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+ Teatro
Madame Shakespeare
Principal estudiosa do autor inglês no Brasil, Barbara Heliodora lança o primeiro volume das traduções de suas peças
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Referência em Shakespeare no Brasil,
Barbara Heliodora,
83, traduziu e está
lançando o "Teatro
Completo" do mais célebre autor anglófono. O primeiro volume [ed. Nova Aguilar, 1.776
págs., R$ 290], que chega às livrarias nesta semana, contém
as tragédias e comédias sombrias, que já haviam sido lançadas em edições separadas (ed.
Lacerda) e agora foram reunidas e revisadas.
O segundo volume, com as
comédias, está previsto para
2007; o terceiro, com as peças
históricas, para 2008.
Em entrevista à Folha, a crítica comentou a tradução, elegeu peças favoritas e condenou
a postura dos dramaturgos brasileiros diante da imagem do
Shakespeare "difícil".
FOLHA - Quanto tempo levou o trabalho de tradução das peças de Shakespeare (1564-1616)?
BARBARA HELIODORA - Varia muito, geralmente leva três ou quatro meses por peça. Isso juntamente com outras atividades,
como a crítica. Meu recorde de
velocidade -parece ridículo falar assim- foi "Romeu e Julieta", que fiz em cinco semanas,
porque o [diretor] Moacyr
Góes a estava montando. Tinha
de entregar um ato por semana.
Para o segundo volume, faltam apenas "Cimbeline". Depois disso, faltam cinco ou seis
peças históricas.
FOLHA - Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou?
HELIODORA - O maior tropeço
para a tradução são os jogos de
palavras, que eram muito populares na época. São muitas
vezes intraduzíveis. Há palavras que têm dois sentidos, e
sempre se perde um pouco; é
preciso abdicar de algum sentido. Por exemplo: em "Hamlet",
no quinto ato, quando entram
os coveiros, há um jogo de palavras em "to lie", que é tanto
"mentir" quanto "jazer".
FOLHA - Shakespeare é conhecido
por instituir neologismos. Como sua
tradução leva isso em conta?
HELIODORA - Ele escreveu na
linguagem mais moderna de
seu tempo. É preciso usar a linguagem de hoje, mas evitando a
gíria. É preciso ser algo fluente,
sem ser excepcionalmente "do
momento".
A única peça em que me permiti brincadeiras mais populares foi a "Comédia dos Erros",
na fala do escravo Drômio. Numa comédia, por mais fiel que
se queira ser, a linguagem tem
de ser de comédia. A fidelidade
é, em última análise, ao conteúdo e ao objetivo, e não literalmente à palavra. Há uma tradução que não é minha, que é
"Hamlet", feita por minha mãe
[Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça].
FOLHA - A sra. não alterou?
HELIODORA - Após quase 50
anos que foi feita, só mexi no
tratamento. O tratamento
"vós" já está tão longe do cotidiano brasileiro que, salvo em
ocasiões formais e ao falar com
o rei, troquei o vós por senhor,
mantendo a métrica. Achei que
ficaria mais acessível.
Tenho horror à idéia, popular no passado, de que Shakespeare é muito difícil, "você não
vai compreender". Shakespeare foi um autor popular, que escrevia para um teatro de 2.000
lugares aonde ia todo o espectro da sociedade elisabetana.
Mesmo quando usa palavras
novas, ele as insere de tal modo
no contexto da fala que ninguém sai dos teatros dizendo
que não compreendeu a peça.
Ele nunca é hermético.
O que acontece é que cada
um traz consigo um nível de interesse, preparo ou o que quer
que seja, que permite apreciar a
primeira camada, a primeira e a
segunda, a segunda e a terceira... (risos) A história todo
mundo compreende, e a história é sempre uma metáfora do
conteúdo.
FOLHA - Que tem sido feito no teatro hoje? Tem-se preservado o conteúdo de Shakespeare?
HELIODORA - No Brasil, de vez
em quando mexem. Na Inglaterra preservam sempre o conteúdo -e a forma.
FOLHA - Então as montagens brasileiras fogem mais a Shakespeare do
que as realizadas no exterior?
HELIODORA - Sim. Acho que é
por uma uma questão de preconceito, porque, em primeiro
lugar, não temos tradição de
traduções -nem Shakespeare
nem Molière nem Racine nem
Corneille. Os clássicos não são
rotineiramente montados aqui.
O que há são traduções feitas há
muito tempo por pessoas não
comprometidas com o teatro.
Fica difícil pronunciar aquilo.
Minha preocupação foi a de
usar uma linguagem que permita ao ator dizer com certa facilidade e que se comunique
claramente com a platéia.
FOLHA - As traduções anteriores
são mais literárias que teatrais?
HELIODORA - As mais clássicas
eram. Inclusive havia muito
parnasianismo, e de parnasiano Shakespeare não tinha nada.
FOLHA - Sua tradução procura ser
metrificada...
HELIODORA - Toda. Procurei
manter o mesmo número de
versos do original.
FOLHA - E as elisões usadas permitem manter cada idéia inteira em
um só verso.
HELIODORA - Tento fazer como
ele fez. No início da carreira,
Shakespeare usa muito isso, o
pensamento todo em um verso.
À medida que ele amadurece,
vai se libertando disso e usando
mais de um verso para completar o pensamento.
FOLHA - Das obras de Shakespeare,
qual mais lhe agrada?
HELIODORA - Na tragédia, fico
entre "Rei Lear" e "Hamlet".
Nas comédias, "Sonho de Uma
Noite de Verão" e "O Mercador
de Veneza". E, nos romances, a
"Tempestade".
FOLHA - Que adaptações recentes
de Shakespeare a sra. mais apreciou? Por quê?
HELIODORA - O "Romeu e Julieta" do grupo Galpão, dirigido
por Gabriel Villela, que manteve o clima do amor e do conflito
entre as famílias.
E, há menos de um mês, vi
uma coisa muito gostosa: "Os
Dois Cavaleiros de Verona", do
grupo Nós do Morro. Feito obviamente com poucos recursos,
tinha ótimas soluções de figurino e cenografia. A fonte da cidade, por exemplo, era formada
pelos atores reunidos.
FOLHA - Quem são os grandes encenadores de Shakespeare no mundo, atualmente?
HELIODORA - Temos o Peter
Brook, que fez um "Titus Andronicus" e um "Rei Lear" inesquecíveis -mas falhou em
"Macbeth"-, Peter Hall, Trevor Nunn, Kenneth Branagh...
FOLHA - E no Brasil?
HELIODORA - Acho que não há
uma tradição de diretores de
Shakespeare. O "Hamlet" famoso, com Sérgio Cardoso
[1925-72, que estreou em 1948]
foi dirigido por um alemão, o
Hoffmann Harnisch. De vez em
quando acertam, de vez em
quando erram.
FOLHA - E atores?
HELIODORA - Na Inglaterra há
uma coleção assustadora. Mas
acho mentira essa história de
dizer que ator brasileiro não
pode fazer Shakespeare. Todo
bom ator pode fazer, mas é preciso desmistificar as peças.
FOLHA - De onde vem a inclusão de
"Bom É o Que Acaba Bem", "Medida
por Medida" e "Troilus e Créssida"
em "comédias sombrias"?
HELIODORA - Em princípio, da
distribuição clássica [tragédias,
comédias, peças históricas].
A divisão "comédia sombria",
para as três comédias nas quais
a ênfase é nos problemas éticos
e sexuais, aparece na crítica anglo-saxônica em meados do século 20: são "dark comedies",
que não têm o final feliz típico
da comédia. São problemas difíceis de solucionar, mas não
são tragédias.
FOLHA - Mas tragédias como "Rei
Lear" não estão cheias de momentos cômicos?
HELIODORA - Isso é outra coisa.
Os elisabetanos praticamente
nunca ouviram falar das famosas unidades aristotélicas [tempo, espaço e ação]. O teatro elisabetano é efetivamente um
desenvolvimento do teatro medieval inglês, e a mistura com o
cômico sempre existiu.
O bobo da corte do "Lear",
por exemplo, é engraçado até
certo ponto, mas é cruel: "Você
fez uma burrada! Sua filha mais
moça não estava errada, não".
Ele é usado como consciência
de Lear, enquanto este não tem
consciência. A partir da tempestade, o bobo desaparece,
porque Lear toma consciência
-ele não é mais necessário.
Shakespeare escreve um teatro totalmente anti-realista, de
maneira que não tem o menor
problema em tirar o bobo de
cena quando a função dele não
é mais necessária.
E em "Hamlet", antes do
duelo final, para dar fôlego à
platéia, há a pequena cena do
Osric -Hamlet se diverte à custa daquele cortesão ridículo.
Mas isso permite ao público tomar fôlego para ver a mortandade final.
A não ser por "Titus" e o lírico "Romeu e Julieta", ele só começa a escrever tragédia em
1601 [com "Hamlet"], quando
já amadureceu como artista.
FOLHA - Muitos encenadores devem ficar inseguros diante dessas
tragédias...
HELIODORA - "Rei Lear" e
"Hamlet" são bons exemplos
de peças que têm uma tal riqueza tal que não é possível realizá-las plenamente no palco em um
só espetáculo. É por isso que há
vários espetáculos válidos,
muito bons, mas que sempre
deixam escapar algo em relação
aos outros.
Vou dar um exemplo. Há os
filmes "Henrique 5º", um feito
por Lawrence Olivier, o outro
por Kenneth Branagh.
O de Olivier foi feito em 1944,
durante a Segunda Guerra,
quando a Inglaterra era bombardeada todos os dias. Eles
precisavam de um tom mais
triunfalista, de esperança.
Quase 50 anos depois, todo
mundo tem horror à guerra.
Então Branagh faz um espetáculo soturno, que mostra todos
os males da guerra -mas tudo
aquilo está nos textos de Shakespeare. Depende de como se
faz o corte.
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