São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997.



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POESIA


Augusto de Campos defende o poeta norte-americano das leituras regressivas em voga e traduz "O Monóculo de Meu Tio"


Wallace Stevens: A era e a idade

AUGUSTO DE CAMPOS
especial para Folha

No excelente ensaio "Pound/Stevens: Whose Era?" (Pound/Stevens: De Quem a Era?), incluído em seu livro "The Dance of the Intellect" (1985), Marjorie Perloff confronta Ezra Pound e Wallace Stevens, tais como se apresentam polarizados na perspectiva de Hugh Kenner e de Harold Bloom, como figuras antitéticas. O primeiro como o poeta da modernidade, da colagem, da citação e do conversacional, o poeta da construção e do "make it new"; o segundo como o poeta neo-romântico do subjetivo atemporal e da meditação pós-simbolista, o poeta da expressão e do "make it old".
A questão é relevante e está bem posta e sustentada, mas não se resolve assim tão facilmente. É que, embora tais angulações se respaldem em certos traços distintos e identifiquem uma caracterologia ensaística (a crítica conservadora pende inelutavelmente para Stevens do mesmo passo que a de visada moderna se inclina para Pound), é mais difícil explicar porque Stevens está longe de ser descartável dos quadros da poesia moderna, apesar de todos os anacronismos que lhe podem ser imputados. A própria Marjorie Perloff não se cansa de manifestar a sua admiração por ele: situa-o, ao lado de Joyce, como um "grande contemporâneo de Pound" e refere-se a ambos (Pound e Stevens) como "dois grandes Modernistas". E no seu mais recente e provocativo livro de crítica, "Wittgenstein's Ladder" (Chicago University Press, 1996), aproxima o universo do "Tractatus Logico-Philosophicus" "dos manifestos gnômicos e aforísticos de Maliévitch" e "dos poemas meditativos de Stevens".
Talvez uma das razões dessa contradição esteja em que não se pode, sem empobrecimento conceitual, confundir "tout court" com a dos poetas do romantismo a linguagem de Stevens, nem a poesia do "eu" subjetivo (intimista e confessional) com a da consciência subjetiva (impessoal e abstrata), por mais que se comuniquem esses universos interiores.
Uma coisa é a estratégia conservadora de querer usar o "conforto espiritual" da poesia lírico-meditativa de Stevens contra os exigentes "atos de discriminação" do vortex colagístico poundiano -operação postiça e facilmente desarmável, que não leva a mais que aos ouropéis sofisticados da mascarada tardo-romântica de um Harold Bloom. Outra coisa é considerar que nenhum objetivismo estético elimina a inquietação subjetiva do ser humano e que não se pode, a não ser para efeito de atuação estética episódica e pragmática, proscrever como coisa do passado o reservatório emocional e a atividade simbólica do ser humano. "O que em mim sente está pensando", disse Fernando Pessoa, um poeta em que coexistiram muitas pessoas de poeta e que tanto conviveu com o futurismo coloquial de Álvaro de Campos e com o realismo conceitual de Alberto Caeiro como com o interseccionismo das imagens oníricas que ele próprio, como Pessoa, assinou.
A "definição precisa" poundiana, ligada aos princípios imagistas (tratamento direto da "coisa", subjetiva ou objetiva, não usar nenhuma idéia supérflua, nenhum adjetivo não justificado etc.), extraída do seu contexto incidental, é um conceito, que, no universo linguístico própria da poesia, passa por um crivo maior, de natureza estética. De tal sorte que se poderia afirmar que, dessa perspectiva mais abrangente, o soneto em "yx", de Mallarmé, é uma expressão absoluta da "precise definition" -nada aí é supérfluo ou não-objetivo, qualquer palavra que se substitua ou desloque viola o sistema estrutural do poema e interfere negativamente, impedindo que ele se cristalize como poesia, a "matemática inspirada" de que fala o próprio Pound.
O que caracteriza a condição do poeta moderno não é tanto a objetividade exteriorizante ou a introspecção lírica, mas a autonomia do discurso poético, permitindo uma descontinuidade experiencial que bloqueia tanto o confessional como o convencional e induz a uma poesia-crítica, neutralizadora do sentimentalismo e da autocomplacência típicos do romantismo na sua dimensão mais vulgar. É claro que essas vulgaridades inexistem na alta poesia de um Keats ou de um Hoelderlin, mas estes são, na verdade, se bem entendidos, precursores transtemporais da modernidade em termos de essencialização da linguagem poética.
Nesse sentido, se a poesia de Pound é sintomática da descontinuidade perceptiva agenciada pelo colagismo ideogrâmico, a de Stevens atua na descontinuidade das camadas subjetivas. Num caso a metonímia, noutro a metáfora predominam como articuladoras de tal processo, em ambos presididas por uma acentuada exigência de precisão vocabular. E se Stevens parece propender para o território das abstrações mallarmeanas, preferindo os "clusters" imagéticos da arte da sugestão simbolista ao feixe convergente de imagens projetado pelos imagistas, não se pode esquecer que ele é um poeta atento para a precisão do impreciso, um poeta para o qual mesmo as "fluttering things" (as coisas esvoaçantes) têm uma "distinct shade" (uma sombra nítida). Nem se mostra ele totalmente infenso ao imagismo poundiano, já que as suas metáforas trabalham com concreções e sínteses, ainda que dentro de um conceitual abstratizado.
O imagismo estava em voga quando Stevens teve alguns dos seus primeiros poemas publicados na revista "Poetry" (1914), de Harriet Monroe, e seu primeiro livro, "Harmonium" -ao qual pertencem os poemas aqui traduzidos-, é de 1923. Não é preciso esforço para aproximar um poema como "Le Monocle de Mon Oncle" de "Portrait d'une Femme", de Pound, nem "The Worms at Heaven's Gate" de "The Tomb at Akr Saar" ("I am thy soul, Nikoptis"), ou "Tattoo" ("The light is like a spider") de "Girl" ("The tree has entered my hands") do mesmo Pound. Stevens ficaria a meio caminho entre esse Pound inicial (caminhando do arcaizante para o imagista) e o Yeats modernizante (influenciado por Pound) dos poemas de Bizâncio ou de "Among School Children".
É verdade que Stevens é um moderado usuário do verso livre. Mas não se pode dizer que seu verso, comparativamente mais normatizável, seja ortodoxo, nem que sua linguagem seja normativa. Ao contrário, as ambíguas incursões prosaizantes, os dúbios estilemas filosóficos, o vocabulário inusitado, os desvios de sua sintaxe elíptica e mesmo da lassidão rítmica dos seus pentâmetros, projetam-no num campo de especulações característico das poéticas modernas.
Em "Le Monocle de Mon Oncle", como em muitos dos poemas da última fase de Yeats, o tema do envelhecimento é tratado com distanciamento e despersonalização e, no caso de Stevens, com laforguiana ironia -traço que condivide com o Eliot de "Conversation Galante" ("I observe: 'Our sentimental friend the moon!'±"). Stevens poderia ter assinado a linha inicial de "Portrait d'une Femme", de Pound: "Your mind and you are our Sargasso Sea". E outras. Pound: "No! there is nothing! In the whole and all,/ Nothing that is quite you own./ Yet this is you". Stevens ("Le Monocle"): "There is not nothing, no, no, never nothing,/ Like the clashed edges of two words that kill". (...) "The sea of spuming thought foists up again/ The radiant bubble that she was". Suas elucubrações sobre o amor e a circunstância humana são mais difíceis de seguir, mas sua torcicolosa reflexão é atravessada por imagens vivas (os amantes envelhecidos como abóboras ao vento, a maçã como uma caveira, pirilampos, grilos, um sapo, um pombo azul, o poeta como um rabi negro ou róseo a especular sobre a essência do homem e do amor).
O Stevens de "Harmonium" e dos primeiros tempos é mais imagístico e menos discursivo e filosofante que o da última fase. Pode-se recriminar neste a crescente perda de equilíbrio entre imagem e conceito, a incongruência solipsista de um discurso idiolético que foi diminuindo o "animus" poético na mesma medida em que aumentou a prolixidade argumentativa. Mas hoje, com a voga da poesia não-referencial, quando até mesmo as insossas e algo frívolas "Stanzas in Meditation", de Gertrude Stein, são encaradas com total seriedade, e absorvidas como oráculos filosofais, os poemas meditativos de Stevens, mesmo os mais áridos e opacos, parecem refulgir com brilhos de pedraria que já começam a ser desdenhados como excessiva poetização frente à gramatologia anatômica que se pressupõe adequada aos textos (não necessariamente) poéticos de agora.
Tanto melhor para Stevens, que se vê aproximar, por contiguidade, dos grandes "verse-makers", seus contemporâneos, como Pound ou Eliot. Stevens é, aliás, um poeta de versos -versos pedras-de-toque- a que a sua dicção híbrida, infiltrada de insólitos vocábulos do latim, do francês, do italiano, do espanhol, dá um colorido peculiar. Ver em "Le Monocle de Mon Oncle", além do título-calembur, a predileção por vocábulos "connaissance" e "coiffures". Ou no epigramático "To the Roaring Wind" ("Ao Vento Ululante"), que belamente encerra o volume de "Harmonium", aquele inesperado "vocalissimus" -um vocativo evocativo que atravessa a textura caco-saxônica do poema, por entre as diluídas reverberações latinas de "syllable" e "distances", como um relâmpago sonoro:
"What syllable are you seeking,
Vocalissimus,
In the distances of sleep?
Speak it".
"Negro rabi, quando jovem", impressionei-me fora do tempo por "Le Monocle de Mon Oncle", esse poema sibilino de reflexão sobre o amor pós-meridiano, cuja tradução só vim a completar há alguns anos. Não me preocupei, então, com a contagem silábica, fixando-me num pentâmetro topológico que agora, na versão integral, ajustei mais ortodoxamente ao decassílabo.
Mário Faustino publicou no "Suplemento Literário do 'Jornal do Brasil'±", em 6 de outubro de 1957, a primeira versão que eu fiz de três estrofes do poema (pouco depois, em 1º de dezembro de 1957, divulgaria a tradução de Haroldo de Campos de outro texto poético, "Study of Two Pears", com uma nota por este assinada sobre o "objetivismo" de Stevens). À minha tradução, que ora republico, revista e completada, acresço uma homenagem mais recente, a "intradução" de "To the Roaring Wind", buscando recriar, com liberdade icônica e formal, e olhos de hoje -"olhar digital", se assim posso dizer-, a fulgurante epifania stevensiana.
Desmesurada e pouco inventiva, tem um laivo de ressentimento a fórmula infeliz proposta por Harold Bloom, quando quer opor ao "dictum" kenneriano ("The Pound Era") um contrafeito "The Age of Stevens (Or Should We Say the Stevens Era?)". Poeta disfarçado de agente de seguros, Stevens não se expôs aos riscos peripatéticos de Pound, não foi tão generoso e influente como ele, nem tão responsivo ao que "the Age demanded". Se a Era não fosse de Pound, seria antes de Eliot, também grande, criador de "The Waste Land", um dos maiores poemas da modernidade, e, para o bem ou para o mal, nobelizado, como Yeats, com todas as pompas do seu tempo. Por outro lado, a expressão acadêmica "The Age of Stevens", que o próprio Bloom se apressa a ressalvar, ostenta certa ambiguidade com a idéia de velhice que não há de ser palatável aos admiradores-conservadores do poeta.
Nós, que o admiramos sem querer convertê-lo em patrono de poéticas regressivas, preferimos não excluí-lo da perspectiva da modernidade. E vê-lo, antes, como um inclassificável fabricante de sonhos verbais, um abstracionista de dicção original e única, um arquiteto de "versos movediços", que foi capaz de desautomatizar "robôs-palavras" e de dar à sua língua inéditas inflexões. Em meio aos gigantes de sua geração, Wallace Stevens soube extrair do seu harmônico aparentemente anacrônico estranhas dissonâncias e dissidências, destemperando-o e fazendo dele um instrumento de sonoridades imprevistas, sensível às transformações do seu tempo.


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Expoemas" e "Despoesia", entre outros.




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