São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Super-homens nos botecos do Leblon

Compulsão retórica avacalhada e esnobismo dão o tom em romances de Francis, mas sua estilística é divertida

VINICIUS TORRES FREIRE
COLUNISTA DA FOLHA

Quase linda, mas feia. Era uma piada de tempos antigos da faculdade de filosofia da USP sobre os encantos equívocos de uma filósofa. Seria o caso do romance de Paulo Francis? Quase ótimo, mas ruim?
"Cabeça de Papel" (1977) é "quase lindo"; "Cabeça de Negro" (1979), o segundo da sua trilogia incompleta, é francamente ruim, um "thriller que se lê de uma sentada" e produzido para ser pop e vendável, segundo o próprio Francis.
"Cabeça de Papel" é uma sucessão de esquetes e de vidas paralelas encenada no Rio, entre meados dos anos 60 e 70, repleto de delírios intelectuais, confessionais e debates políticos entre os protagonistas, Hugo Mann e Paulo Hesse, as duas figuras sendo um só alter ego bifronte de Francis.
Mann é um jornalista que desembarca do trotskismo, empregado como crítico de cinema no jornal dirigido por Hesse, seu amigo de infância.
Hesse, filho de empresário casado com uma aristocrata carioca, doutor em administração por Yale, era o colunista "guru" da esquerda até a ditadura chegar. Logo depois do golpe, assume a fachada de defensor jornalístico-intelectual da "revolução capitalista liberal e centralizadora" de 1964. A fachada de Hesse é o eixo do parco enredo do romance.
O livro é costurado pelos vomitórios e memórias de Mann e Hesse. Pelas suas regressões digressivas e sentimentais sobre o Rio dos anos 40 e 50. Pelo jorro de tiradas esculhambativas, irônicas, crípticas e permeadas de citações sobre pessoas, política e cultura. Pelas explicações que os dois fornecem sobre a história universal, em particular sobre o destino de centro e periferia mundiais em tempo de Guerra Fria.
De permeio, há retratos de jornalistas, donos de jornal, da vida nos jornais, de um e outro aristocrata, artistas, intelectuais de bar, da "mulher carioca", de ricos americanos integrados ao ambiente local. Enfim, da elite do provincianismo charmoso de Cosme Velho, Ipanema, Leblon e arredores, de suas festas e bandalheiras.
Mas, raridade em romances e na arte brasileira, cada vez mais adepta do pauperismo, o livro trata de gente rica; é um memorial vívido dessa elite carioca que desapareceu.
Mas "Cabeça de Papel" é um romance? O livro é feito de remendos da idéia que Francis fazia do modernismo: fluxos de consciência; niilismo desesperado diante da mera aparência de ordem e sentido da realidade; fim da narrativa linear.
No pior, o livro tem algo de romance de espionagem e de Graham Greene aguado, no que evidencia um ranço ridículo de certos jornalistas e escritores que ficaram adultos no início da Guerra Fria -pessoas para quem era sofisticada (adjetivo já em si ridículo) a pose de perceber conspirações e espiões por toda parte.
Os tipos de Francis, pois não são bem personagens, parecem quase todos marionetes risíveis, estereótipos de sua origem social e classe, ou títeres da política e de poderes globais. Mas os fios que movem os bonecos são grossos, visíveis; a encenação é exagerada.
Epifanias e clarividência ficam restritas a figuras além do bem e do mal, como os quase sempre oniscientes Hesse e Mann. Os protagonistas têm a moral de senhores, super-homens nietzscheanos de fancaria que cafungam num bar do Leblon a rir do criouléu.
O conjunto dos materiais artísticos de Francis poderia dar samba, mas a compulsão retórica prejudica a carpintaria romanesca de "Cabeça de Papel". O livro é desconjuntado pela "vontade de poder falar" sobre tudo, evidenciada no esnobismo ingênuo e provinciano das digressões senhoriais de Mann e Hesse. Parece uma colagem de ensaios superficiais, bons retratos e do jornalismo de espetáculo típico de Francis.
Mas o ponto forte de Francis, porém mal aproveitado, é ainda essa mesma verborragia estruturada, a estilística da esculhambação, a retórica avacalhada e agressiva, em si uma crítica da logorréia pomposa e da desconversa brasileiras. Seu fraco: o desamor por forma e estrutura, reflexo de seus empirismos, suas leituras por vezes rasas de grandes idéias, seu desgosto exagerado pela teoria.
Mas a leitura de Francis sempre é uma diversão. Causa impressão parecida à dos poemas de Mário Faustino (1930-62). Amigos, tinham como traço comum (e algo clichê) o "pathos" do poeta angustiado entre o cosmos sangrento e a alma pura. Difícil não ficar embalado e não ter amor juvenil pelas baladas lindas e vazias de Faustino, "nihil aliud est quam fictio rethorica musicaque posita", nada além de ficção retórica musicada, uma citação de Dante um dia usada para criticar Faustino. Difícil não dizer algo parecido sobre a prosa de Francis, para o bem e para o mal.


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