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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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NARCISISMO ÀS AVESSAS

Crueldade e má consciência saturam e definem o cinema brasileiro contemporâneo

Fernão Pessoa Ramos
especial para a Folha

A fratura de classes da sociedade brasileira está presente de modo recorrente em nosso cinema. Expressa-se no que podemos chamar "representação do popular". Depois de um intervalo da década de 80, retornam hoje os clássicos motivos da representação do popular (a favela, o sertão, o Carnaval, o candomblé, o futebol, o folclore nordestino). Nesse campo, a partir dos anos 60, o eixo que orienta a questão ética é um sentimento de má consciência relacionado ao fato de essa representação do popular ser a assunção de uma voz que não é a de quem a emite. Trata-se de uma rachadura que, seguindo uma sensibilidade cara à antropologia visual, poderíamos chamar de epistemológica. Em sua complexidade contemporânea, já pode ser sentida plenamente em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1963), tomando sua feição mais precisa em "Terra em Transe" (1966). Este é o filme no qual eclode a contradição ética intrínseca à representação do popular enquanto "outro", dilema que compõe o fulcro central da obra de Glauber Rocha. No campo do pensamento sobre o cinema, o livro "Brasil em Tempo de Cinema" (Civilização Brasileira, 1967), de Jean-Claude Bernardet, sente nitidamente a pressão dessa rachadura epistemológica e a constata em tom recriminatório: esse "outro" que representa o povo, que possui ambições de um saber pelo povo, nada mais é do que a classe média olhando para seu próprio umbigo. Temos um cinema de classe média, em vez de um cinema popular, e isso incomoda a geração que fez o cinema novo. "Já imaginaram Gerônimo no poder?" nos diz o protagonista de "Terra em Transe", Paulo Martins (Jardel Filho), com um homem do povo nas mãos, olhando fixo para o espectador, como que encarnando as desconfianças e angústias dessa alteridade. Pois "Gerônimo" hoje chegou ao poder e o cinema brasileiro ainda se debate com sua sombra, na forma de uma má consciência. Neste artigo será dado um nome à expressão contemporânea dessa má consciência: será chamada de "narcisista às avessas" e irá se considerar que sua manifestação no cinema contemporâneo embute uma forma de crueldade. As dúvidas para com o potencial do povo e sua cultura (presentes no primeiro cinema novo e, em particular, nos longas de Glauber da década de 60) desaparecem para serem substituídas pela imagem idealizada desse mesmo povo. Na outra ponta do pólo popular, no pólo negativo, não está mais a classe média, mas a nação como um todo e, em particular, o Estado e suas instituições. Estabelece-se então uma dualidade maniqueísta, povo idealizado/Estado incompetente, que percorre a produção da chamada retomada. A satisfação e a catarse espectatorial realizam-se à custa dessa polaridade, em uma forma que, seguindo Nelson Rodrigues, chamaremos de "narcisista às avessas". Estamos nos referindo às estratégias desenvolvidas por filmes-chave da retomada, para promover emoções no espectador, por meio de mecanismos de catarse que incidem sobre a representação, acentuadamente negativa, de aspectos da vida social brasileira. Existe um certo prazer perverso em representar o sórdido na produção cinematográfica brasileira contemporânea. A dimensão dessa representação, voltada para o acentuar dos aspectos bestiais e repulsivos da vida e à maneira de mostrá-los de forma crua e desagradável, tomamos a liberdade de chamar "naturalista cruel", mesmo que a expressão "naturalista" não deva ser tomada em um sentido estrito. Seja dentro de uma perspectiva mais intimista ou girando em torno da má consciência social, a representação naturalista cruel aparece em obras-chave da produção cinematográfica brasileira dos últimos dez anos: de "Central do Brasil" a "Cronicamente Inviável", passando por documentários como "Notícias de Uma Guerra Particular", "Boca do Lixo", "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas", "O Prisioneiro da Grade de Ferro", "Ônibus 174". Também a encontramos em "Orfeu", "O Primeiro Dia", "Dezesseis Zero Sessenta", "Como Nascem os Anjos", "Um Céu de Estrelas", "O Cego Que Gritava Luz", "A Grande Noitada", "Bocage, o Triunfo do Amor", "Estorvo", "Um Copo de Cólera", "Lavoura Arcaica", "Bicho de Sete Cabeças", "Latitude Zero". Surge igualmente no pioneiro "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil" ou ainda nos recentes "Uma Onda no Ar", "Madame Satã", "O Príncipe", "O Invasor", "Dois Perdidos em uma Noite Suja" ou nos dois últimos grandes sucessos de público da produção nacional, "Cidade de Deus" e "Carandiru". Dentro de sua gama diversa, esse "naturalismo cruel" pode ser definido pelo prazer que toma a narrativa em deter-se na imagem da exasperação ou da agonia. São constantes os longos planos dedicados à representação de berros ou momentos de crise existencial. Atores berrando a plenos pulmões constituem sua marca distintiva. A exasperação dramática é mostrada em detalhe e exagerada ao extremo, para além da motivação realista.

Personagens sórdidos
Não é economizado espaço para a representação de momentos particularmente dilacerantes como partos, mortes, agonias, cortes, sangramentos, choros convulsivos, risos histéricos. O deboche e os personagens sórdidos recebem destaque. A imagem da miséria, da sujeira, a ação dramática em ambientes fechados e abafados (como prisões ou favelas), surge de modo recorrente. Ações com requintes cruéis de violência são exibidas em toda sua crueza.
Essa imagem constitui-se dentro de uma estratégia que eleva a intensidade dramática ao limite da agressão ao espectador. O naturalismo cruel incomoda, agride, provoca constrangimento e considera esse constrangimento um trunfo. À estratégia do espectador para obter prazer nessa situação chamamos de "narcisismo às avessas". No cinema contemporâneo o naturalismo cruel costumar sair da esfera mais intimista-psicologizante (em que, em diversos casos, permanece, como em "Um Copo de Cólera", "Latitude Zero", "Estorvo", "Um Céu de Estrelas", "Bicho de Sete Cabeças", "Lavoura Arcaica") para se cristalizar na representação de uma nação socialmente cindida. Os filmes em que isso acontece são os que nos interessam aqui.
A dimensão cruel do cinema brasileiro contemporâneo embute uma agressividade às instituições e ao Estado brasileiro (em particular) ou ao Brasil e ao "brasileiro" (em geral). O prazer em fruir a crítica acirrada e a representação cruel conforma-se dentro do modo narcisista às avessas, esboçado por Nelson Rodrigues com ironia. Essa composição do naturalismo cruel com o narcisismo às avessas marca um percurso que embute uma forma de recepção. O genial da expressão rodriguiana ("o brasileiro tornou-se um narciso às avessas, que cospe na própria imagem") é conseguir resumir um traço essencial de sua própria obra (onde a crueldade excele) à forma de recepção que dela pressente: o caráter humilde, bovino, no limite masoquista, da personalidade do brasileiro, espectador ideal para ter prazer com a cascata iconoclasta de seus dramas (Plínio Marcos também não é estranho a esse recorte).
Na representação cruel da nação cindida, podemos citar filmes em que a polaridade negativa, cristalizada na incompetência do Estado, aparece contraposta a uma catarse "narcisista às avessas", centrada na dimensão idealizada do personagem anglo-saxão (ou estrangeiro): "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil", "Como Nascem os Anjos", "O Que É Isso, Companheiro?", "Jenipapo", "For All -Trampolim da Vitória" são filmes em que a figura do estrangeiro idealizado é contraposta à da nação, exposta em sua sordidez e incompetência.
Na realidade, o naturalismo cruel parece não ter coragem de se sustentar por si próprio ao representar a nação inviável (em alguns casos ele escorrega para o lado depressivo, como em "O Príncipe" e "O Invasor") e gera um movimento de resgate catártico. Isso é mais evidente quando, no outro pólo da dicotomia, não está o personagem estrangeiro, mas o povo idealizado. Diversos filmes da retomada estruturam-se dessa forma ("Orfeu", "O Primeiro Dia", "Uma Onda no Ar", "Ônibus 174", "Notícias de uma Guerra Particular", "Carandiru"), com destaque para "Central do Brasil".
Em "Central do Brasil" a má consciência da protagonista (Dora) para com o povo humilde é evidente, e sua oscilação constituirá o principal móvel dramático do filme. O percurso da narrativa é claro. Parte de uma visão do país que é acentuada em seu negativismo para, em seguida, desenvolver um movimento de redenção pela catarse da piedade. O mais cruel dos crimes (o assassinato de crianças pobres para extração de órgãos) surge como algo corriqueiro na "central", no coração, do Brasil. Aos pequenos crimes de Dora sobrepõe-se esse, maior em escala, em cuja participação existe um "quê" de ação cotidiana banal. O motor da ação, que irá configurar a má consciência de Dora, é concebido para ser pesado ao extremo, refletindo a necessidade de mostrar um quadro de sordidez no qual o país está mergulhado. Dora é movida pela má consciência, figurando em si um sentimento ambíguo de classe com relação ao universo popular que circula na Central do Brasil.
A figuração da má consciência, no entanto, parece ser excessivamente incômoda para ser deixada nessa forma, sem um horizonte no qual possa ser resgatada. E é a esse resgate que se dedica a segunda parte do filme. Dora é purgada de suas oscilações sobre o sacrifício do menino na sequência da procissão, quando mergulha fisicamente no povo e se encontra embebida em sua fé e sua cultura.
Um dos momentos-chave do filme, a sequência da procissão, traz a comoção pessoal vivenciada internamente, produzindo como resultado a conversão definitiva da protagonista ao menino. A virada é bem marcada e a dimensão conflitiva que impedia o congraçamento do espectador com a causa popular desaparece do horizonte. Até a atriz Fernanda Montenegro está agora mais à vontade para realçar seu personagem. Por meio da catarse, a narrativa resgata a passividade dos personagens para com a dimensão sórdida da nação, que assassina suas crianças ou as trafica para o exterior. É a nação inviável que recebe o ônus de sustentar a conformação dos pólos extremos da equação, necessários para a figuração da catarse pela piedade.
Também em "Carandiru" podemos delinear a temática do Estado incompetente como eixo de identificação catártica. Babenco é um cineasta argentino que sempre teve uma caída para o lacrimoso, ao representar o lado sórdido e cruel da realidade social brasileira. Em "Carandiru", na última meia hora do filme, ele parece estar à vontade para a representação do Brasil infame que já encontramos em "Pixote, a Lei do Mais Fraco", "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia", "Brincando nos Campos do Senhor". A cena do massacre, em que é dada vazão plena ao detalhamento naturalista cruel, começa com a entoação do hino nacional na partida de futebol e termina com "Aquarela do Brasil", logo no início dos créditos. O Brasil dos coqueiros que dão coco e das noites claras de luar não pode ser deixado em paz, mas, de uma forma um tanto óbvia, tem de ser servido na bandeja para o exercício restaurador do narcisismo às avessas. O choque que a representação naturalista do massacre provoca é modulado pelo endosso à ironia fácil que, por meio da canção, contrapõe o Brasil idílico ao Brasil cruel do Estado incompetente. A necessidade de identificação na postura crítica, exacerbada dramaticamente pela representação cruel, testemunha um mal-estar social que chamamos de má consciência.
"Cidade de Deus" e "Cronicamente Inviável" situam-se de modo particular nesse quadro, por não construírem o pólo popular voltado para o resgate catártico da má consciência. "Cronicamente Inviável" é a obra que conseguiu delinear (até mesmo em seu título) de modo mais preciso esse estatuto da incompetência do Estado brasileiro, carregado de crueldade e sordidez. A figuração da incompetência é horizontal. Não se abre uma exceção na qual o espectador consiga se sustentar para salvar qualquer intuito de identificação. Também não encontramos a porta para a recuperação do ego pela catarse, na figura do popular idealizado. A nação como um todo é inviável, e o filme vai percorrendo, um a um, seus agentes sociais, querendo demonstrar essa tese.
"Cronicamente Inviável", no entanto, abre espaço para uma postura espectatorial tão cômoda quanto modesta. A crítica acirrada horizontal acaba estabelecendo um eixo redentor de identificação com a voz narrativa que enuncia a acusação. O endosso da crítica prova que não fazemos parte da coletividade inviável. A humildade bovina que descreve Nelson Rodrigues compõe, então, o âmago da postura narcisista às avessas, em sua estratégia para obter prazer com a representação cruel. Essa passividade é uma forma de castigo (nada mais cristão, na verdade) que nos impomos pela purgação da culpa na representação da fratura social.


Fernão Pessoa Ramos é autor de "Cinema Marginal - A Representação em Seu Limite" (ed. Brasiliense), entre outros.


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