São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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Em "Teoria do Drama Burguês", Peter Szondi disseca os modos de ascensão da classe social em autores como Molière, Lessing e Diderot

O palco na sala de estar

BARBARA HELIODORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Toda nova forma na dramaturgia no teatro do Ocidente vem do fato de a forma anterior não corresponder mais aos anseios da sociedade na qual ela é criada. Sobre uma tal alteração se debruça a "Teoria do Drama Burguês", de Peter Szondi (1929-71), analisando as cruciais mudanças que tiveram lugar no séc. 18. O autor, nascido em Budapeste [Hungria], fez carreira acadêmica na Alemanha, e o livro é exemplo da melhor erudição alemã, embora os estudos apresentados sejam notas de preleções em aula, sem a elaboração final que lhes daria seu autor.
Mesmo afirmando Sergio de Carvalho, em sua apresentação, que o livro tem muito a ensinar ao Brasil, nem mesmo no período colonial grassou aqui o absolutismo e a rígida hierarquização da sociedade européia do século 18 -cujos primeiros abalos a obra registra- e nem sequer tivemos uma dramaturgia de forma ou espírito neoclássicos.

Conjunto desconhecido
Por densa e erudita que seja a argumentação de Szondi, o maior tropeço para a apreciação da "Teoria do Drama Burguês", no Brasil, está nos exemplos usados, pois o conjunto tem por base obras que o autor vê como cruciais para a progressiva afirmação da burguesia, porém quase totalmente desconhecidas no Brasil: "O Mercador de Londres" ("The London Merchant"), de George Lillo [1693-1739], "O Pai de Família" e "O Filho Natural", de Denis Diderot [1713-84], e "O Preceptor" (Paz e Terra), de Jakob Lenz [1751-92].
A primeira estreou com grande sucesso em Londres, e boa parte do primeiro estudo salienta sua forte influência sobre a dramaturgia da França e da Alemanha. Szondi ressalta em Lillo a característica de autoconhecimento da burguesia, privada de qualquer aspecto revolucionário ou de conflito de classes.
É a postura dessa burguesia, representante de uma primeira fase do capitalismo, no caso, com a afirmação da dignidade do trabalho, da respeitabilidade da poupança e do puritano culto das virtudes domésticas, que aparece na "tragédia burguesa" de Lillo (1731) -a qual põe em dúvida a chamada cláusula dos estados de Aristóteles, ou seja, contesta o preceito de que o protagonista trágico deve ser rei ou ocupar posição destacada e significativa.
Lillo é contemporâneo exato de La Chaussée [1692-1754], que, na mesma década, é o criador, na França, da "comédie larmoyante" -a comédia lacrimejante-, que, condenando o erro e sentimentalizando o acerto, fez o deleite das platéias parisienses, agora burguesas, com a compaixão sendo substituída pelo sentimento.

Sedução e perdição
A peça de Lillo fala da sedução e perdição do jovem e ingênuo aprendiz de um grande mercador londrino por uma "decaída". A virtuosa filha do mercador tenta salvar o jovem por crer na bondade essencial do jovem Barnwell. O rapaz, instigado pela amante, mata o tio; mas não tem coragem de roubar o morto. Ambos vão para a forca, ela orgulhosa de seus crimes, ele arrependido e esperando que sua história sirva de alerta para outros. "O Mercador de Londres", aliás, foi por muito tempo encenada uma vez por ano, financiada por mercadores que mandavam seus aprendizes assistirem-lhe.
O que o ensaio investiga com minúcia é a obra como símbolo do orgulho da burguesia trabalhadora com sua ética de trabalho e responsabilidade, contrastada com o ócio da nobreza inútil e ocupada em gastar o que outros ganhavam para ela.
A comédia lacrimejante de La Chaussé, que tanto agradava a nova platéia, abriu o caminho para o drama burguês de Denis Diderot, cuja principal característica é a transposição da tragédia da área pública para a privada. Infelizmente, nem mesmo as duas peças mais famosas de Diderot que analisa Szondi alcançaram sucesso; mas o fato de se passarem ambas na sala de estar de uma família burguesa ilustra a mudança do universo retratado no palco, imitando o da vida real.
O que de mais importante Diderot fez pelo teatro foram seus escritos teóricos a respeito da dramaturgia e da interpretação, e é na relação da teoria com a prática que Szondi melhor expõe a exemplar contribuição do enciclopedista francês para a retratação das mudanças sociais que antecederam a Revolução Francesa.

Clareza
O menos satisfatório dos ensaios é o que trata da obra de Jakob Lenz, mais tardia e já caracterizada pela revolta contra o poder absoluto e ligada ao movimento "Sturm und Drang" [Tempestade e Ímpeto]. O pressuposto de conhecimento de sua obra, para o público brasileiro em geral, é um engano, pois nem mesmo "O Preceptor", sua peça mais famosa, tem muitos leitores.
Com menos referências a suas principais obras dramáticas, Szondi fala da importância de Lessing [1729-81], e a leitura, em geral, é enriquecida pela clareza com que o autor distingue os modos da ascensão burguesa em cada país e, portanto, nas obras ali produzidas.
O volume é completado por interessantes notas para uma análise de "Miss Sara Sampson" que revelam o processo crítico de Szondi, e por ensaios de dois outros autores, um sobre Aristóteles, outro sobre Molière (e seu retrato do "Burguês Fidalgo"), A tradução é de Luiz Sérgio Repa, que, apesar de um vocabulário bastante erudito, adere à norma do desaparecimento do subjuntivo no português do Brasil.


Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (ed. Perspectiva).

Teoria do Drama Burguês
272 págs., R$ 45,00 de Peter Szondi. Tradução de Luiz Sérgio Repa. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3218-1444).



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