São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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A Viagem crepuscular de Walter Benjamin



Reprodução
Fotografia panorâmica de Paris em 1845 feita por Friedrich von Martens (1809-1875)


por George Steiner

O crítico analisa "O Trabalho das Passagens", obra fundamental de um dos principais pensadores alemães do século 20

Inconclusão é a palavra-chave do modernismo. As elaborações sistemáticas da epistemologia e do historicismo do século 19, o "omnium gatherum" projetado com humor por Coleridge e que ganhou forma de leviatã para Hegel e Auguste Comte, desapareceram. Adorno afirma que "a totalidade é a mentira". Uma poética do fragmentário, dos "fragmentos que apóiam nossa ruína", habita a literatura moderna. Isso não exclui gradação. Pelo contrário. O inacabado, de final aberto, em Proust ou nos "Cantos", de Pound, em "Moses und Aron", de Schoenberg, a "forma aperta" de Musil, gera seus próprios modelos de imensidão incompleta.
No modernismo a forma não é um ato concluído, mas processo e constante revisão. O tema preponderante é, depois de Mallarmé, o da natureza problemática, da ilegitimidade, de passar a ser, simplesmente. A inconclusão, o excesso de esboços, de rascunhos, anotações e emendas circundam, ironizam e subvertem o texto por meio da constante sugestão e implicação de decisões alternativas, do que "poderia ter sido" -outra vez uma categoria que faz de Coleridge o pré-modernista.
Muito antes de Valéry, a intuição dizia que qualquer texto, música ou obra de arte acabada, ainda mais publicada, significava a morte de sua intenção, da visão conceitual que a originara. Surpreendentemente, essa convenção da inconclusão encerra os dois atos representativos da filosofia do século 20: "Ser e Tempo", de Heidegger, não teve sua prometida terceira parte; e onde estão as totalidades formais de Wittgenstein?
As circunstâncias externas influíram. No barbarismo do século 20, os artistas, escritores e intelectuais foram frequentemente caçados, transformando-se em exilados e refugiados, expulsos de sua língua, das comunidades de reconhecimento em que suas criações poderiam se ter desdobrado. Foram forçados a produzir textos curtos e esópicos sob a pressão da necessidade material e da censura. Manuscritos foram confiscados, e maquetes, destruídas. Telas e partituras foram literalmente esmigalhadas. Mas existe na condição moderna uma pressão mais profunda contra a perfeição, quando essa palavra significa "realização concluída".
A aceleração e a violência da história recente, o desaparecimento em grande escala dos privilégios da privacidade, do silêncio e do lazer, que permitiam o exercício clássico da leitura e da resposta estética, a economia do efêmero, do descartável e reciclável que alimenta o mercado de consumo em massa, seja na mídia, seja na fábrica, militam contra as representações de completude e totalidade. Como poderíamos reunir a confiança quase megalômana que comanda a ordenação do mundo na "Comédia Humana", de Balzac (1799-1850), ou na tetralogia de Wagner (1813-83)? A colagem feita de detritos, de coisas efêmeras, de utensílios banais com as bordas gastas é um espelho para os tempos.
Cada um desses componentes se aplica a Walter Benjamin. Muito antes da catástrofe, a sua autoconsciência e o cenário de sua sensibilidade foram os do migrante e do desabrigado. O ritmo de sua existência era peregrino. Qualquer espécie de domesticidade era intermitente. Benjamin (1892-1940) foi, como diz o anti-semitismo com desprezo, um "Luftmensch" (homem de vento), que só se sentia em casa em hotéis baratos, pensões, locações temporárias ou no quarto de hóspedes de amigos compreensivos.

O efêmero foi recuperado e reforçado com as vigas de uma erudição muitas vezes monumental, mas o gênio da inconclusão, a sensação de que, à exceção de alguns, todos os seus textos são uma série de rascunhos, que temem o desfecho, desconfiam da finalização, é inconfundível


Suas companhias eróticas eram agitadas e invadiam a solidão natural de um errante. O credo do provisório, do incompleto, dominou qualquer noção de espírito e de desejo em sua não-carreira. Por outro lado, ou simultaneamente, o envolvimento de Benjamin com o marxismo, seu "pas-de-deux" com o sionismo e a idéia reiterada de emigrar para a Palestina, seus flertes com o haxixe, suas alusões ao mesmo tempo ardentes e irônicas de que poderia haver um lugar para ele na instituição acadêmica possuíam um caráter difuso e inevitavelmente fragmentado. Tinham a instabilidade passageira e a intermitência articulada dos cafés em que eram sonhados e discutidos interminavelmente. Talvez a sala de leitura da Biblioteca Nacional em Paris tenha sido o que mais se aproximou da terra natal de Benjamin. Seu suicídio num hotel decrépito de fronteira (entre a França e a Espanha, em 1940) foi emblemático -sendo o emblema e sua clarividência alegórica um dos temas fulcrais de Benjamin- de sua crepuscular viagem .

Vida precária
Seus textos refletem imediatamente esse desabrigo. A primeira dissertação, rejeitada, sobre o barroco alemão, "A Origem do Drama Barroco Alemão", é a única monografia completa. A obra de Benjamin existe em forma de ensaios, prefácios, palestras, roteiros para rádio e um corpo considerável de jornalismo. Resenhas de livros, relatos de viagens, folhetins sobre uma ampla variedade de temas culturais e sociais -de cinema a casas de bonecas, de excursões bibliográficas à arquitetura- expressam ao mesmo tempo a vida precária de Benjamin e as colagens contingentes tão típicas de suas inclinações. A inspirada tradução de Proust permaneceu um torso. O extenso artigo de enciclopédia sobre Goethe foi recusado pelos editores soviéticos. Uma quantidade razoável se perdeu por inteiro. Os imponentes volumes de "Escritos Completos" representam um milagre enganoso. O efêmero foi recuperado e reforçado com as vigas de uma erudição muitas vezes monumental (existe em Benjamin um empenho de detalhismo talmúdico e "odium philologicum"). Mas o gênio da inconclusão, a sensação de que, à exceção de alguns, todos os seus textos são uma série de rascunhos, que temem o desfecho, desconfiam da finalização, é inconfundível. Portanto é absolutamente apropriado que a realização máxima de Benjamin consista em 18 anotações aforísticas: as famosas e enormemente importantes "teses" sobre o conceito de história, com sua evocação do "vendaval que veio do Paraíso" e tudo dispersou.

Gênese labiríntica
A gênese de "O Trabalho das Passagens" é labiríntica, assim como Benjamin. Foi em 1927, sob o impacto de "O Camponês de Paris", de Aragon, que Benjamin começou a planejar um ensaio tendo Paris como tema. Há evidências de que mesmo nessa fase prematura estavam em jogo certos temas cardinais: a Paris do século 19 como "o abrigo da coletividade"; as mudanças provocadas pelo consumo urbano de produtos mercantis; as fantasias surrealistas que poderiam se relacionar à demolição da velha "Passage de l'Opéra". Inicialmente Benjamin via seu projeto como uma "féerie" dialética, uma rubrica talvez mais precisa e sugestiva do que todas as posteriores. Quando terminou de trabalhar com o material, no exílio parisiense em 1934, Benjamin tinha em mente vários títulos possíveis: "Passagenarbeit" (O Trabalho das Passagens/Galerias), sem dúvida, estaria muito mais no espírito da empreitada. Denota uma "obra em progresso", um canteiro de construção. A alternativa frequente era "Paris -Capital do Século 19", versão conhecida pelos que acompanharam e apoiaram a pesquisa.
A labuta de Benjamin se estenderia, com constantes interrupções, por mais de 13 anos. Sua "misère" cada vez mais profunda, que ele via claramente como o fracasso do Front Populaire, a vã esperança de moldar as "Passagens" aos desejos de Horkheimer e Adorno -mestres-de-obras recalcitrantes, mas indispensáveis- e a eclosão de uma guerra mundial tornaram a tarefa um pesadelo e ao mesmo tempo algo essencial. Ela forneceu a Walter Benjamin um eixo em torno do qual organizaria seu trabalho e sua vida. Além disso, os sucessivos projetos de Benjamin nas cartas a Gershom Scholem, em esboços enviados ao Instituto de Pesquisas Sociais, no plano geral de 1939 eram tão espaçosos, tão fluidos que poderiam incluir projetos paralelos como a antiga idéia da monografia sobre Baudelaire ou a continuação de uma pesquisa sobre literatura francesa moderna, com ênfase especialmente no surrealismo e em Proust. O trabalho passou por diversas fases. O esboço de 1935 prevê seis partes principais. O de 1939 é um pentagrama, moldado no edifício em cinco partes de "Flores do Mal". A descoberta de Benjamin, por meio de "L'Enfermé", de Gustave Geffroy, do líder revolucionário utópico Louis-Auguste Blanqui, em 1936-37, modifica profundamente as "Passagens". A cosmologia mística de Blanqui, em seu "L'Eternité par les Astres", de 1872, torna-se vital. Benjamin relacionará a terrível visão de Blanqui do universo "como catástrofe permanente" à doutrina de Nietzsche do "eterno retorno" e ao sentimento de vitimização social e política de Baudelaire como o verdadeiro inferno na terra em "As Litanias de Satã".

Espirais sarcásticas
O sombrio rufo de tambor nas "Passagens" é o das sucessivas derrotas do proletariado em 1830, 1839, 1848 e 1871, às quais Benjamin acrescenta as de 1930 nas democracias ocidentais, assim como no fascismo, no nazismo e no stalinismo (essa é, na verdade, uma leitura bastante parcial do radicalismo utópico de Blanqui). Mas agora, em sua incessante luta para encontrar gêneros narrativos e analíticos adequados, o leviatã muitas vezes encalhado de Benjamin alcançará o "ciclo infernal de repetição", o terror hipnótico do déjà vu. Como numa prisão de Piranesi, as "arcadas" se transformam em espirais sarcásticas. No entanto, há "Leitmotifs" interessantes nesse labirinto. Benjamin pretende abrir "arcadas" entre a psicologia de massa, tingida de elementos freudianos, uma sociologia materialista, a estética e uma escatologia altamente pessoal, às vezes esotérica. As "Passagens" serão uma análise onírica do grande sono em que o capitalismo mergulhou a consciência coletiva. O mundo de sonhos assim engendrado é cheio de objetos e de promessas libidinosos fetichizados (consumo excessivo e publicidade). Enquanto Aragon e o surrealismo permanecem no "reino de sonhos", Benjamin busca a "constelação do despertar". O espaço histórico real, a cartografia do urbanismo, deve substituir a mitologia impressionista de Aragon e Breton. Assim, para Aragon, a "passagem" parisiense, ou galeria, é uma experiência a ser metaforizada; para Benjamin é uma realidade socioeconômica cuja utilização de vidro e metal é ao mesmo tempo decisiva e ambígua. Os objetos devem ser lidos como Freud lê os sonhos. No capitalismo, os próprios objetos são sonhos coletivos que extraem seu poder alucinatório da produção em massa e do merchandising. "A Psicopatologia da Vida Cotidiana" de Freud foi antecipada pelas sagas visionárias do mercantilismo e da expansão urbana em Balzac e Zola. Essas percepções clarividentes devem ser validadas pelo diagnóstico clássico da reificação e alienação em "História e Consciência de Classe" de Lukács (de maneiras que Scholem considerou simplesmente inadmissíveis, o marxismo de Benjamin era um híbrido inquietante de Lukács e Trótski). Sem dúvida, o mapeamento dos esgotos de Paris feito por Benjamin, dos vastos porões sob a metrópole burguesa, das moradias e sótãos cheios de memórias e brinquedos, tem sua contrapartida na anatomia tríplice da psique definida por Freud. Mas esse mapeamento, vivamente influenciado pelo "flashback" e pelo close-up, pelas técnicas de montagem da fotografia e do cinema, pretende dar uma visão da destruição dos valores pelo capitalismo e pelo mercado de massa. Escrevendo para Scholem, Benjamin descobre uma taquigrafia incisiva: o Hamlet do surrealismo será sucedido por seu Fortinbrás. Os adormecidos devem ser despertados. Essas linhas complexas são tramadas por certos personagens. O catador de trapos -aqui Benjamin recorre a Baudelaire e ao "trapeiro de Paris" de Félix Pyat- é um dos protagonistas. Em suas rondas na madrugada, o trapeiro recolhe os fragmentos descartados, perdidos ou desprezados das esperanças e decepções humanas. "Dire que j'ai tout Paris, là dans cet osier." (E dizer que tenho Paris inteira aqui neste cesto). Essa recuperação dos detritos da história, como sabemos, é o cerne do programa de Walter Benjamin.

Figuração do messiânico
Na montagem aparentemente caótica do "chiffonnier" estão os verdadeiros "Denkmaler eines Nicht-mehr-Seins" ("monumentos ao que não é mais"). A ressurreição do efêmero, do desconsiderado, do rejeitado transforma o trapeiro em uma figuração do messiânico. Importância comparável tem o "flâneur", mais um tema crucial em Baudelaire (Benjamin traduz "A Une Passante", de Baudelaire). Todos esses temas se reúnem nas frívolas perambulações do "flâneur", cuja atitude e cujo voyeurismo despreocupado combinam perfeitamente com a geografia das "passagens". De maneiras relacionadas tanto à coleta do trapeiro quanto à do bibliófilo, Benjamin foi um compilador apaixonado -o "flâneur" subverte o programa utilitário e determinista da cidade. Ele encontra tesouros ou vestígios de ruínas por acaso. As gírias hoje erodidas de "mooning" (divagar) e de "swanning about" (vagar) codificam precisamente os símbolos do peregrino apreciados por Baudelaire e por Benjamin. Eternamente, o "chiffonnier" e o "flâneur" cruzarão em seus caminhos com a prostituta. Ela também é essencial ao elenco. As calçadas são sua nave mercante. Se a prostituta encarna fantasias arquetípicas de eros, de intimidades a serem "colhidas", é também o agente emblemático na polêmica marxista sobre a escravidão do capitalismo em seu aspecto mais indecente, assim como na narrativa freudiana da angústia e do desejo libidinoso da classe média. A fenomenologia da prostituição no Segundo Império e na belle époque permite que Benjamin entrelace economia, sociologia e psicanálise com um repertório inesgotável de precedentes literários. Especificamente, ela esclarece as compulsões obsessivas, as coleções repetidas: a prostituta coleciona clientes e é colecionada por eles. Nessa encruzilhada, Benjamin se inteira do "erotismo da aquisição e coleção" de Georges Bataille, da paradoxal libertação dos "objetos" (o corpo feminino) da servidão da utilidade. "Escrever história é citá-la", declara Benjamin, sabendo que em espanhol "citar" significa se "encontrar com", "marcar um encontro". Ninguém refletiu de maneira mais aguda sobre a natureza da citação do que Walter Benjamin. Somente Coleridge alcança as arriscadas profundezas da poética do empréstimo de Benjamin (os "Cadernos" de Coleridge são o que temos de mais próximo, em espírito e letra, ao "Trabalho das Passagens"). Anteriormente Benjamin havia sugerido a composição de um livro feito inteiramente de citações. Não no sentido banal, de um dicionário de citações, mas como um mosaico coeso, como uma hélice "recombinadora", situando cada frase sob uma nova luz.

Documentação e citação
No apreciado modelo de Lichtenberg, Benjamin brincava com a idéia de um livro de aforismos constituído de citações que poderiam ser truncadas, fundidas e até alteradas (tática conhecida por Montaigne). Que demonstração mais articulada do "eterno retorno" -sombras de um futuro Borges- do que a licença para articular verdades frescas e novos insights em palavras já utilizadas com exatamente a mesma aparência externa? Toda documentação é citação. Que outros meios de lembrança possuímos?
Como o conhecemos, "O Trabalho das Passagens" consiste essencialmente em trechos citados de mais de 850 fontes, na maior parte recolhidos na Biblioteca Nacional de Paris. Sua identificação, sua organização em 26 pastas principais, ou "convolutos", e as notas explicativas são o mérito do esforço prodigioso e da erudição de Rolf Tiedemann. Sua edição surgiu em 1982 como o volume cinco, partes um e dois, da "Suhrkamp Collected Works".

A prostituição dá poder à industrialização, à tecnocracia de eros; mas também se relaciona à subversão e à paródia dos racionalismos e valores no cassino dos capitalistas-burgueses -o frequentador das prostitutas e o jogador compulsivo se assemelham


Escondido por Bataille durante a ocupação alemã de Paris, o material chegou a Nova York no final de 1947. Apesar de extensa pesquisa textual, ainda há grande imprecisão sobre os planos finais de Benjamin quanto à sequência em que apresentaria o material e sobre sua evidente intenção de continuar a pesquisa. Colocado de maneira simples: ninguém tem autoridade para decretar se Walter Benjamin desejava ou não que seu vasto "canteiro de obras" fosse publicado de maneira semelhante à atual. A pasta "A" reúne material básico sobre as arcadas de Paris, sobre as novas mercearias e lojas de departamentos, sobre as personagens dos vendedores. O "Guide Illustré de Paris" de 1852 serve como fio de Ariadne. As referências são tipicamente variadas: incluem monografias sobre empresas funerárias (um negócio florescente), sobre litografia, os cafés de Paris, a regulamentação oficial dos nomes de produtos, além de Chesterton analisando Dickens, a "Comédia Humana", os textos de Börne e Baudelaire. Michelet e Heine são homenageados. "A influência dos negócios comerciais em Lautréamont e Rimbaud deve ser examinada!" Benjamin enuncia seu tema subjacente: "Sobre a "intoxicação religiosa das grandes cidades" de Baudelaire. As lojas de departamentos são templos dedicados a essa intoxicação".

Catacumbas da megalópole
A pasta "C" é uma descida às catacumbas da megalópole, à decomposição que rói seu caminho pela cidade opulenta. Na epígrafe (uma paixão de Benjamin), o Avernus de Virgílio confronta o depoimento de Apollinaire sobre o envelhecimento de Paris. Nessa parte, a própria voz de Benjamin se destaca de modo incomum. O "flâneur" sugere um panorama de toda a cidade, desdobrando-se em ritmo cinematográfico. "Paris foi construída sobre um sistema de cavernas do qual o ruído do metrô e da ferrovia sobe à superfície e ao qual cada ônibus ou caminhão que passa impõe um eco prolongado." Esse submundo, celebrado em "Os Miseráveis" por Victor Hugo, conecta as grutas e catacumbas da Baixa Idade Média às operações de contrabando dos séculos 16 e 18. Espíritos anárquicos e clandestinos esconderam-se nessa escuridão buliçosa. "Na entrada, uma caixa de correio: última oportunidade de mandar algum sinal para o mundo que se está deixando." Por meio da biografia "Charles Méryon", de G. Geffroy, Benjamin acrescenta a seu registro o Homem da Multidão de Poe e alusões ao cavernoso. Os arcos triunfais de Paris -Benjamin brinca com o rito de passagem das pessoas que os atravessam- são edificados sobre um labirinto de espaços subterrâneos. A arrogante cidade desmoronaria para dentro? A pasta "D" narra o tédio, a "noia", o grande cenário psicológico de Baudelaire, com figurações nietzschianas de "eterno retorno". Benjamin inclui o fascinante estudo de Jean Tardieu sobre o "Ennui". Pode ser considerado "uma espécie de breviário para o século 20". Benjamin classifica o tédio como "a superfície exterior do evento inconsciente", como o tecido cinza "em que nos envolvemos quando sonhamos". É o ornamento do dândi, a fonte do frenesi do jogador e da peregrinação do "flâneur". Na pasta "D" Blanqui torna-se uma presença central. Sua cosmologia de ficção científica deve ser relacionada ao "Zaratustra" de Nietzsche. "A essência do evento mítico é o retorno" -a circularidade carregada tanto de promessa como de terror. A pasta "E" se concentra nas interações entre a brutal modernização de Paris por Haussmann no Segundo Império e as insurreições nas barricadas, que os novos bulevares inibiriam com suas linhas de fogo para a artilharia. A crítica de Engels à tática de barricadas aparece depois de longos trechos do estudo de Georges Laronze sobre o estranho rótulo dado por Haussmann e Fourier à construção de barricadas como "um trabalho não remunerado, mas apaixonado". Os sangrentos combates de rua durante a guerra civil espanhola prolongam os de Paris de 1830, 1848 e na Comuna. A pasta "H", sobre o colecionador, é uma peça autobiográfica de grande pungência. Invocando os ensinamentos de Bergson sobre a elasticidade do tempo em relação às percepções individuais dos objetos, Benjamin explica como as coisas parecem atingir, capturar o colecionador. O "colecionador vive como num sonho". As anotações tornam-se tão densas que só podem esclarecer os conhecedores do idioma de Benjamin: "Matéria destruída: a elevação da mercadoria". O colecionador separa o objeto de sua matriz funcional, inserindo-o numa colagem; mas seria interessante estudar o bibliófilo "como o único tipo de colecionador que não remove completamente seus tesouros do contexto funcional". Também se deve notar o desprezo de Marx pela servidão do colecionador à reificação e pela idolatria aos modismos do mercado. Há muito de Benjamin na breve entrada: "Animais (pássaros, formigas), crianças e homens velhos como colecionadores". No envelope "J" (mas seriam essas rubricas do próprio Benjamin?) estão os tijolos do tão desejado livro sobre Baudelaire. Aqui tudo é virtualmente citação do mestre, de seus contemporâneos e biógrafos anteriores. Nadar, Victor Hugo, os Goncourt, a "opinião muito justa" de Proust sobre a posição de Sainte-Beuve a respeito de Baudelaire aglomeram-se ao redor da figura titular e da "necessidade supra-individual de seu modo de vida". As pastas "K" e "L" tratam dos sonhos, com componentes extraídos de Freud e Jung. Mas também aparecem arquitetos como Giedion e Le Corbusier. "Arcadas e passagens sem lado de fora como o sonho." Museus de cera podem ser considerados casas de sonhos "par excellence". Aqui, um artigo de Ernst Bloch, sempre um assistente importante, embora ambíguo, abre caminho. A pasta "D" contém uma das observações seminais de Benjamin: "Nos campos em que temos interesse, o conhecimento vem apenas em relâmpagos. O texto é o longo trovão que o segue".

Andorinhas migratórias
A epígrafe da pasta "O" cita o amor como "uma ave de passagem". Nas galerias que formam o andar superior das arcadas se aninham as mulheres conhecidas como "hirondelles", as andorinhas migratórias para aquisição sexual. A prostituição dá poder à industrialização, à tecnocracia de eros. Mas também se relaciona à subversão e à paródia dos racionalismos e valores no cassino dos capitalistas-burgueses. O frequentador das prostitutas e o jogador compulsivo se assemelham.
As reflexões pioneiras de Walter Benjamin sobre a fotografia, Daguerre e seu diorama revolucionário estão reunidas na pasta "Q". Esse material abre diretamente com o tema dos espelhos, cujo gênio tutelar, para Benjamin, é Mallarmé. Os espelhos conjugam os usos evoluídos do vidro, essenciais na construção das "passagens" e transformados em expoentes no Crystal Palace. Novas formas de iluminação artificial ("T") modificam todo o potencial das imagens e da simulação. A lâmpada a gás transmuta os espaços internos em grutas encantadas. As novas intensidades da iluminação revestem o céu urbano. Benjamin volta-se em seguida para os ensinamentos socioutópicos de Saint-Simon e o desenvolvimento das ferrovias. Novamente, temas cruciais são anotados num código provisório e opaco: a "emancipação da carne" apregoada por B.P. Enfantin, o apóstolo de Saint-Simon, "deve ser comparada às teses de Feuerbach e às visões de Georg Büchner. O materialismo antropológico está incluído no dialético". Grande parte da esperança radical e utópica do século 19 tinha uma estrutura conspiratória e clandestina. Daí o papel vital das conspirações, da "compagnonnage" proibida e dos grupos anárquicos (pasta "V"). De Babeuf e os "carbonari" a Bakunin e as células niilistas, a necessária modulação dos sonhos em pesadelos ativos falam da violência no subterrâneo. A revolução não-violenta é o ideal de Fourier ("W"). Na lógica perfeita, "o falangismo é uma máquina feita de seres humanos". O dossiê X é feito de trechos de textos marxistas clássicos, sob a luz condutora do comentário de Karl Korsch. O breve tratamento das bonecas e autômatos que conclui a sequência alfabética é um dos mais sugestivos. As bonecas musicais são as sereias-glórias das arcadas. Sabemos que o autômato de xadrez, com seu jogador anão oculto, é o ícone preferido de Benjamin para a ação teológica inerente à história secular. "O Projeto das Arcadas" não é "legível" num sentido imediato. É uma "loja de curiosidades antigas" (Benjamin cita repetidamente o título de Dickens), uma caverna de tesouros de Aladim num sótão, um quarto de despejo metafísico-histórico e uma casa de bonecas de incrível mobiliário para vasculhar e meditar, exatamente como fazem o "flâneur", o catador e o colecionador na própria encenação de Benjamin.

Ideal de beleza frígida
De vez em quando, um único aforismo ou um rótulo en passant abrem grandes panoramas. A liquidação da fertilidade na organização tecnológica do mundo torna-se manifesta pelo ideal de beleza frígida do "Jugendstil": o gênio da alegoria impede que o grande artista (Baudelaire) sucumba ao abismo da mitologia; as revoluções são o ar fresco da cidade pujante, elas abrem e desmitificam seus sonhos estáticos e empacotados; e, sobretudo, "meu pensamento se relaciona à teologia como o mata-borrão se relaciona à tinta. Está saturado dela. Se dependesse do mata-borrão, porém, nada do que está escrito permaneceria" -a máxima de um escritor obcecado por espelhos e por grafologia.
A primeira tradução para inglês, de Howard Eiland e Kevin McLaughlin, segue em geral minuciosamente a edição comentada e revista de Tiedemann. Assim como as notas, as explicações sobre o material colhido preliminarmente e as colaborações editoriais. Mas há problemas. Embora cuidadosa, a tradução para inglês e anglo-americano contraria a própria textura do afresco a-não-ser-concluído de Benjamin. A edição de Benjamin pela Harvard University Press, hoje em progresso monumental, é um empreendimento admiravelmente generoso. Os volumes iniciais superam a erudição oferecida primeiramente pela Suhrkamp. Mas no caso das "Passagens", um esforço colossal talvez tenha sido mal direcionado. Encerrando essas 1.073 páginas densamente impressas, somos assombrados pelo veredicto de Benjamin sobre Mallarmé, de que "a obra é a máscara mortuária de sua concepção".

George Steiner é catedrático do Churchill College, em Cambridge, e um dos mais importantes críticos literários vivos, autor, entre outros, de "Extraterritorial" e "Linguagem e Silêncio" (Companhia das Letras). Este texto foi originalmente publicado no "The Times Literary Supplement".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Onde encomendar:
"The Arcades Project", de Walter Benjamin, pode ser encomendado, em SP, à livraria Fnac (tel. 0/ xx/ 11/ 3097-0022) e, no RJ, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/533-2237)


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