São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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+ literatura

O crítico Harold Bloom explica como a frustração sexual permeia as fábulas de Hans Christian Andersen, que são marcadas pelo projeto de permanecer menino em um mundo ostensivamente adulto

A criança no tempo

HAROLD BLOOM

Muitos ainda lêem os contos de fada de Hans Christian Andersen, quer sejam crianças, quer sejam pais que os lêem para seus filhos, mas tendem a confundi-lo com o sonhador simpático representado por Danny Kaye na biografia filmada, não muito correta ["Hans Christian Andersen" (1952), de Charles Vidor]. O Hans Christian Andersen real compôs uma gama extraordinária de histórias voltadas tanto às crianças quanto aos leitores mais velhos.
Andersen nasceu em 2/4/1805 em Odense, à época uma cidade pobre a pouca distância de Copenhague. Sua família era extremamente humilde: seu suposto pai era sapateiro e, sua mãe, lavadeira obrigada pelas circunstâncias difíceis a praticar algo semelhante à prostituição.


O universo de Andersen é totalmente vitalista, mas mais maligno do que benigno


Embora Andersen fosse corajosamente original em seus contos de fada, ele herdou do folclore, de bom grado, sua aceitação estóica do destino. Nietzsche [1844-1900] dizia que, pelo bem da vida, era preciso conservar separadas origem e metas. Em Andersen, esse desejo de manter origem e metas distintos não existia. Isso custou à sua vida uma dose grande de realização: ele nunca chegou a ter uma casa própria ou um amor duradouro, mas realizou uma arte literária extraordinária.
Como a de Walt Whitman [poeta norte-americano, 1819-92], a orientação sexual autêntica de Andersen era homoerótica. Em termos práticos, esses dois grandes escritores eram auto-eróticos, embora o anseio de Andersen por mulheres fosse mais ardente e insatisfeito do que os gestos de Whitman, em grande medida literários, em direção à heterossexualidade.
Mas Whitman foi um poeta-profeta que oferecia a salvação, e não exatamente um cristão. Enquanto isso, Hans Christian Andersen declarava uma devoção um tanto quanto sentimental ao Cristo menino, mas sua arte é pagã em sua natureza.
Seu contemporâneo dinamarquês, Kierkegaard [1813-55], se deu conta disso desde cedo. Desde a perspectiva do século 21, Andersen e Kierkegaard dividem entre eles, de maneira bizarra, a posição de eminência estética da literatura dinamarquesa.

Em busca da fama
O que as fábulas de Andersen possuem que as torna tão eternas? Kierkegaard analisou seu próprio projeto como ilustração da dificuldade de ser cristão numa sociedade ostensivamente cristã. Por baixo do pano, Andersen tinha um projeto um tanto quanto diferente: como permanecer criança num mundo ostensivamente adulto.
Eu mesmo não enxergo nenhuma distinção entre a literatura infantil e a literatura boa ou grande para crianças extremamente inteligentes de todas as idades. J.K. Rowling e Stephen King são escritores igualmente ruins, titãs apropriados de nossa nova era das sombras dos teclados: computador, cinema, televisão. Continuamos a encorajar as crianças de todas as idades a lerem e relerem Andersen e Dickens, Lewis Carroll e Edward Lear, em lugar de Rowling e King.
Às vezes, quando afirmo isso em público, me perguntam mais tarde se não seria melhor ler Rowling e King e depois prosseguir com Andersen, Dickens, Carroll e Lear? A resposta é prática: nosso tempo aqui é restrito. Lemos e relemos necessariamente às expensas de outros livros. Se vivêssemos por vários séculos, talvez houvesse suficiente mundo e tempo, mas o princípio da realidade nos obriga a fazer escolhas.
Andersen intitulou um de seus livros de memórias "O Conto de Fadas de Minha Vida". A obra deixa claro até que ponto foi doloroso seu processo de emergir da classe trabalhadora dinamarquesa de início do século 19. O objetivo que impulsionou sua carreira foi o desejo de conquistar fama e honra e, ao mesmo tempo, não esquecer o quanto tinha sido dura a escalada. A lembrança de seu pai lendo-lhe contos de "As Mil e Uma Noites" parece ser mais forte do que qualquer outra.
Absorver as biografias de Hans Christian Andersen é um processo curioso: quando tomo alguma distância daquilo que aprendi, tenho a impressão de um adolescente extremamente direto e franco que chega a Copenhague pisando forte e se atira nos braços de estranhos, dependendo da bondade deles. Essa franqueza peculiar, esse modo direto de agir, continuou durante toda sua vida: Andersen percorreu a Europa apresentando-se a Heine, Victor Hugo, Lamartine, Vigny, Mendelssohn, Schumann, Dickens e muitos outros. Caçador de grandes nomes, ele ansiava, sobretudo, tornar-se um grande nome ele mesmo -e o conseguiu com a invenção de seus contos de fadas.
Andersen foi um autor espantosamente prolífico em todos os gêneros: romances, livros de viagem, poesias e peças, mas tornou-se importante e sempre o será exclusivamente em razão de seus contos de fada, que ele transmudou em uma criação própria, fundindo o sobrenatural e a vida comum de maneiras que ainda hoje continuam a me surpreender, mais ainda do que o fazem os contos de Hoffmann, Gogol e Kleist, deixando de lado o sublimemente pavoroso, mas inescapável, Edgar Allan Poe.
A frustração sexual é a obsessão onipresente, mas oculta, de Andersen, incorporada a suas bruxas e sedutoras geladas e também a seus príncipes andróginos. D.H. Lawrence, um dos maiores escritores de formatos curtos de ficção no século 20, nos legou um lema crítico de qualidade primeira: "Confie no conto, não no artista". Andersen nos disse que suas histórias eram a história de sua vida, e seus críticos e biógrafos em grande medida aceitam o que ele disse, mas eu sou cético a esse respeito.
Como seu grande contemporâneo norte-americano, Walt Whitman, o trabalho de Andersen aparenta ser fácil, mas se mostra difícil. O fato de tanto Whitman quanto Andersen terem sido basicamente homoeróticos não chega a constituir um elo entre eles, já que tantos grandes escritores compartilham dessa orientação sexual. O que de fato une Whitman e Andersen é o fato de ambos fugirem de seus projetos aparentes.
Whitman se proclamava o poeta da democracia, mas sua poesia é hermética e elitista. Andersen inventou o que os últimos dois séculos intitularam "literatura infantil", mas, após alguns de seus primeiros contos, não está mais ao alcance apenas de crianças do que estão Kafka e Gogol. Em lugar disso, ele escreveu para crianças de inteligência extraordinária e de todas as idades -dos nove aos 90.
Às vezes constato que, por um instante pelo menos, meu conto favorito de Andersen é "O Colarinho", uma aparente ninharia de apenas duas páginas -mas elas são tão repletas de vida e significado quanto um fragmento de parábola de Kafka. Escrito em 1848, após uma visita à Inglaterra, "O Colarinho" ironiza tanto o próprio Andersen, que se autopromovia de maneira obsessiva, quanto os jornais dinamarqueses, irritados pelo fato de essa banda de um homem só que era Andersen insistir em tocar no exterior.
Um dos maiores e mais bizarros dons de Andersen é o fato de suas histórias viverem num cosmo animista no qual não existem objetos que sejam meros objetos. Cada árvore, arbusto, animal, artefato, peça de roupa ou pedaço de argila possuem uma alma ansiosa, uma voz, desejos sexuais, necessidade de status e pavor diante da perspectiva da aniquilação.

Animismo antigo
A bipolaridade de Andersen, seus episódios histéricos de grandiosidade alternada com depressão, destoam por completo desse mundo criado, no qual sereias e donzelas do gelo, cisnes e cegonhas, patinhos feios e pinheirinhos, sapatos e casas, colarinhos e ligas, sinos e ventos, bonecos de neve e ninfas dos bosques, bruxas e dores de dente, todos, possuem uma consciência tão ampla, tão cruel e tão desesperada por sobreviver quanto a nossa.
O gênio de Andersen é profundamente enraizado num animismo antigo, mais antigo do que "As Mil e Uma Noites". Shakespeare, esse mais universal dos gênios, sem dúvida o influenciou com "Sonho de uma Noite de Verão", na qual pequenos elfos encantadores se tornam os criados de Bottom: o maravilhoso quarteto formado por Semente de Mostarda, Traça, Teia de Aranha e Flor de Ervilha.
Tão andersenianos eram esses homenzinhos que, invertendo o tempo, poderíamos imaginar que Shakespeare tivesse se inspirado no escritor dinamarquês, exceto que, se tivessem sido criados pelo contista de Odense, eles teriam sido seres mais sombrios. O universo de Andersen é totalmente vitalista, mas mais maligno do que benigno.
Andersen era como William Blake e Walt Whitman, que viviam em realidades que não possuíam objetos inanimados, apenas sensibilidades em cada pedra e cada planta, cada marca deixada pelo tempo num muro de pedra. Mas aqueles eram profetas do apocalipse, que exortavam todas as coisas a retomarem as formas do humano. Andersen, como outro dinamarquês -o príncipe Hamlet-, é o profeta da aniquilação. Um conto minúsculo como "O Colarinho" é um auto-estudo tanto quanto um solilóquio à moda do de Hamlet.
Como Andersen, o colarinho não pára de pedir possíveis pares em casamento, e seus pedidos são recusados por uma liga, um ferro de passar, uma tesoura e um pente. Tudo vai indo bem até que o colarinho acaba no depósito de trapos de uma fábrica de papel e, resignado, pondera: "Tenho muita coisa na consciência e bem posso tornar-me papel branco".
Quando chego até aqui na leitura, já me afeiçoei ao colarinho, então o parágrafo final da história é sentido como um choque: "E foi em que todos os trapos se tornaram. Todos os trapos se transformaram em papel branco. O Colarinho veio a ser precisamente o pedaço de papel que aqui vemos, no qual está impressa esta história e isso porque ele era um fanfarrão, alardeando coisas que nunca se tinham passado. Nisso devemos pensar, para não nos comportarmos do mesmo modo, pois não sabemos se vamos também parar um dia num depósito de trapos e nos transformaremos em papel branco, no qual será impressa toda a nossa história, até os detalhes mais secretos, vendo-a conhecida de todo o mundo, como a do Colarinho".
Entre seus contemporâneos, Andersen, o contador de histórias, pode ser situado entre Dickens [1812-70], que se afastou do dinamarquês depois que este se alongou demais em sua visita, que acabou durando cinco semanas, e Tolstói [1828-1910], que apreciava a simplicidade e a qualidade direta da narrativa de Andersen. Ser situado entre Dickens e Tolstói deveria destruir qualquer compositor de ficções curtas, mas Andersen sobrevive, tão alegremente indiferente quanto o soldado indestrutível de "A Pederneira".
No entanto nem Dickens nem Tolstói são cruéis, exceto na medida em que a natureza e a história são cruéis. As fantasias andersenianas, sendo em grande medida alheias à história e à natureza, freqüentemente são cruéis, até sádicas, talvez em razão de motivações andróginas.
No projeto de Freud, o trabalho consiste em libertar o pensamento de seu passado sexual ou da curiosidade sexual das crianças. Andersen, cujo projeto era permanecer como uma criança, bebeu das energias do passado sexual e recebeu a verve e o ritmo de sua arte.
Todos os seus biógrafos destacam o fato de que havia dois Andersen: o dinamarquês na Dinamarca, vulnerável e obcecado pela suposta falta de reconhecimento de que era alvo, e o literato que se exibia no exterior, o "wunderkind" [criança fantástica] de Weimar e de Londres, o eternamente errante dinamarquês velejando até Bizâncio. Infantil na Dinamarca, Andersen era pueril no exterior, vivendo suas fantasias, celebridade internacional tanto quanto o fora lorde Byron antes dele e quanto o seria Hemingway depois.

Olhar sem tocar
Byron e Hemingway eram tão andróginos quanto Andersen, embora muito mais ativos sexualmente do que o relutante dinamarquês, que freqüentava bordéis onde pagava apenas para olhar as prostitutas, sem jamais tocá-las. Andersen era um namorador internacional e nacional, tanto com homens quanto com mulheres, e, como Kierkegaard, teórico da sedução, embora constituísse um monumento ao narcisismo. Os dois grandes escritores da era de ouro dinamarquesa foram monomaníacos, obcecados por si mesmos.
Um elogio aos dois dinamarqueses: o intelecto sutil de Kierkegaard rivaliza com os insights de Schopenhauer, Nietzsche e Freud, enquanto a sabedoria antiga vinda do popular reside em Andersen, que dizia e imaginava qualquer coisa ao mesmo tempo em que fugia das conseqüências práticas de suas próprias narrativas, quando não as obliterava.

Harold Bloom é professor de literatura na Universidade Yale e autor de, entre outros, "O Cânone Ocidental" e "Shakespeare - A Invenção do Humano" (ed. Objetiva). Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Clara Allain.


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