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Super-homens nos botecos do Leblon
Compulsão retórica avacalhada e esnobismo dão o tom em romances de Francis, mas sua estilística é divertida
VINICIUS TORRES FREIRE
COLUNISTA DA FOLHA
Quase linda, mas
feia. Era uma piada de tempos antigos da faculdade
de filosofia da USP
sobre os encantos equívocos de
uma filósofa. Seria o caso do romance de Paulo Francis? Quase ótimo, mas ruim?
"Cabeça de Papel" (1977) é
"quase lindo"; "Cabeça de Negro" (1979), o segundo da sua
trilogia incompleta, é francamente ruim, um "thriller que
se lê de uma sentada" e produzido para ser pop e vendável,
segundo o próprio Francis.
"Cabeça de Papel" é uma sucessão de esquetes e de vidas
paralelas encenada no Rio, entre meados dos anos 60 e 70,
repleto de delírios intelectuais,
confessionais e debates políticos entre os protagonistas, Hugo Mann e Paulo Hesse, as duas
figuras sendo um só alter ego
bifronte de Francis.
Mann é um jornalista que
desembarca do trotskismo,
empregado como crítico de cinema no jornal dirigido por
Hesse, seu amigo de infância.
Hesse, filho de empresário
casado com uma aristocrata carioca, doutor em administração por Yale, era o colunista
"guru" da esquerda até a ditadura chegar. Logo depois do
golpe, assume a fachada de defensor jornalístico-intelectual
da "revolução capitalista liberal e centralizadora" de 1964. A
fachada de Hesse é o eixo do
parco enredo do romance.
O livro é costurado pelos vomitórios e memórias de Mann
e Hesse. Pelas suas regressões
digressivas e sentimentais sobre o Rio dos anos 40 e 50. Pelo
jorro de tiradas esculhambativas, irônicas, crípticas e permeadas de citações sobre pessoas, política e cultura. Pelas
explicações que os dois fornecem sobre a história universal,
em particular sobre o destino
de centro e periferia mundiais
em tempo de Guerra Fria.
De permeio, há retratos de
jornalistas, donos de jornal, da
vida nos jornais, de um e outro
aristocrata, artistas, intelectuais de bar, da "mulher carioca", de ricos americanos integrados ao ambiente local. Enfim, da elite do provincianismo
charmoso de Cosme Velho,
Ipanema, Leblon e arredores,
de suas festas e bandalheiras.
Mas, raridade em romances
e na arte brasileira, cada vez
mais adepta do pauperismo, o
livro trata de gente rica; é um
memorial vívido dessa elite carioca que desapareceu.
Mas "Cabeça de Papel" é um
romance? O livro é feito de remendos da idéia que Francis
fazia do modernismo: fluxos de
consciência; niilismo desesperado diante da mera aparência
de ordem e sentido da realidade; fim da narrativa linear.
No pior, o livro tem algo de
romance de espionagem e de
Graham Greene aguado, no
que evidencia um ranço ridículo de certos jornalistas e escritores que ficaram adultos no
início da Guerra Fria -pessoas
para quem era sofisticada (adjetivo já em si ridículo) a pose
de perceber conspirações e espiões por toda parte.
Os tipos de Francis, pois não
são bem personagens, parecem
quase todos marionetes risíveis, estereótipos de sua origem social e classe, ou títeres
da política e de poderes globais.
Mas os fios que movem os bonecos são grossos, visíveis; a
encenação é exagerada.
Epifanias e clarividência ficam restritas a figuras além do
bem e do mal, como os quase
sempre oniscientes Hesse e
Mann. Os protagonistas têm a
moral de senhores, super-homens nietzscheanos de fancaria que cafungam num bar do
Leblon a rir do criouléu.
O conjunto dos materiais artísticos de Francis poderia dar
samba, mas a compulsão retórica prejudica a carpintaria romanesca de "Cabeça de Papel".
O livro é desconjuntado pela
"vontade de poder falar" sobre
tudo, evidenciada no esnobismo ingênuo e provinciano das
digressões senhoriais de Mann
e Hesse. Parece uma colagem
de ensaios superficiais, bons
retratos e do jornalismo de espetáculo típico de Francis.
Mas o ponto forte de Francis,
porém mal aproveitado, é ainda
essa mesma verborragia estruturada, a estilística da esculhambação, a retórica avacalhada e agressiva, em si uma crítica
da logorréia pomposa e da desconversa brasileiras. Seu fraco:
o desamor por forma e estrutura, reflexo de seus empirismos,
suas leituras por vezes rasas de
grandes idéias, seu desgosto
exagerado pela teoria.
Mas a leitura de Francis sempre é uma diversão. Causa impressão parecida à dos poemas
de Mário Faustino (1930-62).
Amigos, tinham como traço comum (e algo clichê) o "pathos"
do poeta angustiado entre o
cosmos sangrento e a alma pura. Difícil não ficar embalado e
não ter amor juvenil pelas baladas lindas e vazias de Faustino,
"nihil aliud est quam fictio rethorica musicaque posita", nada além de ficção retórica musicada, uma citação de Dante
um dia usada para criticar
Faustino. Difícil não dizer algo
parecido sobre a prosa de Francis, para o bem e para o mal.
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