São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

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A redução da política

LEIA A SEGUIR TEXTO INÉDITO ESCRITO PARA INTRODUZIR A EDIÇÃO BRASILEIRA DE "CONVITE A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA", QUE SERÁ LANÇADO PELA EDITORA RELUME-DUMARÁ ATÉ O FINAL DE MARÇO

por Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant

Quando de sua publicação original em inglês, em 1992, este livro, fruto de uma colaboração transatlântica de vários anos, pretendia inovar ao mesmo tempo por seu tema e por sua forma, ambos concebidos para prolongar e amplificar o que havia sido no início uma experiência de pedagogia da pesquisa. Seu objetivo: provocar um curto-circuito nos intermediários habituais, contornar as reservas de caça, esclarecer as zonas de sombra e aplainar os mal-entendidos que cercam a "teoria da prática" desenvolvida e aplicada por Pierre Bourdieu e seus colaboradores há três décadas numa vasta frente empírica. Em suma, afastar obstáculos e lançar passarelas visando a facilitar a circulação internacional de ferramentas de construção sociológica, cuja fecundidade se afirma e cresce à medida que se amplia seu campo de aplicação. Dentre esses obstáculos -dificuldades linguísticas, acidentes de tradução, diferenças filosóficas, convicções metodológicas, interferências dos inconscientes nacionais que servem de suporte invisível aos diversos campos intelectuais de recepção e interesses universitários que com demasiada frequência determinam a migração das idéias através de fronteiras-, o mais tenaz é sem dúvida o que se refere às especificidades da tradição epistemológica na qual se enraíza o projeto, isto é, o racionalismo histórico, associado aos trabalhos de Gaston Bachelard, Georges Canguilhem, Jean Cavaillès e Alexandre Koyré. Essa tradição, decididamente internacionalista e no entanto pouco conhecida fora da França (salvo, indiretamente e sob uma forma muito modificada, por meio da obra do primeiro Foucault), oferece à sociologia uma concepção da ciência ativa e (auto)crítica, liberta dos dogmas siameses da imaculada concepção e do instrumentalismo eternamente maculado por suas origens, e portanto propicia uma via de saída da alternativa estéril entre o positivismo instrumental que domina a ciência social norte-americana e o hermeneutismo generalizado que lhe serve de contrapartida na maioria dos outros países (1). Vale dizer de passagem que a perspectiva sociológica aqui defendida e exemplificada se inscreve em oposição frontal a essa espécie de niilismo científico mestiço de relativismo cultural e moral que se deu o nome grandiloquente de "pós-modernismo" e que só faz adaptar ao gosto deste início de milênio a velha recusa filosófica e literária da possibilidade de uma ciência da sociedade que Durkheim já confrontava em sua época em suas batalhas com o establishment sorbonnista. A forma do livro decorria desde então aos nossos olhos diretamente do objetivo desejado: o diálogo crítico se oferecia de fato como o melhor ou mesmo o único meio de escapar ao peso de um "tractatus", enquanto dava uma visão de conjunto de um projeto de pesquisa difícil de conter nas disciplinas e nas rotinas de uma exposição canônica. Ao custo de um longo trabalho de compilação e de análise bibliográficas, Loïc Wacquant, que teve a iniciativa da interrogação, pôde se fazer o porta-voz de todo o campo das ciências sociais e expor Pierre Bourdieu à completa gama de problemas, objeções e críticas que lhe poderiam ser dirigidas pelo conjunto dos pesquisadores, isto é, potencialmente, dos leitores. Isso com o fim de transmitir a estes, sob uma forma ao mesmo tempo coesa e articulada, os princípios geradores, os conceitos-chave e os principais resultados de uma série integrada de pesquisas inseparavelmente teóricas e empíricas. O que é feito dele, dez anos depois? A obra, assim como o conhecimento e o reconhecimento da obra, progrediram de maneira exponencial por todo o mundo, notadamente no Brasil, onde se multiplicaram os trabalhos disponíveis em tradução mas também e sobretudo as pesquisas brasileiras que eles inspiraram nas disciplinas e nos domínios públicos mais variados, do campesinato aos intelectuais, passando pela escola e a economia, a arte e o esporte, a imigração e a dominação de gênero, o consumo e o Estado. A tal ponto que hoje seria praticamente impossível apresentar, como se pôde fazer em 1992, um panorama completo em escala internacional desses trabalhos, o que no entanto daria a plena medida da potência heurística e da universalidade de um sistema conceitual inicialmente elaborado a propósito de um universo social muito particular. Quanto à reflexividade, que é a razão de ser e o coração do livro, ela se impõe mais que nunca como um imperativo absoluto aos que querem resistir eficazmente a todos os conceitos medíocres -"globalização" e "flexibilidade", "multiculturalismo" e "comunidade", "identidade", "hibridez", "fragmentação" etc.- cuja difusão, dentro e fora do campo universitário, acompanha no mundo inteiro a implementação da política neoliberal de destruição do Estado social e de suas conquistas históricas, entre as quais a autonomia da ciência social e, portanto, sua própria existência. É com efeito por meio de palavras que funcionam como palavras de ordem invisíveis, que carregam imperativos políticos apresentados também como destinos históricos inevitáveis, que, como tentamos demonstrar alhures (2), se impõe em todos os países do planeta, com a cumplicidade ativa de uma importante fração dos intelectuais, uma visão do mundo que tende a reduzir a política à ética, transformando cada agente social num pequeno empresário de sua própria vida, responsável por seu sucesso mas também, em contrapartida, por sua pobreza econômica, cultural e simbólica.
Notas:
1. Ver Pierre Bourdieu, "Science de la Science et Réflexivité", Paris, Raisons d'Agir Editions, Collection Cours et Travaux, 2001.
2. Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, "Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista", in "Escritos de Educação", Petrópolis, Editora Vozes, 1999.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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