do livro, ela se impõe
mais que nunca como um imperativo
absoluto aos que querem resistir eficazmente a todos os conceitos medíocres
-"globalização" e "flexibilidade",
"multiculturalismo" e "comunidade",
"identidade", "hibridez", "fragmentação" etc.- cuja difusão, dentro e fora do
campo universitário, acompanha no
mundo inteiro a implementação da política neoliberal de destruição do Estado
social e de suas conquistas históricas, entre as quais a autonomia da ciência social
e, portanto, sua própria existência. É
com efeito por meio de palavras que funcionam como palavras de ordem invisíveis, que carregam imperativos políticos
apresentados também como destinos
históricos inevitáveis, que, como tentamos demonstrar alhures (2), se impõe
em todos os países do planeta, com a
cumplicidade ativa de uma importante
fração dos intelectuais, uma visão do
mundo que tende a reduzir a política à
ética, transformando cada agente social
num pequeno empresário de sua própria
vida, responsável por seu sucesso mas
também, em contrapartida, por sua pobreza econômica, cultural e simbólica.
Notas:
1. Ver Pierre Bourdieu, "Science de la Science et
Réflexivité", Paris, Raisons d'Agir Editions, Collection Cours et Travaux, 2001.
2. Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, "Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista", in "Escritos de
Educação", Petrópolis, Editora Vozes, 1999.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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