São Paulo, domingo, 03 de junho de 2001

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+ política

Concepção milenar do direito como um ato de vontade forte se atualiza no Brasil pelo uso do saber instrumentalizado para a propaganda política

Amigo e inimigo na luta política

por Maria Sylvia Carvalho Franco

"São os amigos que me atraiçoam, pois o inimigo posso evitar, tal como o piloto, o recife no oceano."
Theognis

Em manifestações recentes (1), José Arthur Giannotti enunciou sua doutrina sobre a vida pública, postulando a amoralidade, a mentira do poderoso, a manipulação das instituições, concebendo a política como guerra e seus atos como saque, vindicando alianças injustificáveis, reduzindo o juízo moral a arma para acuar o adversário. Toda essa teia é perpassada pela concepção de que o positivo, aquilo que é, deve ser. Entretanto, se a política não é uma associação de santos, não resulta que deva ser uma disputa entre malfeitores ou ter vocação para a ditadura. A fala atual de Giannotti anexa, a Maquiavel e Platão já evocados em outros de seus pronunciamentos, uma propaganda de direita, ao modo de Carl Schmitt (1888-1985), como o decisionismo e a antítese amigo-inimigo, reativada pelo jurista na justificação do nazismo.
Urge sair das operações doutrinárias imediatas que manipulam teorias e conceitos políticos para legitimar escândalos, a fim de expor tais ideologias.
Um conhecido adágio grego preconiza beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos (2). A crítica a esse preceito vulgar, na literatura grega, perpassa a poesia arcaica, os trágicos, os historiadores, a filosofia. Para examinar esse tema, escolhi a reflexão de Tucídides sobre formas de poder no império ateniense, focalizando os discursos sobre as represálias à revolta de Mitilene, colônia de Atenas. Na primeira deliberação da assembléia, os homens adultos foram condenados à morte, as mulheres e crianças reduzidas à escravidão; em seguida, cogitou-se de rediscutir as condenações. Nesse passo, defrontam-se Cleon e Diodato, cujos discursos coincidem em sustentar o império, mas assumem rumos divergentes: o primeiro preconiza a força e eficácia imediata dos atos, o segundo persegue a prudência e poder persuasivo da palavra.
Cleon é descrito como "o mais violento dos cidadãos e (...) o mais digno de fé junto ao povo" (III, 36, 3). Vitorioso na moção sobre as penas capitais, voltou ele à carga, alertando contra as palavras engenhosas que poderiam enfraquecer a ação repressiva, certo de que sem terror não se sustenta a dominação ateniense. Seu diagnóstico da moderação tendente a atenuar as penas aponta o erro de transpor os usos vigentes na "pólis" para a colônia: se em uma o cotidiano é amistoso, o mesmo não acontece na outra, lugar do inimigo.
A oposição amigo-inimigo como categoria sociojurídica, em seu percurso especulativo, constitui uma viga mestra do pensamento autoritário. Na época atual, C. Schmitt, o teórico do nazismo, revivificou a antítese amigo-inimigo como critério político autônomo, indicando o seu significado: determinar pontos-limite de união e ruptura sem que outros juízos intervenham, projetando o antagonismo político para o absoluto. "Não é necessário que o inimigo político seja moralmente mau ou esteticamente feio; ele não precisa necessariamente se apresentar como concorrente econômico e pode até mesmo ser vantajoso negociar com ele. Ele é apenas "o outro", o estrangeiro, bastando, para sua essência, que ele seja, num sentido particularmente intenso, algo alheio e estranho (...)" (3).
Voltemos a Tucídides. Na fala do truculento Cleon, a separação entre atenienses, cujas inter-relações são amigáveis, e seus adversários, postos em plano antagônico, se articula a outro elemento fundamental: garantir o poder pela força, fechando os ouvidos ao adversário: "(...) Não estais refletindo que o império que detendes é uma tirania, com súditos involuntários conspirando contra vós, obedecendo não porque estejam atentos a que sejais benéficos prejudicando a vós próprios, sendo antes pela força que pela boa intenção deles que prevalecereis" (III, 37, 2). Não ficar cego à essência do poder postula a relutância em ouvir por parte do inimigo, correlata à recusa de escutá-los, elidindo-se assim as fontes de piedade ou persuasão por parte deles.
Fechando a questão, Cleon trata de eliminar o debate também entre os atenienses: o mais alarmante será "se nada estabelecermos de modo preciso pela decisão firme e se não reconhecermos que um Estado regido por leis imutáveis, embora inferiores, é mais forte do que se as tiver excelentes e sem autoridade" (III, 37, 3). Dá-se, nesse texto, a passagem imediata de "doxa" para "nomos", operação que faz deslizar a terminologia jurídica e a prática política, visto que do primeiro termo resulta um dogma, um decreto, mas não uma lei (4). O trânsito da decisão para a lei é chave na estrutura autoritária desse discurso. O fantasma do "outro", o elogio da força, a morte do debate culminam, agora, no puro direito da decisão identificada à lei e posta como inabalável.
C. Schmitt aproveita, modernamente, o paradigma para colher o peso autoritário intrínseco a tal uso dos conceitos jurídicos. Opõe-se ele aos normativistas (seu alvo principal é H. Kelsen), que pretendem isolar e fazer absoluta a norma ou regra, em contraposição às decisões e ao ordenamento efetivo da sociedade. Do teor abstrato das normas jurídicas essa corrente derivaria suas pretensões à objetividade e à impessoalidade: a lei (e não os homens) pode governar acima do contingente e do arbitrário; só com ela é possível justiça objetiva e impessoal.
Assim os normativistas interpretariam "uma das mais belas e antigas expressões do pensamento jurídico, precisamente a máxima de Píndaro sobre o "nomos basileus", o "nomos-rei': só a lei e não a necessidade contingente, mutável (...), pode governar ou comandar" (5).

A sede do poder Retomando Píndaro, suas críticas à posição normativista radicam no que entende pelo conceito jurídico de "nomos", não só lei, mas "direito", abrangendo norma, decisão, ordenamento. Desse modo, o "direito soberano", o "nomos basileus", não se limita a disposições ideais, envolvendo a capacidade de ordenar, enquanto o pensamento normativo invoca a validade das regras, nunca o poder e a autoridade efetivos, atuantes. Posta a norma como fundamento jurídico, o juiz e o Estado se tornam função dela: essa "soberania da lei" evidentemente destrói a sede do poder, o rei.
Ao contrário, preconiza ele, abandonando o fundamento puramente abstrato e com a legalidade abrangendo também o ordenamento social, não haverá separação entre "nomos" e rei, mas, num processo reversível, os dois termos formam uma identidade. "Como o "nomos" é rei, assim também o rei é "nomos", de modo tal que nos encontramos, já, de novo, no âmbito das decisões e instituições concretas ao invés de normas abstratas e regras gerais." (6)


Toda política autoritária é gêmea da miséria intelectual, estiolando os mananciais do pensamento e da crítica, notadamente universidade e imprensa


Com isso desaparecem as outras instâncias do poder público, dissolvendo-se os corpos parlamentares ou jurídicos, restando apenas o arbítrio autocrático.
O jogo retórico que inscreve a poesia de Píndaro no sistema concreto e pessoal do decisionismo moderno talvez não se afaste muito do poeta arcaico. Já outros pensadores antigos, como Platão, apontam o nexo entre poder, força e natureza, discernível em Píndaro. Entre vários textos está o "Górgias", com os versos de Píndaro evocados por Caliclés. Este, na famosa passagem (483b-484a), afirma que as leis são estabelecidas pelos mais fracos e numerosos em proveito próprio: para tolher a supremacia dos mais fortes, dizem ser má ou injusta a vontade de poder. Miseráveis, apraz-lhes o nivelamento. "Por isso por convenção dizem ser injusto e mau sobrepujar a maioria (...), mas a natureza proclama que é justo o melhor sobrepujar o pior e o mais poderoso, o impotente." (483d)
Essa assertiva universal abrange animais, homens, raças, cidades: miríades assim agem "segundo a natureza do direito" ("kata physin tou dikaiou"), sendo sua prática "segundo a lei da natureza" ("kata nomon ton tês physêos"), não conforme a estabelecida pelos homens. Note-se que nessas assertivas há uma construção em quiasma, onde "natureza" ("physis") baliza tanto a determinação do "direito" ("to dikaion") quanto da lei ("nomos") ao se cruzar sua posição nas frases, colocada que está no início da primeira e no fim da segunda.

O escravo como senhor Nessa construção, o primeiro membro corresponde ao quarto, e o segundo, ao terceiro, de modo tal que o direito, "to dikaion", coincide com "nomos", termo este que, assim, amplia o sentido estrito de lei ou convenção humanas e atinge nível de princípio. Dessa figura resulta que a natureza do direito = lei da natureza, construindo-se retoricamente o conceito de "direito natural", isto é, no caso, o direito do mais forte. Por mais que se queira escravizar e seduzir os leoninos, continua Caliclés, incutindo-lhes que a igualdade é necessária, justa e nobre, dia virá em que os dotados de natureza suficientemente forte quebram os grilhões, livram-se do que lhes foi ensinado, desvencilham-se de todas as coisas contra a natureza. O escravo mostra-se como senhor e, então, "brilha o direito da natureza" ("to tês physêos dikaion", 484a).
Nesse ponto inscreve-se a citação de Píndaro, que Caliclés reclama em apoio de suas teses: "A lei, soberana de todos,/ de mortais e imortais,/ governa, com as mais poderosas mãos,/ justificando o mais forte./ Por testemunho, os trabalhos de Hércules..." (484b). Como se vê, C. Schmitt leu bem o seu Platão.
C. Schmitt liga expressamente o decisionismo a Hobbes (1588-1679), apresentando-o por um viés ultradespótico, como exemplo clássico dessa doutrina. Entretanto o discurso de Caliclés, com a violência natural sustentando a vontade de poder, com o estado de exceção permitido ao forte, ao homem que sobressai personalizado diante da indiferença massificadora, tem laços com as teorias do jurista moderno.
A citação de Píndaro, muito evocado para a legitimar a força, não é casual em sua tese, conjugando os textos antigos e modernos: neles, a mesma teia de argumentos surge nos contextos autoritários em que sua poesia é inserida: a lei (ou o direito, na acepção de Schmitt) soberana é universal, mas não abstrata ou igualizadora, repousando não sobre normas genéricas e despersonalizadas, mas sobre uma poderosa vontade pessoal.
A esse modelo ajusta-se a teoria decisionista do direito exposta por Schmitt. O fundamento jurídico há que ser buscado "em um processo da vontade, em uma decisão, só ela capaz, na qualidade de decisão, de criar direito (...). Para o jurista de tipo decisionista, a fonte de todo o direito, isto é, de todas as normas e ordenamentos (...), não é o comando na qualidade de comando, mas a autoridade e soberania de uma decisão final que vem vinculada ao comando" (7).
O mesmo raciocínio, cingindo vontade, força e decisão instauradora de direito, aparece no discurso de Cleon. Já vimos que a pretensa recusa em ouvir, pelos colonos, corresponde à negação de escutá-los por parte da cidade hegemônica: cancela-se, com isso, o diálogo. Daí o rápido trânsito de "doxa" para "nomos" vincular-se, de modo necessário e significativo, lógica e politicamente, aos feitos e não às palavras. É o ato decisório e não o debate verbal que institui o direito; não a razão ponderada, mas a vontade potente.
No caso em pauta, em que a determinação sensível é máxima, a violência de Cleon é correlata à violência do "demos" identificado ao soberano, motivo pelo qual ele é o mais eficaz e crível dos demagogos, percorrendo o círculo fechado do "mesmo" (o dito pelo orador e o preconcebido pelo ouvinte) próprio à retórica descomprometida com a verdade: a assembléia decide movida pelo mesmo sustentáculo da fala de Cleon, por fortes emoções -medo e ódio. Ainda assim, a decisão, uma vez tomada, é absoluta, e a lei nela originada é inamovível.
Essa concepção do direito engendrado em um ato de vontade forte e não na circulação do verbo se articula ao convencimento visando à supremacia, num apelo dirigido maciçamente ao sensível e não ao intelecto, cadeia que se completa com o obscurantismo que faz a apologia prepotente da miséria intelectual. A ignorância cautelosa é mais benéfica que a destreza sem freio: "Os mais pobres de espírito, dentre os homens, comparados aos mais agudos na maioria são melhores cidadãos" (III, 37, 3). Estes, desejando estar acima das leis e vencer nas discussões políticas, trazem ruína à cidade; os primeiros, desconfiando de sua própria sagacidade, consentem em ser menos esclarecidos que as leis, menos capazes em criticar os bons oradores e, sendo juízes pelo senso comum, antes que competidores, tomam rumo próspero (III, 37, 3-5). Uniformização e conformismo são pregados contra as pretensões agonistas dos engenhos acerados: não por acaso, toda política autoritária é gêmea da miséria intelectual, estiolando os mananciais do pensamento e da crítica, notadamente, nos tempos atuais, universidade e a imprensa.
É nesse panorama ditatorial que, em consequência, a discussão é eliminada também no interior da cidade. A recusa do discurso político se fez, inicialmente, contra os "inimigos" da colônia, reservando-se a palavra à "pólis", lugar dos "amigos". Mas a censura acaba por se voltar contra o debate interno, em nome da estabilidade das decisões jurídicas e políticas. O corte da liberdade de pensamento e da palavra se faz como penhor da eficácia e da governabilidade, tanto para o demagogo antigo quanto para o ideólogo moderno.
Em seu elogio dos feitos em detrimento das palavras, Cleon acusa os cidadãos atenienses de se acostumarem a ser "contempladores de palavras e ouvintes de feitos" (III, 38, 4). Essa contradição interna entre os atos dos sentidos e suas finalidades específicas torna suas operações um contra-senso, anulando a força física e intelectual nelas empenhadas.
Os campos semânticos que se estruturam em torno das palavras e dos feitos são cruzados e simetricamente contrapostos à percepção apta a apreender cada um dos conjuntos -ouvir e ver-, interferindo, com esse trançado entorpecente, na capacidade de ajuizar e decidir. "(...) Vos acostumais a ser espectadores de palavras e ouvintes de feitos, contemplando como possíveis os empreendimentos futuros a partir da palavra dos bons oradores; quanto ao já efetivado, não o consideram mais crível apreendendo-os pela vista, mas pelo ouvido, julgando-os favoravelmente pelas palavras." (III, 38, 4-5)
Em vez de ver os fatos com propriedade e de ouvir as discussões com discernimento, os cidadãos se auto-enganam sobre a praticabilidade do acontecer e sobre a verdade do já acontecido: o contemplar se vincula à previsibilidade dos empreendimentos, mas essa capacidade é abolida pelo canal incomensurável por que passa, não pela vista, mas pelo ouvido, sofrendo a ação do discurso persuasivo. Análogo movimento nulificador se repete na atividade de recolher as práticas passadas, apreendidas pelo dito e não pelo feito. As operações do ver e do ouvir aparecem como reciprocamente destrutivas e nesse trespasse se cancelam os processos políticos: a apreensão e juízo dos atos passados e futuros são reconhecidos e avaliados em processos auto-supressores. Em linguagem moderna diríamos que o ateniense tem a consciência turvada pelas relações que estabelece.
Examinemos, mais de perto, essa técnica expositiva e crítica. O contemplar remete ao "olhar de longe" os feitos futuros. Mas a vista se perde na representação das palavras e a previsibilidade se enfraquece pela mediação por meio da qual se efetiva, não pelo ver, mas pelo ouvir: aqueles que estão "vendo de longe" sofrem a ação dos bons oradores. Notemos que o sentido desse texto se constrói também materialmente pela disposição das palavras com a contiguidade das formas verbais acentuando o disparate de "seguir com a vista por ouvir dizer". Vejamos como: a observação não se faz a partir do que está à vista, como o seria em coerência com o feixe de significados definidos pelo "saber por ter visto", mas a partir dos que falam bem. A sintaxe rompe o campo semântico, produzindo nele uma torção, ao justapor, na letra do texto, o falar e o ver, com a presença de uma preposição que marca a procedência, envolvendo sentido instrumental: literalmente "aqueles que contemplam pelos bons oradores".
Assim, o ato visual de conhecer, de grande importância na cultura grega, dissolve-se na opinião resultante do ouvir dizer, operação desqualificada na crítica da sofística e da retórica. Análogas articulações contraditórias se repetem no processo de recolher as práticas efetivadas, o qual resulta na crença, como seria de esperar pelas significações mobilizadas no período anterior, em que a retórica se insinua. Também nesse procedimento os termos entram numa relação retorcida: de um lado, a maior credibilidade das obras realizadas deriva não do feito, mas do ouvido; de outro lado, essa apreciação não se faz "apreendendo pelo visto, mas, contrariando novamente as expectativas de sentidos sedimentadas na linguagem, o juízo se dá "a partir de uma avaliação favorável pelas palavras'".
As operações anímicas opõem-se nas formas verbais antitéticas: o ver e o ouvir; os que observam e os que falam, o feito e o ouvido, apreender pela vista e avaliar pelas palavras. Nesse cruzamento aniquilador das atividades sensíveis e intelectuais e pela contradição dos campos semânticos, o saber como ato visual, na pesquisa dos fatos futuros, é perturbado pela opinião gerada por palavras; a isso responde a apreensão conceitual dos feitos passados, prejudicada pelos juízos retóricos conducentes não ao verdadeiro, mas ao crível. Todo esse conjunto internamente contraditório interfere negativamente na formação dos juízos, que se orientam para as certezas e crenças.
Uma penetrante crítica ao exercício democrático corrompido pelo autoritarismo das práticas demagógicas percorre a montagem do discurso de Cleon. Este encena e dramatiza uma assembléia de surdos e mudos dominada por obtusos e violentos, desvelando as ilusões deformantes, os processos devastadores nela gerados. Nas práticas políticas conduzidas no interior da "ecclesia", centro vital da democracia, amputa-se a força e impede-se a circulação da palavra, priva-se o cidadão da liberdade de pensamento e expressão.
A crítica de Tucídides alcança nosso atual contexto de revivescência decisionista e banalização do saber, em que dogmatismos temerários usam conceitos filosóficos e políticos, determinantes de inflexões decisivas na história do pensamento, como recursos ideológicos justificadores de práticas ilegítimas e falaciosas. A história brasileira afeita ao domínio despótico e personalizado, terra do favor ingente, abre-se ao uso do saber instrumentalizado para a propaganda política em conexão com outra conduta arraigada entre nós: benefício aos "amigos", prejuízo aos "inimigos". Já vimos, essa cópula é milenar; deixando de parte outras fontes, continuemos com o discurso de Cleon.
Nele, a oposição entre ser benfazejo e ser nocivo (III, 37, 2) também sofre torções trazidas pela quebra das correspondências esperadas: o par constante -benefício ao amigo, prejuízo ao inimigo- tem os seus termos cindidos e deslocados, tornado-os incongruentes. A mercê ao inimigo exterior da colônia é perniciosa ao amigo interno da "pólis", ampliando-se também a força desse axioma pela disposição das palavras que resultam em "incompossíveis" e tornam paradoxal a sua contiguidade: "(...) Se fores benfazejo sendo nocivo (...)" (III, 37, 2).
A figura retórica desenha-se, também aqui, na própria materialidade do texto, com a palavra grafada "aparecendo" em sua autonomia e afirmando o seu estatuto de imagem, validando-se graficamente e efetivando-se no plano visível a fim de desencadear o processo evocativo e ampliador das significações. Retoricamente, o efeito conseguido é de surpresa e desconcerto; do lado político se reforça a tese da repressão; em teoria da linguagem a estrutura assim desenhada evidencia uma concepção eminentemente plástica da palavra e suas virtualidades de exploração.
Essas reviravoltas de sentido podem reportar-se também a outra pregação de amoralidade na esfera pública, um maquiavelismo banalizado na propaganda política atual, inclusive na busca de legitimar a corrupção e o embuste. O lugar clássico da mentira benéfica é a república. Nem aos deuses nem ao comum dos mortais ela é admitida: aos primeiros, por serem simples e íntegros, não podendo ser falsos ou disfarçados (382 a-e); aos segundos, porque isso os levaria a erros autoperniciosos e destrutivos para a cidade (389 b-d). Apenas ao governante, transitando paradoxalmente pelo território obscuro próprio ao sofista, é autorizada a mentira. Mas ele é, lembre-se, preparado eugênica, intelectual e praticamente para as suas funções: deve pertencer à raça dos natural e socialmente bem-nascidos, passando por asceses e provas sucessivas até atingir o cimo dos escolhidos. A mentira para benefício público é seu monopólio, privilégio único de uma figura aristocrática.
Só o governante pode ser mendaz, prerrogativa portadora de um drástico sentido autoritário, não tendo sido casualmente proposta por um acerbo inimigo da democracia e retomada por Hegel, que vai no mesmo rumo (8).
O elogio da mentira, de uma zona de obscuridade em política, abre-se para a autocracia, o embuste, o apaniguamento, para as manobras visando à sustentação do poder, para o favor, para ser "benéfico ao amigo e prejudicial ao inimigo". Visto que, aí, "amizade" é sinônimo de interesse, as cumplicidades e alianças se fazem e desfazem ao sabor da vantagem pessoal e as benfeitorias ou malvadezas rápido se transformam em práticas de corrupção.
Sócrates, em "A República", atribui a Simônides a concepção de justiça que consiste em dar ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos (332 d), recusando esse preceito, expondo-o como injusto e revolvendo suas categorias até que se contradigam. A ironia socrática faz com que os termos, sem nenhuma estabilidade visto se fecharem na imediatez do sensível, balancem e se invertam ao ponto de a máxima se transformar em ser prejudicial aos amigos e benéfico aos inimigos (334 b-e) (9).
Bem de acordo com essas inversões, em nossos tristes quadros políticos as benesses inescrupulosas distribuídas a amigos precários, súbito inimigos, acabam por prejudicar seus autores, ao serem expostas as tramas a que servem.

Notas
1. "O Dedo em Riste do Jornalismo Moral", em "Tendências e Debates", Folha, 17/5/01, e entrevista para o jornal "O Globo" em 13/5/01;
2. Blundell, M.W., "Helping Friends and Harming Enemies - A Study in Sophocles and Greek Ethics", Cambridge University Press, 1991. Essa obra levanta, ao longo do tempo e em diferentes áreas, testemunhos do princípio de ajudar amigos e prejudicar os inimigos;
3. Schmitt, C., "Le Categorie del Politico - Saggi di Teoria Politica a Cura di G. Miglio", Bologna, Il Mulino, 1972, pág. 261. Schieri, 109;
4. Essa distinção foi indicada em curso sobre Tucídides pela professora Ana Lia Prado. Também foram expostas por ela as "relações simétrico-paralelas", centradas no feito e na palavra, dos componentes estilísticos do discurso de Cleon. Sua fonte é o artigo de G. Wille, "Zu Stil und Methode des Thukydides", in "Thukydides". Hrsg. von H. Herter. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968. Wege der Forchung, Band 98 (cit. na pág. 692). A interpretação que desenvolvo sobre o entrecruzamento e anulação dos campos sensíveis, intelectuais e semânticos, com as consequências teóricas e políticas desse procedimento crítico, é de minha inteira responsabilidade;
5. Schmitt, C., op. cit., pág. 252;
6. Schmitt, C., op. cit., pág. 254;
7. Schmitt, C., op. cit., pág. 261;
8. Cf. Hegel, G.W.F., "Filosofia do Direito", pág. 317, Suhrkamp, 1970, comentando a pergunta de Frederico 2º: "É útil enganar um povo?". A resposta hegeliana é bem à moda de Tucídides: "O povo engana a si mesmo" nos juízos sobre seus atos e sua história.
9. Esse tema reaparece no cão de boa raça, símile do guardião, ambos gentis com os familiares e agressivos com os estranhos. Sócrates distingue os atos de reconhecer, discernir e aprender, tanto no cão quanto no guerreiro, atribuindo-lhes o amor pelo estudo e pelo saber, assim os aproximando do filósofo. Há, portanto, componentes racionais e cognitivos conexos ao sensível na formação do jovem de escol, na aristocracia de guerreiros. Com isso, o ditado vulgar sai do mundo selvagem e se inscreve no cosmos, regulando o estado de guerra (375c-376c).


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora dos departamentos de filosofia da USP e da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora, entre outros livros, de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (ed. Unesp).


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