São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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Ponto de fuga

A língua dos mortos

"Nove Noites" (Companhia das Letras), de Bernardo Carvalho, é um livro traiçoeiro. O leitor agarra, não larga e continua com ele na cabeça depois da última página. Ou talvez seja o livro que agarre o leitor e o ponha dentro de uma armadilha. Nela, todas as portas de saída são falsas.
Tem muito de um romance de mistério, mas parte de uma busca verdadeira sobre um fato acontecido. Bernardo Carvalho quis saber por que diabos Buell Quain, antropólogo norte-americano de 27 anos, se matou de maneira abominável, na selva brasileira, entre os índios Krahô, em 1939. Como um detetive, foi atrás de documentos, fotografias, cartas; entrevistou testemunhas, embrenhou-se na floresta com antropólogos.
De repente, porém, a memória da infância começa a se cruzar com essa procura. Na orelha do livro se encontra a fotografia de um menininho que dá a mão a um índio enorme e nu. A legenda diz: "O autor, aos seis anos, no Xingu". É que seu pai comprara terras no centro do Brasil e levava para lá o garoto, em viagens arriscadas de avião monomotor.
Muito mais tarde, o pai agoniza num leito de hospital. Ao lado dele se encontra outro velho, um americano, também moribundo, que, por coincidência, oferece uma pista inesperada para decifrar o mistério de Buell Quain. A pista conduz aos EUA, numa consequência lógica, já que ali se encontravam as origens de Quain. A dificuldade é que os mortos atormentam os vivos numa língua incompreensível.
Sherlock - Em "Nove Noites", tanto o autor quanto o narrador se põem na pele do detetive. Há, assim, uma investigação "real" e outra "imaginária". A partir do texto, é impossível traçar uma linha divisória entre ambas. Por sua vez, diante dos acontecimentos tão extraordinários que o livro vai desdobrando, o leitor é levado, ele próprio, ao papel do detetive, inconformado por não poder separar verdade e mentira, personagem real e inventado, situação ocorrida ou imaginada. Esse lugar incômodo se mostra como a ponta aparente de uma inquietação mais profunda, que Bernardo Carvalho explorou em todos os seus escritos. Neles, a convenção que separa o "eu" do "mundo", sem a qual seria impossível a existência cotidiana, é ultrapassada; um se funde no outro, um é impossível sem o outro.
Antes, Bernardo Carvalho asfixiava o leitor em frases que se alongavam, incertas como areia movediça. Em "Nove Noites", tudo é arquitetado e exposto com clareza. A escrita avança enérgica, sem tropeços.
Há, no livro, dois narradores. Um engenheiro, que fora amigo de Buell Quain, narra os últimos tempos do antropólogo numa espécie de testamento de tom afetuoso, delicado e poético. Essa parte vem em itálico, intercalando-se dentro de outro texto em letra redonda, que conta a investigação sobre a morte de Quain. O estilo é direto e límpido. Falsa claridade esta, capaz de revelar apenas a escuridão sobre a qual repousa.
Assombrações - O detetive é implacável em sua coerência, ao concluir pela verdade fugidia. "Nove Noites" trata do medo, medo congênito, latente ou explícito, que perpassa tudo. "O pesadelo", diz uma frase, "é um jeito de encarar o medo com olhos de quem sonha". Trata ainda da angústia, vinda de respostas que são apenas outras perguntas; de experiências e memórias cujo sentido sempre nos escapa; de certezas que se revelam apenas como convicções. Acusa o peso dos mortos sobre os ombros dos vivos. Mostra o corpo, o sexo, o desejo como portadores de significados indecifráveis. Expõe a identidade dos indivíduos, armações frágeis e improváveis. Desconfia dos nomes.
Citação - Há, em "Nove Noites", uma lucidez assassina: "(...) ao contrário dos outros, vivia fora de si. Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procurava apenas voltar para dentro de si, de onde não estaria mais condenado a se ver. Sua fuga foi resultado do seu fracasso. De certo modo, ele se matou para sumir de seu campo de visão, para deixar de se ver".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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