São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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HISTÓRIA DA INDEPENDÊNCIA CONTADA DO PONTO DE VISTA DO RIO DE JANEIRO PROCUROU REVERENCIAR A MONARQUIA E A UNIDADE NACIONAL E SUBESTIMOU DEBATE SOBRE AUTONOMISMO NO PAÍS

A pedra no sapato

A história da fundação do império é ainda hoje uma história contada apenas do ponto de vista do Rio de Janeiro. Ela o foi, à época, pelos publicistas que participaram do debate político da Independência e, depois, pelos historiadores como Varnhagen, Oliveira Lima, Tobias Monteiro ou Octavio Tarquinio de Souza, que repristinaram a versão original, visando à maior glória da monarquia e da unidade nacional. Como esta fosse encarada teleologicamente, eles se limitaram a desenvolver, sem os por em causa, os pressupostos da ideologia da corte, reduzindo a Independência à construção do Estado unitário por alguns indivíduos dotados de acendrado patriotismo, geralmente nascidos no triângulo Rio-São Paulo-Minas.
A despeito das qualidades de erudição ou de narração dessas obras, o filão acabou por esgotar-se, como demonstra o mais recente trabalho de conjunto a inscrever-se nessa tradição, o de José Honório Rodrigues, prejudicado inclusive pela tendência a encarar a Independência consoante os critérios nacionalistas de meados do século 20. E, contudo, há cerca de 15 anos, malgrado as limitações inerentes a uma obra de síntese de toda a primeira metade do Oitocentos, Roderick J. Barman, pôs em causa, no seu "Brazil - The Forging of a Nation, 1798-1852" [Stanford University Press], o velho paradigma vigente.
Resumindo Barman, a criação do Estado unitário no Brasil não foi um "destino manifesto", para usar a expressão com que nos EUA do século 19 se justificou a expansão para o Pacífico. Se a Revolução portuguesa de 1820 fazia previsível a mudança do statu quo colonial, não estava escrito nas estrelas que ela desembocaria no império do Brasil. Nas palavras do autor, "a dura realidade subestimada pela interpretação nacionalista é que, em junho de 1821, o reino do Brasil havia se dissolvido nas suas partes constituintes, não devido aos manejos das cortes de Lisboa, mas ao desejo das elites locais de recuperarem a autonomia provincial e de escaparem ao domínio tanto do Rio de Janeiro quanto de Lisboa".
O triunfo do autonomismo teria resultado na criação de Estados regionais, não de um Estado unitário, caso três episódios não houvessem infletido o curso da emancipação: a transmigração da dinastia bragantina para o Rio; a determinação da corte fluminense de preservar a posição hegemônica que recentemente adquirira; e a incapacidade das cortes de Lisboa em lidar com a questão brasileira. Se o Fico provocou um conflito aberto entre o Rio e Lisboa, "o elemento mais significativo nessa luta não foi, como pretende a interpretação nacionalista, a confrontação direta de dois centros de autoridade, mas a competição entre eles para obter o apoio das Províncias ainda semi-autônomas, polarização que privou as "pátrias" locais de terceira opção, tendo de escolher entre Lisboa e o Rio". Ainda segundo Barman, "a adesão das Províncias não foi unicamente realizada através da persuasão", pois "a força bruta desempenhou um papel considerável para trazer ao império regiões periféricas, particularmente as do Extremo Norte". Finalmente, "a formação de um Estado unitário não foi desejado em todo o Brasil nem sua criação beneficiou todos os territórios que o compunham".
Uma das consequências do rio-centrismo da historiografia da Independência consistiu em limitar o processo emancipacionista aos triênio 1820-1822, quando, na realidade, 1823 e 1824, marcados pela dissolução da Constituinte e pela Confederação do Equador, foram anos decisivos para a consolidação do império, à medida que ambos os episódios permitiram ao Rio resolver a contento a questão fundamental da distribuição do poder no novo Estado, o qual não se reduzia à disputa convencional entre o Executivo e o Legislativo, cara aos historiadores do período, mas dizia respeito sobretudo ao conflito entre o centralismo da corte e o autogoverno provincial. Mas, se aspirações autonomistas existiam pelo Brasil afora, apenas Bahia e Pernambuco estavam em posição madura para articulá-las consistentemente, graças inclusive à sua posição na economia de exportação e às receitas das suas alfândegas.
Nas cortes de Lisboa, o autonomismo baiano havia conseguido sensibilizar a posição da bancada paulista, atada pelas instruções que lhe redigira José Bonifácio, cuja ênfase recaía na criação de um império dual, conferindo ao Brasil um grau de autogoverno, incompatível com as reivindicações provinciais, concepção que, a seu tempo, caberá como uma luva nas ambições do Rio. Ocorreu que o autonomismo baiano ficou privado de protagonismo pela ocupação portuguesa, que reforçou a corrente imperial entre o comércio de Salvador e a grande propriedade do Recôncavo.
Foi assim que Pernambuco se tornou o centro da resistência autonomista ao Rio, e o autonomismo constituiu uma sensibilidade política eminentemente pernambucana, tanto mais que, na esteira de Dezessete, a relação de forças era ali mais equilibrada, o liberalismo se aliara à idéia de autogoverno até mesmo entre os partidários de d. Pedro e, no limite, se coloria de republicanismo. Enquanto isso, os corcundas e os constitucionais da corte coincidiam em não questionar o caráter unitário do império. Mesmo o mofino republicanismo fluminense, se foi algo mais do que o fantasma para amedrontar timoratos que José Bonifácio criara na luta contra o grupo de Ledo, era unitário, como na época assinalou o Andrada, pois não se poderia dar ao luxo de aceitar fazer concessões ao autonomismo provincial sem perder suas bases de apoio na corte.
Enterrado pela ruptura com Lisboa o império constitucional luso-brasileiro, a independência ficou polarizada em Pernambuco pela competição entre dois programas políticos, o unitário, que se tornou vitorioso, e o autonomista, que incorporava reivindicações incompatíveis com o formato do Estado brasileiro que se organizava no Sul. Ambos partiam de pressupostos antagônicos. Se José Bonifácio procurara evitar o debate da questão da soberania, de modo a não dar pretexto aos liberais, para quem ela residiria no povo, a realidade é que, no seu espírito, o Brasil preexistia às Províncias, como dirá "O Tamoio", jornal andradista.
Reatando com a tradição dos cronistas coloniais e da "ilha Brasil", reformulada por estadistas portugueses do século 18, acerca da vocação incontornável para constituir um vasto império, tratava-se, para José Bonifácio, de forjar politicamente o que ele chamava "esta peça majestosa e inteiriça de arquitetura social desde o Prata ao Amazonas, qual a formara a mão onipotente e sábia da Divindade". Pelo contrário, o autonomismo pernambucano (como também o padre Feijó) pretendia que, desfeita a unidade do reino de Portugal, Brasil e Algarve, a soberania revertia às Províncias, onde propriamente residia, as quais poderiam negociar um pacto constitucional e, caso este não lhes conviesse, usar seu direito a constituir-se separadamente, sob o sistema que melhor lhes parecesse.


Se aspirações autonomistas existiam pelo Brasil afora, apenas Bahia e Pernambuco estavam em posição madura para articulá-las consistentemente


Escusado assinalar que a historiografia da Independência tendeu a escamotear a existência desse segundo projeto, reduzindo seu escopo a impulsos anárquicos e a ambições personalistas de inspiração antipatriótica.
Na América inglesa e na América espanhola, a Independência também havia girado em torno do conflito entre diferentes visões constitucionais. Nos Estados Unidos, os "Articles of Confederation", de 1776, e a Constituição de 1887 consagravam graus distintos de organização nacional, confederal no primeiro caso, federal no segundo. Na América espanhola, o feitio da disputa tinha de estar aparentado ao do Brasil.
Ali a contenda se verificou entre um liberalismo inspirado no constitucionalismo espanhol (que, como se recorda, exerceu grande influência nas cortes de Lisboa), liberalismo cuja vertente autonomista triunfou passageiramente, como no Chile e no México, mas só vingou na Argentina; e a concepção autoritária de Bolívar, que descrente da capacidade das elites locais, favorecia um regime autoritário moldado nas Constituições francesas de 1799 e 1802 e que disporia de presidente e de Senado vitalício. Sob esse aspecto, Bolívar e d. Pedro estavam muito mais próximos do que podiam supor.
Cabe duvidar de que o conceito de federalismo seja o que melhor convém ao autonomismo pernambucano e mesmo à experiência constitucional brasileira. A esse respeito, não havia noções precisas ao tempo da Independência, por um lado empregando-se federação como sinônimo de confederação e, por outro, de república e democracia, no objetivo "ad terrorem" de confundir o autonomismo com a democracia ou governo popular, quando se tratava de concepções distintas. Há mais de 60 anos, Lemos Brito chamou a atenção para o fato de que o grande doutrinário do autonomismo, Frei Caneca, pensava antes em termos do sistema norte-americano dos "Articles of Confederation" do que da Constituição federal de 1787, nos quais os Estados haviam preservado feixe menos amplo de poderes.
Sob esse aspecto, o autonomismo pernambucano adotava posições que nos Estados Unidos haviam sido defendidas pelos adversários da Constituição em nome dos direitos dos Estados. Como demonstrou Bernard Bailyn, ao reivindicarem para a União competências em matéria de representação, tributação, dívida pública e Forças Armadas, os federalistas haviam sido acusados de serem tão perigosos para as liberdades dos colonos da América do Norte quanto, antes da Independência, a coroa e o Parlamento britânicos.
A despeito de que a historiografia brasileira fale sempre de federalismo ao tratar do período regencial, tal conceito era olhado com reservas. Quando dos debates sobre o Ato Adicional, Evaristo da Veiga, entre outros, indicou tratar-se de noção estranha à formação brasileira. Como vivam em colônias separadas, dotadas de propósitos unitários da corte, a fim de desacreditar as aspirações de autogoverno provincial, o período que vai da Revolução de Dezessete à Confederação do Equador também se absteve de formular seus objetivos em termos republicanos, preferindo apresentá-los ou como sendo compatíveis com o regime monárquico implantado no Rio, desde que este fosse autenticamente liberal, ou procurando esvaziar o debate sobre a natureza da chefia do Estado brasileiro, que seria irrelevante diante da questão crucial do autogoverno provincial.
Que no Norte o autonomismo primava sobre o republicanismo, José Bonifácio era o primeiro a reconhecer contra os que no Rio os identificavam abusivamente.
Em discurso em que caracterizava as correntes que se manifestavam no seio da Constituinte, ele enumerou entre os adeptos da Independência: os corcundas, convertidos à causa do Brasil por temor ao liberalismo das cortes, mas que repudiavam as instituições representativas; os monárquico-constitucionais, que representavam a maioria da nação e cuja política era a dele, Andrada; os republicanos do Rio, minoria numericamente desprezível que sonhava com a república unitária; e finalmente os autonomistas, que ele intitulava "bispos sem papa", os quais, não querendo ser unitários como os monárquico-constitucionais nem "republicanos de uma só república", aspiravam a "um centro de poder nominal (na corte) e, cada Província, uma pequena república". O perigo para José Bonifácio vinha precisamente desses "incompreensíveis" que tinham seu centro nas Províncias do Norte e, em particular, em Pernambuco. Ao dissociarem o autonomismo e a república, os "bispos sem papa" se acomodariam a uma monarquia que, "pari passu", teria sido despojada dos seus atributos essenciais, tornando-se de fato uma república cujo chefe de Estado, em vez de presidente, se intitularia imperador. Não se podendo a rigor acusar o ciclo 1817-1824 de separatista, cabe duvidar de que a unidade do Brasil representasse para ele a grande prioridade, pois não estava preparado, ao contrário do Sul, para sacrificar no altar de uma entidade unitária, que abrangesse toda a América portuguesa, nem suas aspirações de autogoverno nem tampouco os princípios liberais da Revolução portuguesa, precondição do triunfo do autonomismo deste lado do Atlântico.
Governo infame e vil
O que Tobias Monteiro observou com razão, mas sem compreensão, a respeito de Frei Caneca poderia ser escrito dos seus correligionários autonomistas: que tampouco encaravam "na união nacional e na integridade do Brasil o problema máximo da Independência". Para eles, a liberdade provincial primava sobre a unidade do Brasil, atitude tão legítima quanto a oposta. Em 1824, Natividade Saldanha colocou de forma nítida a disjuntiva liberdade ou independência: "Antes ser livre e não ser independente do que ser independente e não ser livre. E que vantagem tiraríamos nós de tal Independência? Não estarmos sujeitos ao rei d. João 6º e aos caprichos de Subserra, (do) conde, hoje marquês, de Palmela, Salter de Mendonça e Gomes de Oliveira. Que ridícula vantagem? E não ficávamos sujeitos aos caprichos de Maciel da Costa, de Vilela Barbosa e de outros? Antes viver na escravidão de Portugal do que na do Brasil, para que se não diga que os brasileiros foram tão estúpidos que, tendo forças para separar-se da metrópole e tendo ocasião de adotar um governo livre e acomodado às suas circunstâncias, adotaram um governo infame e vil (o do império), como são todos os governos absolutos".


Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.".


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