São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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Ponto de fuga

Noções e convicções

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A etimologia diz que a origem da palavra crítica está no grego e quer dizer julgar. É o sentido mais corrente também. Em verdade, nas críticas melhores, a opinião emitida não parece tão essencial. Conta mais o percurso daquilo que é exposto. Especialistas das artes, no século 19, erraram tantas vezes em seus juízos. Impressiona, porém, nos vários escritos que deixaram, a capacidade de compreender, ao mesmo tempo em que condenavam. Os critérios podiam falhar, mas não a análise.
Um exemplo é a incriminação, sem apelo, que o Barão von Rumohr fez, em 1808, do quadro "A Cruz na Montanha", pintado por Friedrich. A tela destinava-se a uma capela. O cruzeiro está de viés, meio dissimulado no alto do pico. Rumohr esbraveja: a "paisagem quer assim introduzir-se furtivamente na igreja, escalando os altares". Era exatamente isso: o pintor impunha sua convicção pessoal de que Deus está na natureza. Mais ainda, "o quadro não põe em valor a perspectiva linear", "a montanha é achatada como uma silhueta". "A massa terrestre mostra o mais gritante contraste com o céu, sem transição nem harmonia." "O pintor baniu toda perspectiva aérea..., nem mesmo adotou um ponto de vista."
O historiador Lankeheit lembra que reconhecemos nessas características acusadoras as novidades de Friedrich: construção abstrata da imagem; emprego de superfícies planas, substituindo a profundidade; recusa do ponto fixo de visão; abandono da perspectiva linear e aérea; oposição viva entre proximidade e distância; exacerbação de concomitâncias. Ao denunciá-la, Von Rumohr deixou ótima introdução à arte de Friedrich. Enganou-se no julgamento, mas sabia o que estava vendo.

Pentimento
Um dos artigos mais engraçados da história jornalística é o que inventou a palavra "impressionismo". Foi assim: em 1874, um grupo de vanguarda faz uma exposição de quadros no ateliê de Nadar, célebre fotógrafo. Como não respeitam as regras mais reconhecidas da pintura, os jornais zombam, ironizam, e o público é levado à hilaridade. O "Charivari", pasquim satírico, publica um comentário, "Exposição dos impressionistas", assinado por Louis Leroy.
Nele, o articulista imagina uma visita da mostra em companhia de um pintor tradicional, que enlouquece ao contemplar a tela de Monet, "Impressão, Sol Nascente", e sai gritando: "Hugh!... Eu sou a impressão que anda!". Ocorre que as observações de Leroy são justas. Caracterizam uma arte cromática obediente à rapidez da pincelada, sensível à matéria pictural, avessa à descrição, à minúcia e às tradições do acabamento. Leroy enumera: Renoir tem o sentido da cor, mas abandona o desenho; os sulcos e a geada numa paisagem de Pissarro "são raspas de palheta dispostas em modo uniforme sobre uma tela suja"; os transeuntes do "Boulevard des Capucines", de Monet, são "minhoquinhas negras"; as mãos, nos quadros de Berthe Morisot, são executadas com "cinco pinceladas, uma para cada dedo". Em tudo domina a "feitura livre, arranhados, respingos".
Seu personagem, o pintor convencional, já totalmente biruta, toma o guarda do recinto por um quadro e constata que ele não apresenta as anotações abreviadas dos jovens artistas: "De frente, tem dois olhos... E um nariz... E uma boca!... Não são os impressionistas que sacrificariam assim o detalhe".

Lampejo
Conta-se que um jornalista americano escreveu a crítica mais curta de todos os tempos. Comentava peça de teatro intitulada "Um Bom Momento". O artigo tinha apenas uma palavra: "Não".

Ódios
"Piolhos nos cachos da arte", dizia Teenyson dos críticos. "Eunucos da literatura, virtuosos e estéreis, que não conseguem sequer se tornarem prostitutas", exprimia, contra eles, a violência de Hemingway. A fim de evitar o arbitrário, as reações epidérmicas demais, a acidez que embriaga e que seduz, a melhor saída para o crítico é tentar, pela análise e pela compreensão, a busca de algumas chaves que poderá oferecer aos leitores. Sua primeira atitude deveria ser a do respeito às obras, mesmo quando elas não parecem respeitáveis.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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