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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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Ponto de fuga

Língua solta

Jorge Coli
especial para a Folha

Não existe o MAO, Movimento dos Autores Oprimidos, mas deveria. "Como escritor", disse Ferreira Gullar, "tenho visto horrorizado a língua portuguesa ser achatada. (...) A coisa chegou a tal ponto que, em uma recente tradução que fiz, a editora trocou todos os "este" do meu texto por "esse'".
A revisão é alívio para qualquer um que publique alguma coisa. Ela impede os lapsos e as ignorâncias verdadeiras. Ela põe tudo em ordem, acertando os deslizes que, na precipitação da escrita, sempre acontecem. Anda surgindo, porém, na revisão, um sub-reptício alargamento de poderes, estreitando o campo da expressão. Nada de dramático, não, tudo corroído pela borda, um "este" substituído por um "esse", um "onde" substituído por um "em que".
Ocorre que a gramática e a estilística não são feitas apenas de regras lógicas e rígidas. Elas são frutos da cultura e da história. Comportam, portanto, discussões, debates, divergências. Tudo isso pode dificultar uma aplicação mecânica de correções precisas. Editoras, revistas, jornais estabeleceram, para remediar as dúvidas, normas estritas, codificadas em manuais, que transformam em erro aquilo que é uma escolha admissível, mesmo se controversa, em termos gramaticais ou estilísticos. São posturas que restringem, simplificam, normalizam, pasteurizam. Equivalem a manuais de bom comportamento, ou de boas maneiras, que fossem impostos como legislação legítima. São aplicadas um pouco ao modo dos corretores embutidos nos programas de computador. Diante delas, quem escreve não fica com a última palavra.

Estratosfera - Décio de Almeida Prado conta que, ao iniciar sua carreira de crítico, tinha completa liberdade em tudo, menos para usar certos termos percebidos, na época, como galicismos: "detalhe", por exemplo... Hoje, o "onde" se refere sempre a um lugar físico, nunca metafórico. O "através" poderia ser empregado com tantas nuanças poéticas, mas é objeto de um tal terrorismo que muita gente evita escrever a palavra.
Mesmo em casos claramente autorizados, às vezes cai a lâmina arbitrária. É assim com "o personagem" e "a personagem". As duas formas são boas, ou más: a primeira pode ser acusada de galicismo, a segunda de purismo. Embora exista uma tradição maior em português do uso masculino, como aparece em Machado de Assis, muitas vezes a correção não hesita. De certo, devem ter mesmo emendado o próprio Machado em edições recentes.
Tudo isso são bizantinismos, está claro, pontos de somenos. Mas, se de fato são insignificantes assim, porque então aplicar essas regras? Elas são defendidas com rigidez que não discute.
Editoras universalizaram a redação dos títulos e subtítulos com maiúsculas. Dessa maneira, perdem-se variantes expressivas: "A Morte do Caixeiro-Viajante" adquire uma eloquência que se desmonta na banalidade apropriada de "A morte do caixeiro-viajante". Para continuar entre os defuntos, na estante, a lombada em estilo floreal, de 1912, enuncia o título do romance de Coelho Netto: "O morto". Se fosse "O Morto", adquiriria a grandeza monumental de um Euclides, proclamando: "A Terra", "O Homem", "A Luta".

Rasteira - Algumas editoras tratam as traduções como se fossem transparências invisíveis, e não como o resultado de um trabalho literário efetivo. Pegam traduções antigas, às vezes ilustres, como o Proust por Drummond ou Quintana, e "atualizam" esses textos. A intenção é boa: tornar a obra mais acessível ao leitor de hoje. No entanto, se esse leitor sente dificuldades em decifrar uma tradução concebida há 50 anos por Drummond, não será uma simplificação atual que o fará entender aquilo que Proust escreveu. Ou a tradução é boa e deve ser respeitada, ou ela é ruim e deve ser refeita.

Signos - Existem implicâncias com o uso de itálicos, de aspas, de travessões, em nome da triste homogeneidade. Alguns manuais possuem regras hilariantes, como, por exemplo, proibir a fórmula "calor senegalesco", que talvez tenha sido um chavão de bacharel. Nos nossos dias, ela é uma delícia e deveria render prêmio a quem a empregasse.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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