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CINEMA
O cineasta David Cronenberg fala em entrevista exclusiva sobre seu novo filme, "eXistenZ"
transCendenZ
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
O cinema do canadense David
Cronenberg, 56, pode ser visto como um "work in progress" de experimentação das mais variadas
combinações entre o orgânico, o
mecânico e o humano.
Seu novo filme, "eXistenZ", é,
até agora, o ponto culminante
desse projeto estético em que o
corpo se transforma em máquina,
a máquina em organismo, o organismo em jogo e enigma.
No filme, a mais brilhante criadora de games virtuais, Allegra
Geller (Jennifer Jason Leigh), é ferida num atentado terrorista durante a apresentação de seu novo
jogo, "eXistenZ".
Em sua fuga, Allegra convence
seu guarda-costas, Ted Pikul (Jude Law), a entrar com ela em
"eXistenZ", o que exige a abertura
de um buraco na espinha do rapaz, para que o jogo seja conectado a seu sistema nervoso.
A partir daí, a ação se desenvolverá ora dentro do game, ora no
"mundo real", sem que os personagens (e o público) saibam bem
quando estão num ou no outro.
O auge da invenção simbiótica
em "eXistenZ" é um revólver feito
de ossos e restos animais, cujos
projéteis são dentes humanos.
Se, no cinema de Cronenberg,
sexo e tecnologia sempre estiveram próximos -como modos
radicais de experiência que violentam o corpo para transcender
seus limites-, em "eXistenZ" seu
entrelaçamento é absoluto.
Não por acaso, o convencimento do hesitante Pikul a entrar no
jogo (e deixar-se penetrar por ele)
coincide com sua sedução erótica
por Allegra. O que há de mais perturbador no cinema de Cronenberg -a par da constituição de
um universo que oscila entre o pesadelo e a realidade- é a ausência de julgamento moral. O criador (seja o cientista de "A Mosca",
os ginecologistas de "Gêmeos -Mórbida Semelhança", o escritor
de "Almoço Nu" ou a criadora de
games de "eXistenZ") jamais é
censurado pelo desastre que sua
busca possa causar.
Pelo contrário: toda a simpatia
de Cronenberg vai para esses seres visceralmente insatisfeitos,
quer o resultado de sua busca seja
sublime ou monstruoso.
É demasiado fácil ver nas obsessões biotecnológicas de Cronenberg o reflexo de sua biografia
(garoto obcecado por microscópios e insetos, chegou a cursar um
ano de ciência na Universidade de
Toronto, antes de se bandear para
o curso de literatura).
Mas é preciso ir além do estereótipo para ver que essa filmografia frequentemente rotulada
de repulsiva e obscena é uma das
obras mais relevantes e pessoais
do cinema contemporâneo.
Ao falar de seus objetivos estéticos, Cronenberg disse certa vez:
"Não quero ter acesso livre ao cérebro, ao sistema nervoso e à sensibilidade do meu público, e sim o
contrário".
Ver um filme de Cronenberg é,
de fato, ter acesso a uma das mais
fascinantes personalidades criadoras de nossa época.
O escândalo é que "eXistenZ",
que foi um dos maiores sucessos
do recente Festival do Rio, ainda
não tem lançamento comercial
previsto para o Brasil, por falta de
distribuidora interessada.
Cronenberg falou à Folha por
telefone, de Toronto (Canadá), cidade onde nasceu e onde vive
com a mulher e três filhos.
Folha - Você disse que a idéia
de seu novo filme, "eXistenZ",
partiu de uma conversa que teve com o escritor Salman Rushdie. Como foi isso?
David Cronenberg - Sempre tive muito interesse por Rushdie,
em parte porque é um escritor
maravilhoso, em parte por causa
da "fatwa" (sentença de morte)
que pesa sobre ele.
Quando tive a chance de entrevistá-lo, durante a conversa me
dei conta de que a situação dele
era um script perfeito para um filme. Decidi então que meu filme
seguinte seria sobre alguém que é
condenado à morte por causa de
uma coisa que criou.
No primeiro esboço do roteiro,
não pensei em colocar ninguém
jogando o game inventado pela
personagem perseguida, Allegra.
Folha - É difícil imaginar o filme sem isso.
Cronenberg - Pois é, seria um
filme totalmente diferente. Mas,
quando comecei a escrever, fiquei
tão curioso para saber como era
aquele jogo de que as pessoas falavam no filme, que senti vontade
de entrar nele, e presumi que o
público também sentiria. Aí o filme mudou totalmente de tom.
Agora não se trata, prioritariamente, de um artista em fuga, mas
de outra coisa.
Folha - Você vê "eXistenZ" como uma espécie de continuação
de "Videodrome", já que ambos
lidam com a passagem a uma
outra dimensão por meio da
tecnologia eletrônica?
Cronenberg - De certo modo,
todos os filmes são isso. Em cada
filme, você faz seu público entrar
em outra dimensão, usando
meios eletrônicos e mecânicos.
Todos os meus filmes são assim,
de uma maneira ou outra.
Quando estava fazendo "eXistenZ", eu não pensava nele como
uma sequência, ou como um "remake", mas olhando para ele agora vejo algumas conexões óbvias
com "Videodrome". O fato de
que haja tantas semelhanças entre
eles é, em parte, coincidência, e,
em parte, tem a ver com o fato de
ser o primeiro roteiro original que
eu escrevi desde "Videodrome".
Folha - Em "eXistenZ" os personagens têm de enfiar um plug
na espinha para poder entrar no
jogo. Ou seja, para que eles entrem no jogo, o jogo tem que
entrar neles. Isso sugere que o
único meio de conhecer realmente uma coisa é interagir
com ela fisicamente. De certo
modo, seus próprios filmes exigem que o espectador entre neles e os vivencie como uma experiência física.
Cronenberg - Com certeza.
Meu sentimento é o de que o primeiro fato da existência humana
é o corpo. Tudo que fazemos e experimentamos é mediado pelo
nosso corpo. Nós somos nosso
corpo, embora às vezes esqueçamos disso.
Então, para conectar-se completamente a uma experiência,
penso que sempre é preciso haver
um elemento corporal, orgânico
nesse contato. Mesmo quando
achamos que estamos sendo muito cerebrais ou intelectuais, separados das coisas físicas e orgânicas, trata-se de uma ilusão. O cérebro também é um órgão, não é?
Para mim, a arte é sempre uma
experiência carnal. Estou sempre
tentando mostrar isso na tela, de
uma maneira, digamos, metafórica. O que quero é nos fazer voltar
ao corpo. Dizer: "Não nos esqueçamos do nosso corpo".
Folha - Martin Scorsese disse
certa vez que você não entende
o sentido de seus próprios filmes. Suponho que você tenha
tomado isso como um elogio.
Cronenberg - Bem, certamente
não tomei como um insulto. Acho
que é legítimo ele dizer isso. Se
aquilo que você cria como artista
está vivo, terá então muitos sentidos. Terá diferentes sentidos para
pessoas diferentes.
Quanto a Scorsese, não sei se ele
é um católico praticante, mas sei
que ele acredita no diabo, acredita
no Mal, e provavelmente acredita
também numa vida depois da
morte. Devo dizer que não acredito nessas coisas, pelo menos não
nesses termos. Ele interpreta
meus filmes da sua perspectiva.
Acho que o que Scorsese disse
sobre mim pode ser dito sobre
muitos artistas, porque grande
parte do que fazemos é intuitivo.
Temos antenas, temos radares,
captamos coisas estranhas e tentamos traduzi-las numa linguagem estética. Não tenho a última
palavra sobre meus filmes.
Folha - O lado bom disso é que
você continua a aprender com
seus próprios filmes e descobrir
coisas novas neles.
Cronenberg - Sim. E é isso que
me mantém fazendo filmes. Eu
continuo a me surpreender e continuo lidando com coisas que antes não sabia que lidaria.
É por isso que resisto quando
você diz que "eXistenZ" é uma
continuação de "Videodrome".
Percebo as conexões entre eles,
mas ao mesmo tempo espero estar discutindo outras coisas. Acho
que nesses 17 anos que os separam eu andei aprendendo certas
coisas e explorando áreas diferentes das que explorei antes.
Folha - Em "eXistenZ" há dois
jogos virtuais interativos, "eXistenZ" e "transCendenZ". Suponho que esses nomes não sejam
casuais. O filme pode ser visto
como uma disputa entre existência e transcendência, ou entre concepções imanentes e
transcendentes?
Cronenberg - Penso que sim.
Temos uma dualidade na nossa
vida cotidiana: por um lado, uma
tendência a viver o momento, experimentar o que há para ser experimentado; por outro lado, o
desejo de transcender nossa dor,
nossos corpos, porque, quando
aceitamos nossos corpos, temos
de aceitar nossa condição mortal,
o que para a maioria das pessoas é
uma coisa difícil.
Sentimos também a possibilidade criativa de que a vida humana
seja muito mais brilhante e intensa do que aquilo que vivemos.
Mas há uma armadilha aí: pode
ser que você nunca contribua para sua verdadeira vida se ficar tentando escapar para outra coisa.
Portanto, existe em nós essa luta
a que você se refere, e esse é de fato o sentido daqueles dois jogos.
Como Allegra Geller diz, "é um
jogo que todo mundo joga".
Folha - Há no filme muitos personagens estrangeiros. Há uma
razão específica para isso?
Cronenberg - Sim, porque estou falando sobre um jogo e sobre
a criação de personagens, de falsas identidades.
Para muita gente, uma das delícias da Internet é tornar-se o que
se quer ser. Você tem policiais que
se tornam garotas de 13 anos. Deve haver algum prazer em representar uma garota de 13 anos
quando você é um homem de 40 e
trabalha na delegacia (risos).
No filme, falo sobre os diferentes disfarces e fantasias que usamos quando jogamos um jogo.
Num certo sentido, também estou discutindo a arte, pois uma
das razões pelas quais as pessoas
amam um romance ou um filme é
a possibilidade que eles lhes dão
de viver outras vidas. É uma forma de transcendência, também.
Folha - Em muitos aspectos,
seu cinema nos lembra os filmes
B de terror e ficção científica
dos anos 50. Esses filmes, combinados com a literatura transgressiva de William Burroughs,
Nabokov e Henry Miller, seriam
sua principal fonte de inspiração estética?
Cronenberg - Minha primeira
motivação artística na vida foi literária. Eu achava que seria um
romancista, um maravilhoso e
obscuro romancista (risos).
Quando criança, eu via filmes o
tempo todo, mas de cinema em
geral, sem nenhum gênero específico. Minha inspiração principal,
ao menos consciente, vem da literatura, sobretudo dos romancistas que você mencionou.
Na juventude, vi muito Fellini e
Bergman, fiquei muito entusiasmado por Jean-Luc Godard, mas
isso foi antes de eu saber que seria
um cineasta. De todo modo, é difícil separar nossas influências.
Folha - Qual foi o último filme
que o impressionou?
Cronenberg - Bem, acho que foi
um que vi outro dia na TV, um
pequeno filme americano chamado "Pi", dirigido por Darren Aronovsky (sobre a saga de um matemático que tenta encontrar o valor exato do número pi). É um filme muito barato, rodado em preto-e-branco.
Há muitos filmes que me empolgam, mas penso que é raro encontrar hoje um conjunto de obra
que represente de fato uma sensibilidade, como era o caso em gente como Fellini e Bergman.
Considero isso preocupante,
porque a maioria dos jovens cineastas de hoje não aspiram a ser
Fellini, eles aspiram a ser alguém
que dirige filmes como "A Rocha"
ou "Armaggedon". Querem ser
famosos e ricos. Parece que não
existe um meio termo: ou você é
um cineasta obscuro e independente, cujos filmes ninguém vê,
ou trabalha nos grandes estúdios,
em filmes sem assinatura.
Folha - A maioria de suas histórias poderia ser ambientada
em qualquer lugar, ou mesmo
em lugar nenhum. O fato de
continuar filmando no Canadá,
em vez de mudar para Hollywood, pode ser visto como um
gesto de resistência às convenções e fórmulas da grande indústria do cinema?
Cronenberg - Acho que pode,
mas, a despeito de meus filmes
darem a impressão de poder ser
filmados em qualquer lugar, para
mim isso não é verdade. Num
sentido muito funcional e físico,
eu dependo de Toronto para filmar. Tenho minha equipe aqui,
meus sistemas de apoio. E minhas
raízes estão aqui.
Para alguém de fora, isso não
aparece. Mas, para alguém de Toronto, "Crash" é um filme muito
daqui. Não parece Nova York,
não parece nenhuma cidade dos
EUA. Para mim, é importante estar em Toronto, tanto num sentido pragmático como espiritual.
Se eu tivesse mudado para Los
Angeles e feito carreira lá, como
meu amigo Ivan Reitman (diretor
de "Ghostbuster", "Irmãos Gêmeos" etc.), meu cinema seria totalmente diferente. Não quero
mudar para lá, não quero que
meus filhos cresçam lá. Acho que
aqui é um lugar melhor para criar
os filhos. O sistema de valores em
Hollywood é muito estranho.
Folha - Eu gostaria de saber
qual é seu próximo projeto.
Cronenberg - Eu também (risos). Tenho algumas idéias para
roteiros, mas ainda estou brigando com elas. Depois de fazer um
filme, tenho de me transformar
num escritor novamente. Essa é
uma transição difícil para mim.
Estou também lendo roteiros
que me mandam. Tenho sempre
a esperança de que haja um roteiro que seja tão maravilhoso e perfeito para mim que me poupe o
trabalho de escrever um.
Folha - E seu velho projeto de
escrever um romance?
Cronenberg - Ainda me atormento com ele de tempos em
tempos, mas sei que você deve se
preparar para dedicar quatro ou
cinco anos de sua vida a escrever
seriamente um romance. Estou
com 56 anos. Pensar na idéia de
não produzir nada de criativo antes dos 61 me apavora um pouco.
Começo a achar que perdi o momento de virar romancista.
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