São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997.



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O POETA NO PARAÍSO
O ciclone Cendrars

O escritor vanguardista que visitou o Brasil em 1924 é tema de colóquio internacional em São Paulo


NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Este caderno é dedicado a meus bons amigos de São Paulo, PAUL PRADO, MARIO ANDRADE, SERGE MILLIET, TASTO DI ALMEIDA, COUTO DE BARROS, RUBENS DE MORAES, LUIZ ARANHA, OSWALD DE ANDRADE, YAN e aos amigos do Rio de Janeiro, GRAÇA ARANHA, SERGIO BUARQUE DE HOLLANDA, PRUDENTE DE MORAES, GUILERMO DE ALMEIDA, RONALD DE CARVALHO, AMERICO FACO, sem esquecer o inimitável e querido LEOPOLD DE FREITAS do Rio Grande do Sul."
É assim que Blaise Cendrars (1887-1961) abria um de seus últimos livros de poemas, "Feuilles de Route" (Notas de Viagem). Ou melhor, ele o fez em francês, mas, ao transpor a dedicatória para nossa língua, cuidei de deixar os nomes de seus amigos na sua própria grafia peculiar, pois ela até que revela um ouvido atento, disposto, apesar de alguns equívocos (Tasto por Tácito, mas não o Serge, porque Sérgio Milliet provavelmente fazia questão de declinar seu nome em francês) e de alguns ecos hispânicos (Guilermo por Guilherme), a captar o timbre específico do país que visitava.
Pode ser provinciano, ou meio etnocêntrico, abordar Cendrars por intermédio de seu "séjour" brasileiro de 1924, das amizades que fez entre os modernistas e da influência que sobre eles exerceu. Mas é inevitável. E certamente este será o tema dominante do colóquio sobre sua obra que acontece a partir de amanhã em São Paulo.
Ele foi o mais importante autor estrangeiro a travar relações pessoais, num momento histórico absolutamente crucial, com a intelectualidade daqui. Sua presença literária antecede, aliás, a física e, para comprová-lo, basta ver quanto o primeiro Mário de Andrade e, sobretudo, Luis Aranha (em poemas escritos entre 1920-22) devem ao Cendrars de antes da Primeira Guerra, ou quanto Raul Bopp vinha aprendendo com seus "Poèmes Nègres".
Essas mesmas "Feuilles de Route" seriam decisivas para o "Primeiro Caderno" e para a "Poesia Pau Brasil", de Oswald. O que nas décadas seguintes se consideraria uma bifurcação virtualmente irreconciliável da poesia brasileira já estava prefigurado, só que sob a forma harmônica da diversidade na obra de um único autor. Ou, quem sabe, talvez não tão harmônica assim. Se havia contradições entre seus diversos estilos, Cendrars não tratou de desenvolvê-las, pois 1924 foi também o ano em que abandonou a poesia.
O poeta nasceu em 1º de setembro de 1887, filho de uma família burguesa da cidadezinha de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. Seu nome de batismo era Frédéric Louis Sauser. Na infância, morou com os pais em vários países, e a propensão a viajar e a se mudar constantemente se tornariam a marca registrada do poeta e de sua poesia. Com ressalvas, claro, porque a segunda metade de sua vida ele a passou basicamente na França. Ressalvas, aliás, que podem ser estendidas a boa parte de sua biografia, já que sua outra marca registrada era a criação ininterrupta de mitos acerca de si mesmo.
Alguns fatos, porém, parecem seguros. Aos 17 anos ele teria fixado residência na Rússia para trabalhar com um comerciante de relógios de sua região. Três anos depois, em 1907, ele volta à Suíça e, por algum tempo, frequenta a universidade. No ano seguinte conhece uma jovem estudante polonesa que se tornaria sua primeira mulher e juntos tentam se estabelecer em Paris, onde ele faz amizade com Marc Chagall.
Sua mulher parte para os EUA e ele, para São Petersburgo. Em dezembro de 1911 ele toma um navio para encontrá-la em Nova York. É esta cidade que lhe inspiraria seu primeiro poema importante, "A Páscoa em Nova York", escrito em dísticos alexandrinos rimados, e datado de abril de 1912.
De volta a Paris, Freddy Sauser, que criara nos EUA seu pseudônimo (cujo significado ele explicava como uma corruptela da justaposição das palavras "braise", "cendre" e "art", "brasa", "cinzas" e "arte', passa a conviver com os diversos criadores -poetas como Apollinaire, pintores como Chagall e Léger, músicos como Stravinsky- que estavam renovando as artes em geral.
Seus contatos não se limitavam, obviamente, aos artistas que estavam em Paris e, cosmopolitamente, estendiam-se aos futuristas italianos e aos expressionistas alemães, entre outros. Em 1913, Cendrars publica um poema que seria imediatamente considerado (ao lado de "Zone", de Apollinaire) o marco, por excelência, daquele momento da modernidade internacional: "A Prosa do Transiberiano". Trata-se da narrativa delirante (em mais de 400 versos livres e com pouca pontuação) de uma viagem que o autor teria feito anos antes por essa ferrovia russa e de tudo que lá teria visto, por exemplo, as consequências nefastas da guerra russo-japonesa de 1904. A primeira edição do texto era, ela mesma, uma obra original: o poema, ilustrado em cores pela pintora Sonia Delauney, vinha estampado numa tira única de dois metros, que se abria como uma sanfona.
Cendrars escreveria ainda um poema longo, "Panamá, ou as Aventuras de Meus Sete Tios" (1914), seus "19 Poemas Elásticos" (concluídos em 1919), "A Guerra no Luxemburgo" (1916), "Poemas Negros", "Kodak" (estes dois últimos, respectivamente de 1916 e 1923, mais influenciados pelas suas leituras de romances de aventuras do que por viagens reais) e, após as "Notas de Viagem" e "Mulheres Sul-Americanas", além de uns tantos dispersos, deixaria inconcluso "Ao Coração do Mundo".
Depois do ano de sua memorável visita ao Brasil, ele se dedicaria exclusivamente à prosa, concluindo uma carreira poética de cerca de 12 anos. No entretempo, embora suíço e, portanto, não obrigado a combater, ele se alistara na Legião Estrangeira no princípio da Guerra de 1914-18 e perdera o braço direito.
Foram os anos posteriores que o celebrizaram como autor dos romances "Ouro" (1924), "Moravagine" (1925), "Dan Yack" (1929), de livros de reportagens nos anos 30 e de memórias a partir da década seguinte. Ainda nos anos 20 Cendrars colaborara com Abel Gance em projetos cinematográficos e havia escrito o roteiro para o balé "A Criação do Mundo", de Darius Milhaud (cujo cenário levava a assinatura de Léger).
A tendência da crítica e dos leitores atuais, no entanto, é a de enfatizar seus 12 anos de poeta. Cendrars não apenas esteve no centro espaço-temporal (ou seja, Paris de antes da Primeira Guerra) do ciclone que leva o nome de modernismo internacional, como foi um de seus principais catalisadores. "A Prosa do Transiberiano" é um dos dois ou três documentos inaugurais de uma era que, embora talvez já tenha se acabado, mal começou a ser realmente metabolizada. E, no que nos diz respeito, o poeta deu sua contribuição nada desprezível para que o Brasil também entrasse nesse ciclone.

SAINT-PAUL

J'adore cette ville
Saint-Paul est selon mon coeur
lci nulle tradition
Aucun préjugé
Ni ancien ni moderne
Seuls comptent cet appétit furieux cette confiance
/absolue cet otimisme cette audace ce travail /ce labeur cette spéculation qui font construire /dix maisons par heure de tous styles ridicules /grotesques beaux grands petits nord sud /égyptien yankee cubiste Sans autre préoccupation que de suivre les /statistiques prévoir l'avenir le confort /l'utilité la plus value et d'attirer /une grosse immigration Tous les pays
Tous les peuples
J'aime ça
Les deux trois vieilles maisons portugaises qui restent /sont des faïences bleues
BLAISE CENDRARS



SÃO PAULO

Adoro esta cidade
São Paulo está de acordo com meu coração
Nada aqui de tradição
Nenhum preconceito
Antigo ou moderno
Só contam esse apetite furioso essa confiança /absoluta esse otimismo esse arrojo esse trabalho /essa faina essa especulação que erguem /dez casas por hora de todos os estilos ridículos /grotescos bonitos grandes pequenos do norte do sul /egípcios yankees cubistas Sem mais preocupação que a de acompanhar as /estatísticas prever o futuro o conforto /a utilidade o rendimento e a de atrair /muitos imigrantes Todos os países
Todos os povos
Gosto disso
As duas ou três velhas mansões portuguesas que /restam têm azulejos azuis

Tradução de NELSON ASCHER




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