São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999
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CINEMA
O cineasta David Cronenberg fala em entrevista exclusiva sobre seu novo filme, "eXistenZ"
transCendenZ

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

O cinema do canadense David Cronenberg, 56, pode ser visto como um "work in progress" de experimentação das mais variadas combinações entre o orgânico, o mecânico e o humano.
Seu novo filme, "eXistenZ", é, até agora, o ponto culminante desse projeto estético em que o corpo se transforma em máquina, a máquina em organismo, o organismo em jogo e enigma.
No filme, a mais brilhante criadora de games virtuais, Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh), é ferida num atentado terrorista durante a apresentação de seu novo jogo, "eXistenZ".
Em sua fuga, Allegra convence seu guarda-costas, Ted Pikul (Jude Law), a entrar com ela em "eXistenZ", o que exige a abertura de um buraco na espinha do rapaz, para que o jogo seja conectado a seu sistema nervoso.
A partir daí, a ação se desenvolverá ora dentro do game, ora no "mundo real", sem que os personagens (e o público) saibam bem quando estão num ou no outro.
O auge da invenção simbiótica em "eXistenZ" é um revólver feito de ossos e restos animais, cujos projéteis são dentes humanos.
Se, no cinema de Cronenberg, sexo e tecnologia sempre estiveram próximos -como modos radicais de experiência que violentam o corpo para transcender seus limites-, em "eXistenZ" seu entrelaçamento é absoluto.
Não por acaso, o convencimento do hesitante Pikul a entrar no jogo (e deixar-se penetrar por ele) coincide com sua sedução erótica por Allegra. O que há de mais perturbador no cinema de Cronenberg -a par da constituição de um universo que oscila entre o pesadelo e a realidade- é a ausência de julgamento moral. O criador (seja o cientista de "A Mosca", os ginecologistas de "Gêmeos -Mórbida Semelhança", o escritor de "Almoço Nu" ou a criadora de games de "eXistenZ") jamais é censurado pelo desastre que sua busca possa causar.
Pelo contrário: toda a simpatia de Cronenberg vai para esses seres visceralmente insatisfeitos, quer o resultado de sua busca seja sublime ou monstruoso.
É demasiado fácil ver nas obsessões biotecnológicas de Cronenberg o reflexo de sua biografia (garoto obcecado por microscópios e insetos, chegou a cursar um ano de ciência na Universidade de Toronto, antes de se bandear para o curso de literatura).
Mas é preciso ir além do estereótipo para ver que essa filmografia frequentemente rotulada de repulsiva e obscena é uma das obras mais relevantes e pessoais do cinema contemporâneo.
Ao falar de seus objetivos estéticos, Cronenberg disse certa vez: "Não quero ter acesso livre ao cérebro, ao sistema nervoso e à sensibilidade do meu público, e sim o contrário".
Ver um filme de Cronenberg é, de fato, ter acesso a uma das mais fascinantes personalidades criadoras de nossa época.
O escândalo é que "eXistenZ", que foi um dos maiores sucessos do recente Festival do Rio, ainda não tem lançamento comercial previsto para o Brasil, por falta de distribuidora interessada.
Cronenberg falou à Folha por telefone, de Toronto (Canadá), cidade onde nasceu e onde vive com a mulher e três filhos.

Folha - Você disse que a idéia de seu novo filme, "eXistenZ", partiu de uma conversa que teve com o escritor Salman Rushdie. Como foi isso?
David Cronenberg -
Sempre tive muito interesse por Rushdie, em parte porque é um escritor maravilhoso, em parte por causa da "fatwa" (sentença de morte) que pesa sobre ele.
Quando tive a chance de entrevistá-lo, durante a conversa me dei conta de que a situação dele era um script perfeito para um filme. Decidi então que meu filme seguinte seria sobre alguém que é condenado à morte por causa de uma coisa que criou.
No primeiro esboço do roteiro, não pensei em colocar ninguém jogando o game inventado pela personagem perseguida, Allegra.

Folha - É difícil imaginar o filme sem isso.
Cronenberg -
Pois é, seria um filme totalmente diferente. Mas, quando comecei a escrever, fiquei tão curioso para saber como era aquele jogo de que as pessoas falavam no filme, que senti vontade de entrar nele, e presumi que o público também sentiria. Aí o filme mudou totalmente de tom. Agora não se trata, prioritariamente, de um artista em fuga, mas de outra coisa.

Folha - Você vê "eXistenZ" como uma espécie de continuação de "Videodrome", já que ambos lidam com a passagem a uma outra dimensão por meio da tecnologia eletrônica?
Cronenberg -
De certo modo, todos os filmes são isso. Em cada filme, você faz seu público entrar em outra dimensão, usando meios eletrônicos e mecânicos. Todos os meus filmes são assim, de uma maneira ou outra.
Quando estava fazendo "eXistenZ", eu não pensava nele como uma sequência, ou como um "remake", mas olhando para ele agora vejo algumas conexões óbvias com "Videodrome". O fato de que haja tantas semelhanças entre eles é, em parte, coincidência, e, em parte, tem a ver com o fato de ser o primeiro roteiro original que eu escrevi desde "Videodrome".

Folha - Em "eXistenZ" os personagens têm de enfiar um plug na espinha para poder entrar no jogo. Ou seja, para que eles entrem no jogo, o jogo tem que entrar neles. Isso sugere que o único meio de conhecer realmente uma coisa é interagir com ela fisicamente. De certo modo, seus próprios filmes exigem que o espectador entre neles e os vivencie como uma experiência física.
Cronenberg -
Com certeza. Meu sentimento é o de que o primeiro fato da existência humana é o corpo. Tudo que fazemos e experimentamos é mediado pelo nosso corpo. Nós somos nosso corpo, embora às vezes esqueçamos disso.
Então, para conectar-se completamente a uma experiência, penso que sempre é preciso haver um elemento corporal, orgânico nesse contato. Mesmo quando achamos que estamos sendo muito cerebrais ou intelectuais, separados das coisas físicas e orgânicas, trata-se de uma ilusão. O cérebro também é um órgão, não é?
Para mim, a arte é sempre uma experiência carnal. Estou sempre tentando mostrar isso na tela, de uma maneira, digamos, metafórica. O que quero é nos fazer voltar ao corpo. Dizer: "Não nos esqueçamos do nosso corpo".

Folha - Martin Scorsese disse certa vez que você não entende o sentido de seus próprios filmes. Suponho que você tenha tomado isso como um elogio.
Cronenberg -
Bem, certamente não tomei como um insulto. Acho que é legítimo ele dizer isso. Se aquilo que você cria como artista está vivo, terá então muitos sentidos. Terá diferentes sentidos para pessoas diferentes.
Quanto a Scorsese, não sei se ele é um católico praticante, mas sei que ele acredita no diabo, acredita no Mal, e provavelmente acredita também numa vida depois da morte. Devo dizer que não acredito nessas coisas, pelo menos não nesses termos. Ele interpreta meus filmes da sua perspectiva.
Acho que o que Scorsese disse sobre mim pode ser dito sobre muitos artistas, porque grande parte do que fazemos é intuitivo. Temos antenas, temos radares, captamos coisas estranhas e tentamos traduzi-las numa linguagem estética. Não tenho a última palavra sobre meus filmes.

Folha - O lado bom disso é que você continua a aprender com seus próprios filmes e descobrir coisas novas neles.
Cronenberg -
Sim. E é isso que me mantém fazendo filmes. Eu continuo a me surpreender e continuo lidando com coisas que antes não sabia que lidaria.
É por isso que resisto quando você diz que "eXistenZ" é uma continuação de "Videodrome". Percebo as conexões entre eles, mas ao mesmo tempo espero estar discutindo outras coisas. Acho que nesses 17 anos que os separam eu andei aprendendo certas coisas e explorando áreas diferentes das que explorei antes.

Folha - Em "eXistenZ" há dois jogos virtuais interativos, "eXistenZ" e "transCendenZ". Suponho que esses nomes não sejam casuais. O filme pode ser visto como uma disputa entre existência e transcendência, ou entre concepções imanentes e transcendentes?
Cronenberg -
Penso que sim. Temos uma dualidade na nossa vida cotidiana: por um lado, uma tendência a viver o momento, experimentar o que há para ser experimentado; por outro lado, o desejo de transcender nossa dor, nossos corpos, porque, quando aceitamos nossos corpos, temos de aceitar nossa condição mortal, o que para a maioria das pessoas é uma coisa difícil.
Sentimos também a possibilidade criativa de que a vida humana seja muito mais brilhante e intensa do que aquilo que vivemos. Mas há uma armadilha aí: pode ser que você nunca contribua para sua verdadeira vida se ficar tentando escapar para outra coisa.
Portanto, existe em nós essa luta a que você se refere, e esse é de fato o sentido daqueles dois jogos. Como Allegra Geller diz, "é um jogo que todo mundo joga".

Folha - Há no filme muitos personagens estrangeiros. Há uma razão específica para isso?
Cronenberg -
Sim, porque estou falando sobre um jogo e sobre a criação de personagens, de falsas identidades.
Para muita gente, uma das delícias da Internet é tornar-se o que se quer ser. Você tem policiais que se tornam garotas de 13 anos. Deve haver algum prazer em representar uma garota de 13 anos quando você é um homem de 40 e trabalha na delegacia (risos).
No filme, falo sobre os diferentes disfarces e fantasias que usamos quando jogamos um jogo. Num certo sentido, também estou discutindo a arte, pois uma das razões pelas quais as pessoas amam um romance ou um filme é a possibilidade que eles lhes dão de viver outras vidas. É uma forma de transcendência, também.

Folha - Em muitos aspectos, seu cinema nos lembra os filmes B de terror e ficção científica dos anos 50. Esses filmes, combinados com a literatura transgressiva de William Burroughs, Nabokov e Henry Miller, seriam sua principal fonte de inspiração estética?
Cronenberg -
Minha primeira motivação artística na vida foi literária. Eu achava que seria um romancista, um maravilhoso e obscuro romancista (risos). Quando criança, eu via filmes o tempo todo, mas de cinema em geral, sem nenhum gênero específico. Minha inspiração principal, ao menos consciente, vem da literatura, sobretudo dos romancistas que você mencionou.
Na juventude, vi muito Fellini e Bergman, fiquei muito entusiasmado por Jean-Luc Godard, mas isso foi antes de eu saber que seria um cineasta. De todo modo, é difícil separar nossas influências.

Folha - Qual foi o último filme que o impressionou?
Cronenberg -
Bem, acho que foi um que vi outro dia na TV, um pequeno filme americano chamado "Pi", dirigido por Darren Aronovsky (sobre a saga de um matemático que tenta encontrar o valor exato do número pi). É um filme muito barato, rodado em preto-e-branco.
Há muitos filmes que me empolgam, mas penso que é raro encontrar hoje um conjunto de obra que represente de fato uma sensibilidade, como era o caso em gente como Fellini e Bergman.
Considero isso preocupante, porque a maioria dos jovens cineastas de hoje não aspiram a ser Fellini, eles aspiram a ser alguém que dirige filmes como "A Rocha" ou "Armaggedon". Querem ser famosos e ricos. Parece que não existe um meio termo: ou você é um cineasta obscuro e independente, cujos filmes ninguém vê, ou trabalha nos grandes estúdios, em filmes sem assinatura.

Folha - A maioria de suas histórias poderia ser ambientada em qualquer lugar, ou mesmo em lugar nenhum. O fato de continuar filmando no Canadá, em vez de mudar para Hollywood, pode ser visto como um gesto de resistência às convenções e fórmulas da grande indústria do cinema?
Cronenberg -
Acho que pode, mas, a despeito de meus filmes darem a impressão de poder ser filmados em qualquer lugar, para mim isso não é verdade. Num sentido muito funcional e físico, eu dependo de Toronto para filmar. Tenho minha equipe aqui, meus sistemas de apoio. E minhas raízes estão aqui.
Para alguém de fora, isso não aparece. Mas, para alguém de Toronto, "Crash" é um filme muito daqui. Não parece Nova York, não parece nenhuma cidade dos EUA. Para mim, é importante estar em Toronto, tanto num sentido pragmático como espiritual.
Se eu tivesse mudado para Los Angeles e feito carreira lá, como meu amigo Ivan Reitman (diretor de "Ghostbuster", "Irmãos Gêmeos" etc.), meu cinema seria totalmente diferente. Não quero mudar para lá, não quero que meus filhos cresçam lá. Acho que aqui é um lugar melhor para criar os filhos. O sistema de valores em Hollywood é muito estranho.

Folha - Eu gostaria de saber qual é seu próximo projeto.
Cronenberg -
Eu também (risos). Tenho algumas idéias para roteiros, mas ainda estou brigando com elas. Depois de fazer um filme, tenho de me transformar num escritor novamente. Essa é uma transição difícil para mim.
Estou também lendo roteiros que me mandam. Tenho sempre a esperança de que haja um roteiro que seja tão maravilhoso e perfeito para mim que me poupe o trabalho de escrever um.

Folha - E seu velho projeto de escrever um romance?
Cronenberg -
Ainda me atormento com ele de tempos em tempos, mas sei que você deve se preparar para dedicar quatro ou cinco anos de sua vida a escrever seriamente um romance. Estou com 56 anos. Pensar na idéia de não produzir nada de criativo antes dos 61 me apavora um pouco. Começo a achar que perdi o momento de virar romancista.


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