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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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HECTOR BABENCO
O REI DA NOITE  /1975

Marília Pêra, quando acabaram as filmagens, me disse: "Você está muito aquém do que eu esperava de um diretor; é muito jovem e ainda não sabe dirigir ator"

O que você fazia antes de realizar "O Rei da Noite"?
Na época eu morava em São Paulo e tentava viver de fazer documentários tipo Jean Manzon. Eu não sabia nada de cinema. Fui fazer, por exemplo, um documentário sobre a cidade de São Paulo, encomendado pela Prefeitura. Era pouco antes do Natal, a rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, estava toda iluminada e decorada. O diretor de fotografia Peter Overbeck me perguntou que lente eu queria que ele pusesse na câmera. Eu respondi: "Por quê? Você tem mais de uma?". Por aí você vê como eu não sabia nada. Quando resolvi fazer o longa -que viabilizei com a ajuda de minha ex-mulher, Raquel Arnaud, do amigo Paulo Francini e da José Pinto Produções-, eu não tinha experiência nenhuma, nunca tinha lido um livro de cinema, não tinha sido assistente, não sabia como se filmava.

Como surgiu a idéia do filme?
A idéia do filme surgiu lendo um pouco Oswald de Andrade, vendo um pouco a evolução da cidade de São Paulo. Fui vendedor na cidade durante dois anos, conhecia muito bem, de andar a pé, o centro velho de São Paulo e me interessei por aquelas figuras decadentes, que eram os homens-sanduíche, os pequenos estafetas de escritório, os que viviam de pequenas tarefas no calçadão do centro. Homens idosos, de 70 anos. Interessou-me fazer um paradigma de que cidade era aquela, que havia chegado à modernidade naquela época, início dos anos 70, por meio de um homem que tivesse tido um berço esplêndido, que tivesse passado por uma educação de alta burguesia, depois tivesse caído na boêmia e depois visse o sonho de ser o rei da noite sucumbir com o casamento. Na época eu lia muito o [escritor] Dalton Trevisan. A segunda parte do filme é muito influenciada pela coisa azeda, cruel, das relações conjugais do Dalton Trevisan. Decidi fazer um filme que fosse um aprendizado para mim, meu primário e meu ginásio, e ao mesmo tempo queria chegar ao público. Por isso escolhi uma linguagem totalmente melodramática, que trazia das radionovelas e do cinema melodramático argentino. Escrevi o roteiro com Orlando Senna, hoje secretário do Audiovisual.

Como foi sua relação de cineasta estreante com o elenco, que já era tarimbado?
Eu tinha conhecido o Paulo José e o convidei. Ele gostou do papel. Sou grato a ele até hoje por ter confiado num iniciante. Ele me deu credibilidade para ir até a Marília Pêra. Ela adorou a idéia de cantar um tango. Aí fui por várias noites ver um espetáculo circense em que a Vic Militello trabalhava. Eu sentava na primeira fila. No dia em que fui convidá-la para fazer o filme, ela se decepcionou muito: achava que eu ia vê-la por estar apaixonado. A Marília Pêra, quando acabaram as filmagens, disse para mim: "Você está muito aquém do que eu esperava de um diretor. Você é muito jovem e ainda não sabe dirigir ator". Ela me passou um sabão muito elegante. Eu não tinha como responder. Só disse: "Na próxima vez, quem sabe a gente faz um trabalho melhor". Ela respondeu: "É tudo o que eu espero". E aí a gente fez "Pixote". O Paulo José, por sua vez, foi uma figura capital. O filme todo era dublado, e foi ele que dirigiu os atores na dublagem.

O diretor de fotografia Lauro Escorel, que depois seria seu parceiro frequente, também deve ter ajudado bastante.
Tão importante quanto o Lauro, ou até mais, foi a descoberta do Jorge Durán, rapaz chileno que tinha sido continuísta de "O Casamento", do [Arnaldo] Jabor, e que no Chile tinha sido assistente de direção do Costa-Gavras em "Estado de Sítio". A função dele no filme era fazer tudo o que eu não sabia fazer. Com ele fiz também "Lúcio Flávio". Foi ele realmente quem me ensinou a filmar.

Como "O Rei da Noite" foi recebido?
De público foi um sucesso razoável, foi lançado com 10 ou 12 cópias, e acabou se pagando. O pessoal do cinema novo ficou extremamente hostil. Eu me lembro que, quando mostrei o filme no MAM [Museu de Arte Moderna] do Rio, numa jornada de cinema, teve gente que quis me dar porrada. Acharam que era um filme comercial, indigno.

Como você vê hoje o filme?
Foi o filme que me deu a certeza de que eu era capaz de fazer cinema. O grande saldo, para mim, foi esse. Você não sabe da sua masculinidade até transar pela primeira vez. "O Rei da Noite" representou para mim a certeza de que eu era capaz. Ele não me envergonha em nada. As pessoas viram, gostaram, ele gerou polêmica. Acho que com ele entrei no cinema brasileiro com o pé direito.

OUTROS FILMES: "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia" (1978), "Pixote" (1981), "O Beijo da Mulher Aranha" (1984), "Ironweed" (1987), "Brincando nos Campos do Senhor" (1990), "Coração Iluminado" (1998) e "Carandiru" (2003).


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