São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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Ponto de fuga

Outros modernos

Jorge Coli
especial para a Folha

O realismo de Courbet voltou-se para o mundo dos camponeses, arcaico, em via de extinção. Os impressionistas preferiram os gêneros neutros da paisagem, da natureza-morta. Quando faziam a cidade surgir, era enquanto motivo pictural, não como retrato. Monet, ao pintar a gare Saint-Lazare, não se mostrou interessado por estruturas metálicas ou por trens de ferro, instrumentos efetivos das mudanças que se operavam na vida das pessoas. Interrogava antes os efeitos translúcidos ou embaçados que o vapor provocava. Parece paradoxal: na Europa, os pintores modernos do século 19, que avançavam em experiências visuais e renovavam a arte, se afastaram de temas vinculados às alterações provocadas pelo mundo industrializado. Baudelaire pedia a eles um heroísmo da vida moderna. Zola queria que tomassem temas da sociedade contemporânea.
Foi nos EUA que, de fato, isso ocorreu. Ali, a pintura se interessou pelos fenômenos humanos e coletivos, dos peles-vermelhas à conquista do território, dos barqueiros no Mississippi aos caubóis no Oeste (e, isso, bem antes do cinema). Ao tornar-se moderna, incorporou a visão poderosa das formidáveis alterações que o país sofria na virada do século 20. Sua forma se renovava, mas não servia si mesma. Figurava imagens da modernidade "real", transformadora da vida, captando-as em torno de si.
Na Europa, nem o cubismo nem o fauvismo nem as abstrações diversas buscavam isso; nem mesmo o futurismo, interessado por uma estética em sintonia com a força da máquina, mas não em ser um testemunho artístico do mundo em mudança.
Lowbrow - Na primeira metade do século 20, em telas épicas, Bellows celebrou as modificações radicais que alteravam a fisionomia de Nova York. Fez do esporte uma epopéia: seu "Dempsey and Firpo" transfigurou em arte um combate histórico de boxe. Hopper inventou, com qualidade de luz que alcança Vermeer, o que talvez sejam as únicas autênticas paisagens modernas de seu tempo. Ben Shawn, sem obediência a doutrinas, produziu uma inquietante observação sobre a justiça e a ideologia nos Estados Unidos
Esses artistas e muitos outros afirmaram a inflexão ao mesmo tempo realista, heróica e moderna dentro da pintura americana. Em confronto com a arte da Europa, porém, foi desprezada dentro dos próprios EUA. Gertrude Vanderbilt Whitney viu sua soberba coleção recusada pelo Metropolitan Museum de NY em 1929, o mesmo ano no qual era criado o MoMA, que defendia a "outra" modernidade, chique e européia. A coleção da milionária constituiu o acervo inicial do Whitney Museum, consagrado às artes do país. Ainda hoje, essa pintura é tratada com desdém por uma certa crítica americana, que não a poupou quando o Whitney Museum decidiu retraçar sua trajetória na formidável retrospectiva de 1999.
Pentimento - O narrador e personagem central do romance "O Pintor das Sombras" ("The Underpainter", ed. Bertrand Brasil) é um artista fictício que pertence ao meio "moderno" da pintura americana no início do século 20. A autora, Jane Urquhart, irlandesa, mora no Canadá. O pintor em questão renuncia ao realismo executando figuras minuciosas sobre a tela, mas recobrindo-as depois por camadas de tinta. Em paralelo, subjaz um conflito subterrâneo entre quadros, arte "maior", e as delicadezas secretas da pintura sobre porcelana, objeto de um amor confidencial e sincero.

Iceberg - Entre os personagens reais que Jane Urquhart incorpora em "O Pintor das Sombras" se encontra Rockwell Kent (1882-1971). Pontua a história com intervenções enérgicas. Estupendo paisagista das planícies geladas, no Alasca, na Groenlândia, tratava-as em superfícies brilhantes. Foi um dos realistas modernos americanos que interessavam mrs. Whitney. Militou à esquerda, foi perseguido no período do macarthismo, doou grande parte de seus quadros para museus soviéticos. Esteve no Brasil, denunciou a repressão do Estado Novo. Tornou-se amigo de Portinari, apoiando, em tudo o que pôde, sua carreira nos Estados Unidos. Há, hoje, um interesse renovado por sua obra.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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