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Em "Teoria do Drama Burguês", Peter Szondi disseca os modos de
ascensão da classe social em autores como Molière, Lessing e Diderot
O palco na sala de estar
BARBARA HELIODORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Toda nova forma na dramaturgia no teatro do Ocidente
vem do fato de a forma anterior não corresponder mais
aos anseios da sociedade na qual ela
é criada. Sobre uma tal alteração se
debruça a "Teoria do Drama Burguês", de Peter Szondi (1929-71),
analisando as cruciais mudanças
que tiveram lugar no séc. 18. O autor,
nascido em Budapeste [Hungria],
fez carreira acadêmica na Alemanha, e o livro é exemplo da melhor
erudição alemã, embora os estudos
apresentados sejam notas de preleções em aula, sem a elaboração final
que lhes daria seu autor.
Mesmo afirmando Sergio de Carvalho, em sua apresentação, que o livro tem muito a ensinar ao Brasil,
nem mesmo no período colonial
grassou aqui o absolutismo e a rígida
hierarquização da sociedade européia do século 18 -cujos primeiros
abalos a obra registra- e nem sequer tivemos uma dramaturgia de
forma ou espírito neoclássicos.
Conjunto desconhecido
Por densa e erudita que seja a argumentação de Szondi, o maior tropeço para a apreciação da "Teoria do
Drama Burguês", no Brasil, está nos
exemplos usados, pois o conjunto
tem por base obras que o autor vê
como cruciais para a progressiva
afirmação da burguesia, porém quase totalmente desconhecidas no Brasil: "O Mercador de Londres" ("The
London Merchant"), de George Lillo
[1693-1739], "O Pai de Família" e "O
Filho Natural", de Denis Diderot
[1713-84], e "O Preceptor" (Paz e
Terra), de Jakob Lenz [1751-92].
A primeira estreou com grande sucesso em Londres, e boa parte do
primeiro estudo salienta sua forte
influência sobre a dramaturgia da
França e da Alemanha. Szondi ressalta em Lillo a característica de autoconhecimento da burguesia, privada de qualquer aspecto revolucionário ou de conflito de classes.
É a postura dessa burguesia, representante de uma primeira fase do capitalismo, no caso, com a afirmação
da dignidade do trabalho, da respeitabilidade da poupança e do puritano culto das virtudes domésticas,
que aparece na "tragédia burguesa"
de Lillo (1731) -a qual põe em dúvida a chamada cláusula dos estados
de Aristóteles, ou seja, contesta o
preceito de que o protagonista trágico deve ser rei ou ocupar posição
destacada e significativa.
Lillo é contemporâneo exato de La
Chaussée [1692-1754], que, na mesma década, é o criador, na França, da
"comédie larmoyante" -a comédia
lacrimejante-, que, condenando o
erro e sentimentalizando o acerto,
fez o deleite das platéias parisienses,
agora burguesas, com a compaixão
sendo substituída pelo sentimento.
Sedução e perdição
A peça de Lillo fala da sedução e
perdição do jovem e ingênuo aprendiz de um grande mercador londrino por uma "decaída". A virtuosa filha do mercador tenta salvar o jovem por crer na bondade essencial
do jovem Barnwell. O rapaz, instigado pela amante, mata o tio; mas não
tem coragem de roubar o morto.
Ambos vão para a forca, ela orgulhosa de seus crimes, ele arrependido e
esperando que sua história sirva de
alerta para outros. "O Mercador de
Londres", aliás, foi por muito tempo
encenada uma vez por ano, financiada por mercadores que mandavam
seus aprendizes assistirem-lhe.
O que o ensaio investiga com minúcia é a obra como símbolo do orgulho da burguesia trabalhadora
com sua ética de trabalho e responsabilidade, contrastada com o ócio
da nobreza inútil e ocupada em gastar o que outros ganhavam para ela.
A comédia lacrimejante de La
Chaussé, que tanto agradava a nova
platéia, abriu o caminho para o drama burguês de Denis Diderot, cuja
principal característica é a transposição da tragédia da área pública para
a privada. Infelizmente, nem mesmo
as duas peças mais famosas de Diderot que analisa Szondi alcançaram
sucesso; mas o fato de se passarem
ambas na sala de estar de uma família burguesa ilustra a mudança do
universo retratado no palco, imitando o da vida real.
O que de mais importante Diderot
fez pelo teatro foram seus escritos
teóricos a respeito da dramaturgia e
da interpretação, e é na relação da
teoria com a prática que Szondi melhor expõe a exemplar contribuição
do enciclopedista francês para a retratação das mudanças sociais que
antecederam a Revolução Francesa.
Clareza
O menos satisfatório dos ensaios é
o que trata da obra de Jakob Lenz,
mais tardia e já caracterizada pela revolta contra o poder absoluto e ligada ao movimento "Sturm und
Drang" [Tempestade e Ímpeto]. O
pressuposto de conhecimento de
sua obra, para o público brasileiro
em geral, é um engano, pois nem
mesmo "O Preceptor", sua peça
mais famosa, tem muitos leitores.
Com menos referências a suas
principais obras dramáticas, Szondi
fala da importância de Lessing
[1729-81], e a leitura, em geral, é enriquecida pela clareza com que o autor
distingue os modos da ascensão burguesa em cada país e, portanto, nas
obras ali produzidas.
O volume é completado por interessantes notas para uma análise de
"Miss Sara Sampson" que revelam o
processo crítico de Szondi, e por ensaios de dois outros autores, um sobre Aristóteles, outro sobre Molière
(e seu retrato do "Burguês Fidalgo"),
A tradução é de Luiz Sérgio Repa,
que, apesar de um vocabulário bastante erudito, adere à norma do desaparecimento do subjuntivo no
português do Brasil.
Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (ed. Perspectiva).
Teoria do Drama Burguês
272 págs., R$ 45,00
de Peter Szondi. Tradução de Luiz Sérgio Repa. Ed. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º
andar, CEP 01223-010, São Paulo, SP, tel. 0/
xx/11/ 3218-1444).
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