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Ponto de Fuga
A selva de cabelos
Este
"Pelléas et
Mélisande" tem distribuição insuperável, interpretação cuja qualidade é rara de ser atingida mesmo nos teatros mais ilustres
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Últimos murmúrios da
orquestra. A ópera "Pelléas et Mélisande", de
Claude Debussy, termina no
Teatro Amazonas de Manaus.
Obra meditativa, alusiva, cuja
finura sonora é feita com a matéria dos sonhos.
Foi interpretada em forma
de concerto, mas os cenários
estavam ali, mais verdadeiros
do que em qualquer encenação,
feitos de música, coloridos pelos infinitos matizes dos sons,
graças à formidável qualidade
da Amazonas Filarmônica, cujos progressos são acelerados
de ano em ano.
Fernando Malheiro, o maestro titular, regente brasileiro
de qualidades excepcionais,
possui uma inteligência da partitura que é própria somente
aos muito grandes.
Associou a suavidade atmosférica de Debussy a um sentido
narrativo e dramático constante, que mesmo muitas das melhores interpretações não conseguem manter.
Os solistas foram ideais. O jovem tenor, Yann Beuron, cuja
carreira decolou com brilho,
possui não apenas a voz e o
timbre perfeitos para o papel: o
personagem de Pelléas o habitava por inteiro, luminoso de
amor.
Mireille Delunsch, delicada,
com coloridos ora sombrios,
ora luminosos em seu timbre,
era uma Mélisande ideal. Jean-Philippe Lafont, um dos grandes Golaud de todas as épocas,
retomou em Manaus esse papel que ele interpretara no ano
passado em Belo Horizonte.
Distribuição insuperável, interpretação cuja qualidade é
rara de ser atingida mesmo nos
teatros mais ilustres. Este Pélleas eleva a alturas vertiginosas a qualidade das manifestações culturais vinculadas ao
ano França-Brasil.
Revelações
"É perto da fonte de Mélisande que Pélleas murmura: "Há
sempre um silêncio extraordinário... Ouviríamos a água dormir". Parece que, para bem
compreender o silêncio, nossa
alma tenha necessidade de ver
alguma coisa que se cale; para
ter certeza do repouso, tem necessidade de sentir perto dela
um grande ser natural que dorme." Essas palavras são do velho filósofo francês Gaston Bachelard, em seu livro "A Água e
os Sonhos".
"Pelléas et Mélisande", história de amor impossível e de ciúmes, como tantas nas óperas.
Contém paixões e violência.
Tudo isso é disposto, porém,
num mundo impalpável, cheio
de fantasmas, cuja tênue consistência é a mesma dos que ficam na memória, no imaginário: Pelléas, obra preferida de
Marcel Proust.
Os fios e as gotas
"Pelléas et Mélisande" funde
arquétipos entre si: a aliança e o
mar, o homem e suas idades, a
visão e a cegueira, o parto e o ferimento, os cabelos... Ah! os cabelos, tema humano, aquático e
vegetal a um tempo, que se mistura com as águas, como algas;
com as árvores, como galhos.
Cabeleira graciosa, cabeleira
sensual, cabeleira feminina
odiada por tantas religiões como instrumento do pecado:
Golaud punirá Mélisande puxando-lhe pelos cabelos.
Cabeleira daquela virada de
século art nouveau e simbolista, que projetava nela tantos
mistérios femininos, tantos
mistérios universais.
"Nenhuma dúvida para
mim", diz Pierre Boulez sobre
Pelléas, "ela se mantém no
mais alto nível, aquele que atinge uma cultura levada a reconhecer sua transfiguração num
espelho privilegiado".
Interrogações
A transcendente execução de
"Pelléas et Mélisande", dirigida
por Fernando Malheiro, foi
programada duas vezes em Manaus. Que nenhuma outra cidade brasileira se associe ao Festival Amazonas de Ópera para
receber produções dessa categoria é sinal de indiferença generalizada e ignara.
Felizes os manauaras.
jorgecoli@uol.com.br
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