São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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+ Sociedade

Quem cuida das crinças?

Em novo livro, a historiadora do feminismo Yvonne Knibiehler acusa o movimento de negligenciar o papel da maternidade

18.dez.2003/Reuters/China Photo
Trabalhador limpa cartaz publicitário de cosméticos em Hangzhou, na China


DA REDAÇÃO
Enquanto o movimento feminista na França se preocupa com o significado simbólico e as conseqüências práticas do desempenho da candidata socialista Ségolène Royal, que concorre à Presidência em 22 de abril, o novo livro de uma importante historiadora do feminismo chama a atenção para um assunto mais prosaico -a maternidade. Yvonne Knibiehler, que, desde 1984, é professora emérita da Universidade de Provence -onde dirigiu a unidade de "história da família"-, acaba de lançar "Qui Gardera Les Enfants?" (Quem Cuidará das Crianças?, Calmann-Lévy, 320 págs., 18, R$ 50). Nesse livro, Knibiehler não se prende a histórias como a de Simone Veil [ministra da Saúde que elaborou a lei que despenalizou na França a interrupção voluntária da gravidez], retrocedendo às histórias de sua mãe e de suas avós para repensar as relações de gênero a serem desejadas pelas feministas do século 21.  

PERGUNTA - A sra. afirma que o feminismo errou de caminho ao decidir ignorar a maternidade. De fato, nos anos 1970 não era muito politicamente correto ter filhos quando se era militante feminista... YVONNE KNIBIEHLER - Não exageremos! Houve, sim, algumas intelectuais dessa época que defenderam a maternidade. Mas elas o faziam colocando-se ao lado do corpo. Elas louvavam a beleza da gravidez, do parto. Pessoalmente, não achei muito belo estar grávida e dar à luz. Em contrapartida, achei milagroso o encontro com aquele ser pequenino que, desde as primeiras horas de vida, exprime o quanto é humano. Quanto a esse aspecto, discordei por muito tempo de Simone de Beauvoir [1908-86], que, em "O Segundo Sexo", definiu a maternidade como obstáculo à vocação humana de transcendência. Sou uma fêmea mamífera, é verdade, mas não sou um bicho. E minha relação com as crianças que ponho no mundo é feita também de inteligência, e é precisamente isso que abre a possibilidade de uma superação, de uma transcendência. Foi isso o que, em seguida, permitiu que eu me reconciliasse com Beauvoir, que se dá conta perfeitamente dessa possibilidade: a mulher, escreve, "não pode concordar em dar vida a não ser que a vida tenha um sentido; ela não poderia tentar ser mãe sem procurar exercer um papel na vida econômica, política e social".

PERGUNTA - De um lado as mães, de outro as feministas -ao tentar juntar as duas, a sra. com freqüência teve "o sentimento de estar sentada entre duas cadeiras". Mas sua trajetória de historiadora apenas reforçou sua convicção. KNIBIEHLER - Na condição de feminista da segunda onda, é verdade que fui marginalizada e contestada. Por quê? Porque, ao mesmo tempo em que apoiava a luta das militantes relativa à sexualidade, ao domínio da fecundidade, ao poder ou ao trabalho, estava convencida de que a maternidade continuaria a ser um elemento central da identidade feminina. Eu não podia me contentar com essa injunção implícita: "Seja mãe e fique calada". Minha formação de historiadora assim como minha própria sensibilidade me permitiam afirmar que a maternidade não era apenas um desabrochamento narcísico, um júbilo pessoal. Era também, e na mesma medida, uma função social. E eu estava convencida de que, ao ignorar essa função social, ignorava-se a metade, pelo menos, das realidades maternas. Desde então, os resultados de minhas pesquisas apenas reforçaram essa certeza. O feminismo precisa antes de mais nada repensar a maternidade. Todo o resto lhe será dado como acréscimo.

PERGUNTA - A sra. escreve que o feminismo sofre de uma "fraqueza congênita": a transmissão da identidade sexual é muito mais difícil para as mulheres do que é para os homens. A que se deve essa diferença? KNIBIEHLER - É relativamente fácil para um pai ensinar seu filho a tornar-se homem, porque isso coloca em ação apenas seus respectivos egos. Entre mãe e filha, porém, a transmissão coloca em jogo a própria vocação da espécie humana. O que uma mãe ensina a sua filha é que seu corpo inteiro está profundamente engajado na reprodução da espécie. Em outras palavras, está engajado num campo que beira o sagrado e que não conseguimos laicizar por completo. Os médicos podem ter explicado o processo de concepção, gestação e parto nos mínimos detalhes, mas o investimento no nascimento humano é tão grande que ele ainda é sagrado, e, com ele, é sagrada a mãe. Ora, se quero criar minha filha como um ser inteligente e culto, eu posso fazê-lo. Mas não sei transmitir o que existe em mim que exige a maternidade. Isso não pode ser transmitido senão pelo modelo, e esse modelo se impõe hoje de maneira menos evidente e menos natural do que no passado.

PERGUNTA - Mais de 30 anos após a Lei Veil, na França, que autoriza a prática do aborto, as mulheres realmente se apropriaram do domínio sobre sua própria fecundidade? KNIBIEHLER - Que a liberdade de dar à luz ou não a um filho passe a ser inscrita na lei é evidentemente algo de importância capital no plano simbólico. Mas essa liberdade jurídica ficará no plano formal se não existir a liberdade psicológica. Tome-se o exemplo da Holanda: é o país que tem a lei mais liberal em matéria de aborto e, ao mesmo tempo, o que tem o menor índice de abortos do mundo. Isso é prova de que as duas coisas não são contraditórias. Na França, pelo contrário, o número de IVGs (interrupções voluntárias de gravidez) continua a ser alto (13 ou 14 em cada mil mulheres em idade reprodutiva). Por quê? Porque não se diz às mulheres suficientemente que o aborto também é um sofrimento físico e moral. Enquanto a IVG continuar a ser vista pelas mulheres como símbolo de libertação, elas a sofrerão sem protestar, por mais desagradável que seja. O mesmo se aplica à contracepção. Os produtos dos quais as mulheres precisam para controlar sua fecundidade são fabricados por multinacionais dirigidas por homens, que se preocupam muito mais com os lucros sobre esses produtos do que com a libertação das mulheres. Enquanto isso não mudar, as feministas não poderão gabar-se de ter conquistado o controle sobre sua fecundidade.

PERGUNTA - Ainda hoje, a maioria esmagadora das mães que trabalham fora de casa enfrenta dificuldades grandes para conciliar suas responsabilidades profissionais e maternas. A novidade é que hoje elas falam do assunto. Estaremos assistindo ao surgimento de uma terceira onda de feminismo, que vai finalmente tentar aliar a igualdade à maternidade? KNIBIEHLER - Se esse é o caso, veremos como ele se desenvolve. O que espero é que aquelas -e aqueles- que se disserem feministas no futuro compreendam que é preciso, sim, ajudar as mulheres a não ser mães quando elas não querem ser, mas que também é preciso ajudá-las quando elas desejam ter filhos. Isso deve obrigatoriamente passar pela divisão igualitária das tarefas dos pais? Acredito que não. Talvez tenha havido um tempo em que as mulheres pensaram que tudo seria dividido, mas elas já perderam essa ilusão, mesmo porque as mães continuam a se dedicar aos filhos mais que os pais e porque sacrificar-se demais cuidando dos filhos com freqüência constitui uma privação para elas. Será preciso que as gerações jovens consigam resolver essa quadratura do círculo de que hoje padecem todos, tanto pais quanto filhos. Não é por acaso que os candidatos presidenciais, na França, não param de prometer mais creches e mais ajuda aos pais que trabalham.

PERGUNTA - Nesse contexto, como a sra. vê a candidatura de Ségolène Royal ao mais alto cargo do Estado? KNIBIEHLER - O fato de uma mulher que tem quatro filhos e que nunca escondeu o interesse que nutre pela função materna ser candidata numa eleição presidencial é prova indiscutível de uma evolução das mentalidades. Mas esse avanço é uma faca de dois gumes. Se Royal for eleita, isso irá assegurar às mulheres seu valor no campo político. Mas, se ela for derrotada, contrariamente ao que acontece com os homens, haverá o risco de que se conclua que o gênero feminino por inteiro é inepto em política.

PERGUNTA - Qual seria hoje sua definição do feminismo? KNIBIEHLER - O feminismo é a outra face -por tempo demais escondida- do humanismo, uma doutrina que prega o desabrochamento pleno da pessoa humana. Pois a pessoa humana é sexuada, e o que permite o desabrochamento e a realização de um sujeito do gênero masculino nem sempre basta para um sujeito do gênero feminino. Constatamos, além disso, que a dominação masculina, por razões antropológicas, não parou de estar presente ao longo de toda a história. Ela se desloca sempre que isso se torna preciso, mas nunca se apaga. A partir do momento em que uma mulher tem acesso a uma candidatura política de alto nível, será que isso não significa que o poder já está em outra parte e que a dominação masculina se refugiou essencialmente no campo econômico? Não devemos nutrir ilusões: o feminismo não suprimiu a dominação masculina nem mesmo a atenuou muito. Apenas a obrigou a mudar de lugar. É por isso que esse movimento político é eterno e terá por função, sempre, limitar as desigualdades e as injustiças que a dominação masculina produz. Dominação que, da parte dos homens, com freqüência é inconsciente e raramente é proposital, mas que nem por isso é menos permanente.


Este texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain .
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