São Paulo, domingo, 03 de maio de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Porcarias semânticas

LINGUISTA EXPLICA POR QUE BRASILEIROS OPTAM POR "SUÍNA" E FRANCESES E ESPANHÓIS POR "PORCINA" PARA FALAR DA DOENÇA

CYRUS AFSHAR
DA REDAÇÃO

Por que "suína", e não "porcina", para nomear a variante de gripe que apavora o mundo atualmente? O adjetivo porcino, que existe em português, é deixado de lado por brasileiros e lusitanos, mas é o escolhido por franceses e espanhóis -também falantes de línguas neolatinas. Na entrevista abaixo, a professora de linguística Maria Helena de Moura Neves (Universidade Estadual de SP, em Araraquara, e Universidade Mackenzie) desvenda essa opção dos falantes e explica o mecanismo de criação dos vocábulos.

 

FOLHA - Em alguns países, o surto de gripe suína é chamado de gripe porcina. "Porcino" e "suíno" têm origens diferentes?
MARIA HELENA DE MOURA NEVES
- Ambas são palavras de origem latina, mas é muito frequente que existam aplicações diferentes para mais de uma forma nas línguas. Em latim, porco é "sus", mas também existe em latim a palavra "porcus", que veio para o português.
Mas "sus" não tem nenhum substantivo em português que corresponda a essa palavra. O que que tem é o adjetivo: suíno. Suíno significa "de porco", mas não só porco.
É mais amplo, é de toda essa família que pega porco, javali, porco-do-mato. O adjetivo porcino vem de porco. E, ao longo da história [da língua], acabamos deixando um pouco de lado este adjetivo.

FOLHA - Por que isso aconteceu?
NEVES
- Essa escolha não tem propriamente uma explicação porque faz parte do jogo da língua. Cada uma vai tratando as palavras de uma certa maneira, de acordo com o uso que há.
Não tem um porquê. É assim que o léxico funciona. Ele oferece mais de uma forma, como em latim. "Porcus" era mais específico que "sus".
"Porcus" era um espécime e, "sus", uma família. Então se começou a usar a forma específica como genérica e, a genérica, como específica. É algo muito comum nas línguas, que permite que elas funcionem.

FOLHA - Por que a palavra "porcina" causaria estranheza se fosse usada em português?
NEVES
- Porque não é usual. Nos trabalhos científicos, a gente vê nomes de doenças, digamos, estresse porcino, mas se fala também em estresse suíno.
Às vezes a palavra é latina, mas ela aparece de novo devido à língua inglesa.
Noutro dia, eu vi uma referência que dizia "ciclo vírus suíno, ou ciclo vírus porcino" e depois eles abriam parênteses e colocavam PCV, a sigla em inglês.
Então percebe-se que houve alguma influência da designação em inglês, que é geralmente a referência dos estudos científicos. Se isso não ocorresse nas línguas, seria uma pobreza total.

FOLHA - Por que há essa diferença no uso?
NEVES
- Há palavras que significam a mesma coisa e que vão ganhando aplicações diferentes. Por exemplo, uma é mais formal, ou é mais usada cientificamente, ou é mais específica.
"Porco" é mais específica que "suíno", embora tenha vezes em que se use "suíno" pensando em porco. Mas tem abrangência maior. Outra coisa é que se deixa de usar determinado registro, ou em certos tipos de texto, às vezes por influência estrangeira.

FOLHA - Qual a influência do discurso científico na utilização do termo?
NEVES
- As obras científicas trazem o adjetivo porcino para a gripe. Geralmente vem depois a sigla entre parênteses em inglês. E isso é muito significativo. Há uma tentativa de ser mais fiel ao termo em inglês.
Não é a explicação para este caso, mas é uma explicação sobre como o léxico funciona.
Hoje, estão tentando mudar o nome da gripe para "gripe norte-americana", mas por interesse econômico, pois pode transparecer que é perigoso comer porco. Não é um interesse linguístico.


Texto Anterior: O beijo da morte
Próximo Texto: De uma gripe a outra
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.