São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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+ brasil 501 d.C.

O caso de Romualdo



No Brasil, a escalada da violência física é o efeito cumulativo de processos conjugados de violência econômica, política e intelectual que destroem o indivíduo autônomo
Sergio Paulo Rouanet

Machado de Assis conta que, com seis anos, o menino Brás Cubas tinha o hábito de montar a cavalo no moleque Prudêncio. Punha-lhe um freio, chicoteava-o com uma varinha e dava mil voltas para um e outro lado. O escravozinho obedecia sem dizer nada ou, quando muito, gemia: "Ai, nhonhô", ao que Brás retorquia: "Cala a boca, besta!". Muitos anos depois, Brás Cubas encontra Prudêncio, já alforriado, chicoteando outro negro, seu escravo. A pedido de Brás, Prudêncio perdoa o escravo e o manda para casa. Brás acha o episódio engraçadíssimo, pois percebe que, ao bater no escravo, Prudêncio estava apenas se vingando das pancadas recebidas do seu antigo sinhozinho. É como um louco que ele conhecera, Romualdo, que se dizia Tamerlão, rei dos tártaros. Tinha se transformado em Tamerlão, explicava o louco, porque tinha tomado tanto tártaro, tanto tártaro, que virara tártaro, e até rei dos tártaros. O tártaro tinha a virtude de fazer tártaros. Essa sequência de três episódios -os dois em que aparece Prudêncio e o terceiro em que aparece Romualdo- pode ser lida a partir de duas grades interpretativas opostas, que eu chamaria o naturalismo e o angelismo. O naturalismo privilegia apenas os dois primeiros episódios, em que surgem Prudêncio e Brás Cubas. Prudêncio figura nelas uma vez como protagonista passivo e outra como protagonista ativo. Na primeira cena, Brás Cubas é agente. Na segunda, é espectador -e observa Prudêncio exercendo a função de algoz que Brás exercera na infância e em que o escravo ocupa a posição de vítima antigamente ocupada por Prudêncio. No rodízio dos personagens, não há mudança no enredo, mas apenas alternância de papéis: Prudêncio pode perfeitamente substituir Brás, porque na interpretação naturalista são dois indivíduos genéricos, intercambiáveis, contracenando num espetáculo alegórico cuja função é ilustrar um dos traços universais da natureza humana. Nessas duas narrativas, Machado estaria tematizando a violência congênita que existe em todos os homens, independentemente de sistema social ou de período histórico, e que pode se manifestar indiferentemente num representante da classe senhorial, como Brás Cubas cavalgando Prudêncio, e num representante da classe subalterna, como Prudêncio fustigando o escravo. Igualmente universal, exprimindo um dos aspectos menos nobres da maldade humana, é o mecanismo compensatório pelo qual a vítima da violência por sua vez se torna violenta, se vingando em outros das agressões recebidas.

A perspectiva angelista
Em compensação, a perspectiva angelista poria toda a ênfase no terceiro episódio, o apólogo que tem como tema o louco Romualdo. O apólogo contextualiza as duas cenas anteriores, que deixam de aludir a uma natureza humana abstrata. Com essa parábola, dizem os angelistas, Machado está nos dizendo que a violência de Brás contra Prudêncio e deste contra o escravo nada têm de universal. Assim como a natureza tártara de Romualdo é filha do tártaro ingerido, a violência de Prudêncio é filha da violência de Brás Cubas, e a deste é filha da violência estrutural embutida na sociedade escravocrata. O tártaro produz guerreiros tártaros, assim como a violência estrutural produz homens violentos. Violência concreta, portanto, produto de uma gênese histórica, não violência do homem em geral, mas violência produzida por estruturas particularíssimas de dominação, que envolvem em suas malhas tanto opressores como oprimidos.
Salvo engano, as duas perspectivas extremas se movem no terreno da teologia. Os naturalistas aderem a uma teologia pessimista, agostiniana, que parte da hipótese de uma depravação hereditária do homem, capaz de resistir a todas as transformações sociais. A violência, consequentemente, é algo de inerente a essa natureza degradada. Os angelistas, ao contrário, partem de uma teologia otimista, que nega o pecado original e acredita que a violência não está no homem, sim na sociedade. Em consequência, basta mudar a sociedade para erradicar a violência. Uma reflexão leiga nos obrigaria a combinar as duas concepções. Precisamos de uma teoria que avance além do naturalismo, admitindo a influência dos fatores sociais na gênese da violência, e permaneça aquém do angelismo, aceitando como parte de nossa herança antropológica a existência de um impulso agressivo que partilhamos com o restante do mundo animal.
Ora, temos à nossa disposição uma teoria que vai exatamente nessa direção: a freudiana.
Freud é um "naturalista" exemplar quando afirma que a violência é parte da herança da espécie, tanto histórica quanto biologicamente. Partindo do mito da horda primitiva, postula uma violência original, que o homem sofria de um pai tirânico e da qual só conseguiu se livrar por meio de outro ato de violência, o assassinato e o devoramento do pai. Independentemente desse mito filogenético, Freud insere a violência no mais fundo do aparelho psíquico. Em "Além do Princípio do Prazer" (1920), cria a noção da pulsão de morte, voltada para a destruição do próprio sujeito e, quando extrovertida, para a destruição do objeto.
Em 1929, escreve "Mal-Estar na Civilização", em que apresenta a pulsão destrutiva como uma disposição primária e instintiva de todo ser humano e como o maior obstáculo enfrentado pela civilização. Em 1932, publica uma carta a Einstein -"Por Que a Guerra?"- em que apresenta uma versão hobbesiana do estado de natureza, caracterizado pela violência generalizada, e da formação do Estado, visto como necessário para impedir que a pulsão destrutiva de cada indivíduo se traduzisse em atos de violência que levassem ao aniquilamento de todos. Esse Estado cumpre suas funções recorrendo, por sua vez, à violência, da qual passa a deter o monopólio.
Mas Freud é um "angelista", também, na medida em que reconhece a fortíssima influência do mundo social . Existe para ele uma violência externa, ilegítima, que não se destina a manter a vida civilizada como tal e sim a perpetuar uma ordem social injusta. Essa violência social gera um grande ressentimento entre os explorados e estimula atos de violência individual ou coletiva pelos quais a própria sociedade é responsável. O ideal, para Freud, seria um equilíbrio entre a realidade psíquica do homem e as exigências da vida em sociedade.
Nunca se poderá eliminar a agressividade original do ser humano, mas seus efeitos negativos poderão ser atenuados pela abolição da escassez, por meio da ciência e da técnica, e pelo fim da "sobre-repressão", modificando as relações de propriedade que beneficiam a minoria em detrimento da maioria. Com isso, poderão se criar condições para a formação de personalidades autônomas, das quais depende, em última análise, a capacidade de arbitrar os conflitos entre a pulsão agressiva e a sociedade.
A autonomia permite ao indivíduo distinguir entre a renúncia pulsional necessária e a excedente, lidar com os impulsos indesejáveis, seja transformando-os pela sublimação, seja afastando-os segundo atos intencionais de julgamento, e não segundo os mecanismos irracionais do recalque, e gerir a pulsão agressiva de modo a orientá-la contra as instituições injustas, evitando tanto que ela se volte contra o ego, o que a converteria em culpa, como que ela se dirija para fora sob a forma de destrutividade cega.
Em nenhuma sociedade concreta esse modelo ideal foi ou será realizado, mas em algumas a distância entre a realidade e o paradigma é especialmente chocante. É o caso do Brasil. Aqui as estruturas sociais, danificando a autonomia do indivíduo, impedem que a agressividade seja canalizada de forma socialmente aceitável. A escalada da violência física é o efeito cumulativo de processos conjugados de violência econômica, política e intelectual que destroem o indivíduo autônomo, impedindo-o de lidar com seus impulsos agressivos sem consequências disfuncionais para si mesmo e para a comunidade. Cada vez mais a autonomia econômica é sabotada por um padrão de distribuição de renda que gera a miséria de massa; a autonomia política, fraudada no passado por regimes ditatoriais, se torna impermeável a uma verdadeira participação popular, o que provoca a anomia e a alienação; e a autonomia intelectual é esvaziada por graves déficits educacionais ou pervertida por processos abrangentes de ideologização.
Diante disso, o que fazer? Freud fala na mobilização de eros como contrapeso para a pulsão destrutiva, tânatos, reforçando os vínculos de identificação entre os membros de uma comunidade. Mas o preço dessa solução seria alto. Expulsa do grupo, a violência seria deslocada para fora, e a guerra contra um inimigo comum seria o cimento da coesão interna. É em grande parte o que está ocorrendo nos atuais conflitos interétnicos. Quando se enfrentam no campo de batalha, as diferentes encarnações do eros identitário se parecem assustadoramente com sua irmã inimiga, a morte. Não, não podemos vencer a violência recorrendo a mecanismos afetivos, e sim à razão. É a via preferida por Freud. O que é necessário, dentro dessa linha, é fortalecer as estruturas sociais que conduzem à autonomia, defesa durável contra as investidas da pulsão agressiva.
Consequentemente, é preciso reforçar antes de mais nada a autonomia econômica, eliminando a pobreza intolerável em que vive a maioria da população; a autonomia política, por uma reforma que permita a participação efetiva no processo político, transformando assim um sistema jurídico-institucional abstrato em coisa de todos, em lugar para o exercício da cidadania, em produto da ação autodeterminada de cada indivíduo; e a autonomia intelectual, a capacidade de pensar por si mesmo, o que implica um sistema pedagógico capaz de educar para a liberdade e um sistema de comunicação de massas livre da violência eletrônica.
Resta, evidentemente, a violência suprema, a guerra, pois não existe até hoje nenhuma instância que exerça o monopólio da violência internacional, como os Estados nacionais exercem o monopólio da violência interna. Além disso, como na era da globalização as principais pressões que lesam a autonomia humana vêm do exterior, é lícito perguntar se podemos eliminar a violência ilegítima enquanto não acedermos a uma democracia mundial.
Se é verdade que a violência social nos impede de administrar racionalmente nosso potencial de violência psíquica, temos que imaginar, no final, uma quarta cena, depois da cena infantil de Prudêncio sendo cavalgado, da cena adulta de Prudêncio açoitando o escravo e da cena alegórica de Romualdo ingerindo tártaro. Nessa quarta cena, Prudêncio dá-se conta do caráter substitutivo da violência que exerce contra o escravo e ergue o chicote contra o verdadeiro objeto de sua agressividade, Brás Cubas.
Sem dúvida, essa não pode ser a última palavra. Agredir Brás Cubas não bastaria para transformar Prudêncio em Espártaco. A solução correta requer que Prudêncio alcance uma verdadeira autonomia, que não se esgote em atos de vingança pessoal e o leve a se revoltar contra a própria ordem escravocrata.
Mas a história demonstrou que nem sempre é possível distinguir entre as estruturas da violência e seus suportes subjetivos, aqueles indivíduos que, segundo Marx, seriam meros "Charaktermasken", personagens inconscientes de um drama que eles não escreveram. Em certos países, em que todas as vias consensuais foram barradas, a contraviolência em si, sem grandes distinções teóricas, aparece como uma "ultima ratio", a única via para uma ordem não-violenta. Esperemos que os jagunços que assassinam sem-terra, os latifundiários que massacram índios e os fascistas que metralham crianças não acabem incluindo o Brasil entre esses países.


Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia na Universidade de Brasília. É autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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