São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SUCESSO

Esses desenvolvimentos convenceram muitos comunistas abalados em 1956 de que o legado da Revolução de Outubro, embora com ziguezagues, estava sendo gradualmente redimido, mais que irrecuperavelmente abandonado. Seria surpreendente se Hobsbawm nunca tivesse pensado por essas linhas perfeitamente compreensíveis. Se o fez, porém, não há vestígios aqui. Assim como em todo o seu tratamento da experiência comunista, não há nenhuma discussão sobre a verdadeira história política do período, "stricto sensu". Em vez disso, ele conclui seus motivos para ficar no partido acrescentando uma "emoção particular: orgulho", explicando que, se o tivesse deixado, teria melhorado suas perspectivas profissionais, mas exatamente por esse motivo ele ficou, para "provar-me para mim mesmo, tendo sucesso como um conhecido comunista -qualquer que fosse o significado de "sucesso'-, apesar dessa desvantagem".
Hobsbawm chama essa combinação de lealdade e ambição de uma forma de egoísmo, que não defende. A maioria das pessoas veria aí uma evidência de integridade e força de caráter excepcionais: a coragem de assumir posições impopulares, ainda mais surpreendente em alguém para quem o sucesso claramente importava tanto.
"Tempos Interessantes" registra as diferentes formas -podemos assumir esse espaçoso parêntese como um gesto propiciatório- assumidas pelo sucesso: um público leitor mundial em dezenas de línguas, cátedras simultâneas em três países, academias e títulos honorários ad libitum, entrevistas e platéias abundantes, homenagens de políticos e do Viminale [Ministério do Interior italiano". Mas outras são omitidas: os leitores ingleses lembrarão da Companhia de Honra, à qual ele pertence, ao lado de lordes Tebbit, Hurd e Howe.
No início desse relato de sua vida, Hobsbawm explica que "aceitou pelo menos alguns sinais de reconhecimento público" que fizeram dele um "membro do establishment cultural britânico oficial" porque nada teria dado mais alegria a sua mãe em seus últimos anos -acrescentando, com um sorriso desarmador que garante todas as saídas, que, ao dizer isso, "não seria mais honesto ou desonesto que sir Isaiah Berlin [(1909-97), cientista político inglês", que costumava desculpar-se por ter aceito o título de cavaleiro dizendo que só o fizera para agradar a sua mãe".
Grandes homens têm pequenas fraquezas pelas quais podem ser perdoados, incluindo o fracasso ocasional de ver onde reside sua grandeza ou o que poderia diminuí-la. No caso de Hobsbawm, o interesse disso não está em nenhuma dissociação, mas na conexão entre lealdade política e acomodação social. Só porque ele se manteve tão firme numa causa execrada, a entrada no mundo da aceitação parece ter adquirido um valor ainda maior.
Internamente, cada avanço em uma poderia ser contado como um brilho refletido para a outra. Psicologicamente, esses intricados mecanismos de balanço são bastante normais. Mas eles têm um preço. No coração de "Tempos Interessantes" existe um constante esforço para explicar o significado de uma vida comunista. Mas explicar para quem?
Se há algo doloroso na repetida e nervosa aversão a essa tarefa, é porque -não constantemente, mas com demasiada frequência para ser confortável: desde o primeiro olhar para os espiões de Cambridge, ao último surto de satisfação pelo fato de Heath e Heseltine terem adornado "Marxism Today" [revista britânica de teoria marxista (1957-1991), publicada pelo Partido Comunista"- o interlocutor não citado é como uma ordem estabelecida à qual, em troca, fosse devida uma contabilidade de si mesmo. Essa parece ser a lógica dessa ausência de discussão política imediata ou qualquer verdadeiro engajamento intelectual com os temas que permearam a trajetória do comunismo europeu, que é uma característica tão inesperada dessas páginas.
No entanto, depois que todas as qualificações ou ressalvas foram registradas, a elegia de Hobsbawm à tradição política a que dedicou sua vida tem uma dignidade e uma paixão que exigem respeito de qualquer pessoa. Seu tratamento das tradições alheias é muito menos marcante.
"Em termos práticos", continua Hobsbawm, as várias Novas Esquerdas que surgiram da crise de 1956 foram desprezíveis. Piores foram os estudantes radicais da América do Norte ou da Europa na década de 60 -para quem sua "geração permaneceria estranha"-, nem sequer responsáveis por "uma tentativa frustrada de alguma espécie de revolução, mas uma efetiva ratificação de outra: a que aboliu a política tradicional e, afinal, a política da esquerda tradicional".
Quanto à "ultra-esquerda dentro e fora da América do Sul (cujas tentativas guevaristas de rebelião guerrilheira foram todas fracassos espetaculares)", inspirada pela Revolução Cubana, "nem entendeu nem quis entender o que poderia levar os camponeses latino-americanos a pegar em armas", diferentemente das Farc na Colômbia ou do Sendero Luminoso no Peru.
Praticamente nenhum item nessa retrospectiva bastante amarga suporta um exame cuidadoso. A Nova Esquerda do final dos anos 50 foi interira para a Campanha pelo Desarmamento Nuclear, que não alcançou seus objetivos, mas foi muito menos desprezível como força de mudança do que o PC britânico não-reconstruído. Os movimentos estudantis da Europa e dos EUA não apenas ajudaram a incapacitar os regimes de De Gaulle e Nixon, o que o próprio Hobsbawm lembra num momento de descuido, mas -o que ele não lembra- foram críticos nos EUA para pôr fim à Guerra do Vietnã e para provocar as mais poderosas mobilizações da classe trabalhadora no período pós-guerra na França e na Itália. Na América Latina, a única revolução de sucesso, na Nicarágua, foi não apenas diretamente inspirada como também assistida por Cuba. Quanto ao Peru e à Colômbia, Hobsbawm nos diz que só pode aprovar o esmagamento do Sendero por Fujimori; e por que não agora as Farc por Uribe?
O último terço de "Tempos Interessantes" muda novamente de registro, abandonando qualquer sequência narrativa por análises da profissão e das viagens de Hobsbawm. Aqui o ritmo desacelera e o livro parece ficar mais convencional, embora brilhe a mesma inteligência aguda até em trechos mais planos. Ele faz um bom relato da ascensão da história social analítica ligada a "Annales" [surgida na França, em 1929, e dirigida pelos historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch" e à "Past & Present" [fundada em 1952, é reconhecida como a mais importante revista de história em língua inglesa", à custa de narrativas anteriores da alta política, lamentando seu posterior recuo com a virada cultural dos anos 80.
Os historiadores pioneiros que ele descreve como "modernizadores": termo excessivamente vago e burocrático, muito distante de suas outras conotações ("a principal malha ferroviária pela qual rodariam os trens da historiografia estava construída"), para ter grande utilidade teórica. Aqui ele se subestima. Para ver quão original foi seu pensamento sobre o estudo do passado -mais que o de Braudel, por quem diz que foi um tanto deslumbrado-, é preciso recorrer a sua coleção "Sobre a História". Pois o que essa parte de "Tempos Interessantes" lembra, novamente, é que são poucos os relatos diretos nessa autobiografia sobre o compromisso de Hobsbawm com o mundo das idéias. Do início ao fim, quase nenhuma obra de pensamento é citada por tê-lo influenciado seriamente. Sobre seu marxismo, virtualmente tudo o que nos diz é que leu "O Manifesto Comunista" [de Marx e Engels] no colégio em Berlim.
Notando que a literatura substituiu a filosofia nas aulas de inglês, ele se associa a outros historiadores marxistas britânicos por ter-se aproximado da história através de uma paixão inicial pelas artes. Mas, além de dizer que a escola primária St. Marylebone o introduziu às "surpreendentes maravilhas da poesia e da prosa inglesas", não nos esclarece quais foram realmente suas leituras. Quando se trata de política, frases de Brecht e Neruda são citadas, mas conceitualmente há um vazio.

11 DE SETEMBRO

Talvez essa abstenção não seja importante para um público desinteressado por essas questões. As viagens são outro assunto.
O livro termina com as experiências de Hobsbawm na França, Espanha, Itália, América Latina e EUA. Das quatro primeiras ele escreve com afeto constante, sem reivindicar nenhuma idéia especial sobre elas.
Na verdade, confessa que de diversas maneiras ficou desconcertado ou decepcionado com o desenvolvimento de cada uma, considerando a política e a cultura da Quinta República uma sequência desagradável da França dos anos 40 e final dos 30; apanhado de surpresa pela velocidade com que o capitalismo transformou a Espanha; atônito com o sucesso de Bettino Craxi e Silvio Berlusconi na Itália e o encolhimento do movimento comunista do qual se sentia mais próximo; resignado com a falta de qualquer progresso político real na América Latina, em meio a reformas sociais abrangentes.
Mas em outros sentidos esses capítulos são registros bastante agradáveis de prazeres e amizades em sociedades que ele aprecia.
Os EUA, onde Hobsbawm passou mais tempo que em todos os outros países juntos, são outro assunto. Com a exceção de Manhattan, segundo seu próprio relato, ele aprendeu mais sobre o país durante alguns meses explorando o mundo do jazz em 1960 do que em uma dúzia de anos como professor sazonal nas décadas de 80 e 90. Estes parecem ter reforçado uma sensação de distância do país -uma antipatia sem seu quociente habitual de curiosidade. Por mais impressionantes que sejam suas conquistas, ele escreve, a desigualdade social e a paralisia política, a auto-absorção e a megalomania norte-americanas são traços que o deixam feliz de pertencer a outra cultura. O comentário é um lembrete de que o país que teve maior importância para Hobsbawm não figura nesse escrutínio.
Depois de descrever impressões da infância, "Tempos Interessantes" -embora contenha um breve intermezzo sobre férias no País de Gales- não volta à Inglaterra. Isso certamente não é sinal de indiferença. Seus contemporâneos deixam claro que já em Cambridge ele se sentia mais britânico do que se esperava, sentimentos patrióticos que mais tarde encontraram expressão em uma forte defesa da integridade do Reino Unido, e talvez sentimentos mistos sobre a Guerra das Malvinas (1982). O relacionamento com o seu país legalmente nativo, mas culturalmente adotivo, é uma área complicada, que ele deixa de lado nesse auto-retrato.
"Tempos Interessantes" termina com uma magnífica estrofe sobre o 11 de setembro e sua exploração política -principalmente "a total afronta de apresentar o estabelecimento de um império global dos Estados Unidos como a reação defensiva de uma civilização prestes a ser arrasada por horrores bárbaros e indizíveis, a menos que destrua o "terrorismo internacional'".
Em uma perspectiva histórica, ele comenta, o novo "imperium" americano será mais perigoso do que foi o britânico, porque dirigido por uma potência muito maior.
Mas é improvável que dure mais tempo. De fato, o próprio capitalismo, sugere Hobsbawm, está mais uma vez angariando a desconfiança dos jovens, enquanto forças mais vastas de mudança social sacodem o mundo além de todos os horizontes conhecidos.
Definindo-se como um historiador que teve a vantagem de nunca pertencer totalmente a uma determinada comunidade, cujo ideal é "a ave migratória, em casa no Ártico e nos trópicos, sobrevoando metade do globo", ele apela às novas gerações para que rejeitem os fetiches da identidade e façam causa comum com os pobres e os fracos. "Não nos desarmemos, mesmo em tempos insatisfatórios. A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não vai melhorar por conta própria." Ao fechar essas páginas, apesar de todas as diferenças de forma que elas encerram como memória, e das reflexões que estas sugerem, a impressão que fica é a da grandeza dessa mente e a complexa importância da vida que elas relatam. São um justo acompanhamento para as conquistas do historiador. Uma vitalidade brusca que desafiou os anos.


A íntegra deste texto foi publicada no "London Review of Books".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.




Texto Anterior: Hobsbawm, vida e obra
Próximo Texto: Saiba quem é Perry Anderson
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.