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+ brasil 501 d.C.
O caso de Romualdo
No Brasil,
a escalada da violência física é o efeito cumulativo
de processos conjugados de violência econômica, política e intelectual que destroem o indivíduo autônomo
Sergio Paulo Rouanet
Machado de Assis conta que,
com seis anos, o menino
Brás Cubas tinha o hábito de
montar a cavalo no moleque
Prudêncio. Punha-lhe um freio, chicoteava-o com uma varinha e dava mil voltas para um e outro lado. O escravozinho
obedecia sem dizer nada ou, quando
muito, gemia: "Ai, nhonhô", ao que Brás
retorquia: "Cala a boca, besta!".
Muitos anos depois, Brás Cubas encontra Prudêncio, já alforriado, chicoteando outro negro, seu escravo. A pedido de Brás, Prudêncio perdoa o escravo e
o manda para casa. Brás acha o episódio
engraçadíssimo, pois percebe que, ao bater no escravo, Prudêncio estava apenas
se vingando das pancadas recebidas do
seu antigo sinhozinho. É como um louco
que ele conhecera, Romualdo, que se dizia Tamerlão, rei dos tártaros. Tinha se
transformado em Tamerlão, explicava o
louco, porque tinha tomado tanto tártaro, tanto tártaro, que virara tártaro, e até
rei dos tártaros. O tártaro tinha a virtude
de fazer tártaros.
Essa sequência de três episódios -os
dois em que aparece Prudêncio e o terceiro em que aparece Romualdo- pode
ser lida a partir de duas grades interpretativas opostas, que eu chamaria o naturalismo e o angelismo.
O naturalismo privilegia apenas os
dois primeiros episódios, em que surgem Prudêncio e Brás Cubas. Prudêncio
figura nelas uma vez como protagonista
passivo e outra como protagonista ativo.
Na primeira cena, Brás Cubas é agente.
Na segunda, é espectador -e observa
Prudêncio exercendo a função de algoz
que Brás exercera na infância e em que o
escravo ocupa a posição de vítima antigamente ocupada por Prudêncio.
No rodízio dos personagens, não há
mudança no enredo, mas apenas alternância de papéis: Prudêncio pode perfeitamente substituir Brás, porque na interpretação naturalista são dois indivíduos
genéricos, intercambiáveis, contracenando num espetáculo alegórico cuja
função é ilustrar um dos traços universais da natureza humana.
Nessas duas narrativas, Machado estaria tematizando a violência congênita
que existe em todos os homens, independentemente de sistema social ou de
período histórico, e que pode se manifestar indiferentemente num representante
da classe senhorial, como Brás Cubas cavalgando Prudêncio, e num representante da classe subalterna, como Prudêncio fustigando o escravo. Igualmente
universal, exprimindo um dos aspectos
menos nobres da maldade humana, é o
mecanismo compensatório pelo qual a
vítima da violência por sua vez se torna
violenta, se vingando em outros das
agressões recebidas.
A perspectiva angelista
Em compensação, a perspectiva angelista poria
toda a ênfase no terceiro episódio, o apólogo que tem como tema o louco Romualdo. O apólogo contextualiza as duas
cenas anteriores, que deixam de aludir a
uma natureza humana abstrata. Com essa parábola, dizem os angelistas, Machado está nos dizendo que a violência de
Brás contra Prudêncio e deste contra o
escravo nada têm de universal. Assim como a natureza tártara de Romualdo é filha do tártaro ingerido, a violência de
Prudêncio é filha da violência de Brás
Cubas, e a deste é filha da violência estrutural embutida na sociedade escravocrata. O tártaro produz guerreiros tártaros,
assim como a violência estrutural produz homens violentos. Violência concreta, portanto, produto de uma gênese histórica, não violência do homem em geral, mas violência produzida por estruturas particularíssimas de dominação, que
envolvem em suas malhas tanto opressores como oprimidos.
Salvo engano, as duas perspectivas extremas se movem no terreno da teologia.
Os naturalistas aderem a uma teologia
pessimista, agostiniana, que parte da hipótese de uma depravação hereditária
do homem, capaz de resistir a todas as
transformações sociais. A violência, consequentemente, é algo de inerente a essa
natureza degradada. Os angelistas, ao
contrário, partem de uma teologia otimista, que nega o pecado original e acredita que a violência não está no homem,
sim na sociedade. Em consequência,
basta mudar a sociedade para erradicar a
violência. Uma reflexão leiga nos obrigaria a combinar as duas concepções. Precisamos de uma teoria que avance além
do naturalismo, admitindo a influência
dos fatores sociais na gênese da violência, e permaneça aquém do angelismo,
aceitando como parte de nossa herança
antropológica a existência de um impulso agressivo que partilhamos com o restante do mundo animal.
Ora, temos à nossa disposição uma
teoria que vai exatamente nessa direção:
a freudiana.
Freud é um "naturalista" exemplar
quando afirma que a violência é parte da
herança da espécie, tanto histórica quanto biologicamente. Partindo do mito da
horda primitiva, postula uma violência
original, que o homem sofria de um pai
tirânico e da qual só conseguiu se livrar
por meio de outro ato de violência, o assassinato e o devoramento do pai. Independentemente desse mito filogenético,
Freud insere a violência no mais fundo
do aparelho psíquico. Em "Além do
Princípio do Prazer" (1920), cria a noção
da pulsão de morte, voltada para a destruição do próprio sujeito e, quando extrovertida, para a destruição do objeto.
Em 1929, escreve "Mal-Estar na Civilização", em que apresenta a pulsão destrutiva como uma disposição primária e
instintiva de todo ser humano e como o
maior obstáculo enfrentado pela civilização. Em 1932, publica uma carta a Einstein -"Por Que a Guerra?"- em que
apresenta uma versão hobbesiana do estado de natureza, caracterizado pela violência generalizada, e da formação do Estado, visto como necessário para impedir que a pulsão destrutiva de cada indivíduo se traduzisse em atos de violência
que levassem ao aniquilamento de todos.
Esse Estado cumpre suas funções recorrendo, por sua vez, à violência, da qual
passa a deter o monopólio.
Mas Freud é um "angelista", também,
na medida em que reconhece a fortíssima influência do mundo social . Existe
para ele uma violência externa, ilegítima,
que não se destina a manter a vida civilizada como tal e sim a perpetuar uma ordem social injusta. Essa violência social
gera um grande ressentimento entre os
explorados e estimula atos de violência
individual ou coletiva pelos quais a própria sociedade é responsável. O ideal, para Freud, seria um equilíbrio entre a realidade psíquica do homem e as exigências da vida em sociedade.
Nunca se poderá eliminar a agressividade original do ser humano, mas seus
efeitos negativos poderão ser atenuados
pela abolição da escassez, por meio da
ciência e da técnica, e pelo fim da "sobre-repressão", modificando as relações de
propriedade que beneficiam a minoria
em detrimento da maioria. Com isso,
poderão se criar condições para a formação de personalidades autônomas, das
quais depende, em última análise, a capacidade de arbitrar os conflitos entre a
pulsão agressiva e a sociedade.
A autonomia permite ao indivíduo distinguir entre a renúncia pulsional necessária e a excedente, lidar com os impulsos indesejáveis, seja transformando-os
pela sublimação, seja afastando-os segundo atos intencionais de julgamento, e
não segundo os mecanismos irracionais
do recalque, e gerir a pulsão agressiva de
modo a orientá-la contra as instituições
injustas, evitando tanto que ela se volte
contra o ego, o que a converteria em culpa, como que ela se dirija para fora sob a
forma de destrutividade cega.
Em nenhuma sociedade concreta esse
modelo ideal foi ou será realizado, mas
em algumas a distância entre a realidade
e o paradigma é especialmente chocante.
É o caso do Brasil. Aqui as estruturas sociais, danificando a autonomia do indivíduo, impedem que a agressividade seja
canalizada de forma socialmente aceitável. A escalada da violência física é o efeito cumulativo de processos conjugados
de violência econômica, política e intelectual que destroem o indivíduo autônomo, impedindo-o de lidar com seus
impulsos agressivos sem consequências
disfuncionais para si mesmo e para a comunidade. Cada vez mais a autonomia
econômica é sabotada por um padrão de
distribuição de renda que gera a miséria
de massa; a autonomia política, fraudada
no passado por regimes ditatoriais, se
torna impermeável a uma verdadeira
participação popular, o que provoca a
anomia e a alienação; e a autonomia intelectual é esvaziada por graves déficits
educacionais ou pervertida por processos abrangentes de ideologização.
Diante disso, o que fazer? Freud fala na
mobilização de eros como contrapeso
para a pulsão destrutiva, tânatos, reforçando os vínculos de identificação entre
os membros de uma comunidade. Mas o
preço dessa solução seria alto. Expulsa
do grupo, a violência seria deslocada para fora, e a guerra contra um inimigo comum seria o cimento da coesão interna.
É em grande parte o que está ocorrendo
nos atuais conflitos interétnicos. Quando
se enfrentam no campo de batalha, as diferentes encarnações do eros identitário
se parecem assustadoramente com sua
irmã inimiga, a morte. Não, não podemos vencer a violência recorrendo a mecanismos afetivos, e sim à razão. É a via
preferida por Freud. O que é necessário,
dentro dessa linha, é fortalecer as estruturas sociais que conduzem à autonomia, defesa durável contra as investidas
da pulsão agressiva.
Consequentemente, é preciso reforçar
antes de mais nada a autonomia econômica, eliminando a pobreza intolerável
em que vive a maioria da população; a
autonomia política, por uma reforma
que permita a participação efetiva no
processo político, transformando assim
um sistema jurídico-institucional abstrato em coisa de todos, em lugar para o
exercício da cidadania, em produto da
ação autodeterminada de cada indivíduo; e a autonomia intelectual, a capacidade de pensar por si mesmo, o que implica um sistema pedagógico capaz de
educar para a liberdade e um sistema de
comunicação de massas livre da violência eletrônica.
Resta, evidentemente, a violência suprema, a guerra, pois não existe até hoje
nenhuma instância que exerça o monopólio da violência internacional, como os
Estados nacionais exercem o monopólio
da violência interna. Além disso, como
na era da globalização as principais pressões que lesam a autonomia humana
vêm do exterior, é lícito perguntar se podemos eliminar a violência ilegítima enquanto não acedermos a uma democracia mundial.
Se é verdade que a violência social nos
impede de administrar racionalmente
nosso potencial de violência psíquica, temos que imaginar, no final, uma quarta
cena, depois da cena infantil de Prudêncio sendo cavalgado, da cena adulta de
Prudêncio açoitando o escravo e da cena
alegórica de Romualdo ingerindo tártaro. Nessa quarta cena, Prudêncio dá-se
conta do caráter substitutivo da violência
que exerce contra o escravo e ergue o chicote contra o verdadeiro objeto de sua
agressividade, Brás Cubas.
Sem dúvida, essa não pode ser a última
palavra. Agredir Brás Cubas não bastaria
para transformar Prudêncio em Espártaco. A solução correta requer que Prudêncio alcance uma verdadeira autonomia,
que não se esgote em atos de vingança
pessoal e o leve a se revoltar contra a própria ordem escravocrata.
Mas a história demonstrou que nem
sempre é possível distinguir entre as estruturas da violência e seus suportes subjetivos, aqueles indivíduos que, segundo
Marx, seriam meros "Charaktermasken", personagens inconscientes de um
drama que eles não escreveram. Em certos países, em que todas as vias consensuais foram barradas, a contraviolência
em si, sem grandes distinções teóricas,
aparece como uma "ultima ratio", a única via para uma ordem não-violenta. Esperemos que os jagunços que assassinam sem-terra, os latifundiários que
massacram índios e os fascistas que metralham crianças não acabem incluindo
o Brasil entre esses países.
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia na Universidade de Brasília. É autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia
das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil
501 d.C.".
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