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+ cultura
A morte da morte
Robert Spaemann
especial para a Folha
Mais uma vez, uma matança em grande escala ocorreu, desta vez em uma terra que,
diz-se, teria um dia abrigado o Paraíso
-o vale entre os rios Tigre e Eufrates. A
matança de hoje não é pior do que os incontáveis massacres da história, talvez seja até mais comedida. Algumas pessoas afirmam que ela foi necessária para evitar
futuras matanças. Em todo o caso, o ato de matar o
próximo de forma consciente, bem como o de cometer suicídio, é o privilégio triste e solitário dos seres humanos.
Pode-se supor com legitimidade que isso ocorre
porque os seres humanos são os únicos que compreendem a morte -tanto a dos outros quanto a sua
própria. Todos sabemos que morreremos um dia.
"Você é um ser dentre muitos/ Somente você se atém à
Beleza/ E sabe: você deve partir", escreveu o poeta Reiner Kunze. Essa consciência está presente em todos os
momentos de nossa vida. "Media in vita in morte sumus", no esplendor da vida, estamos cercados pela
morte, dizia uma canção medieval. Heidegger fez com
que a consciência da morte fosse determinante para a
compreensão do significado da vida.
A morte isola cada indivíduo, porque não existe algo
como a morte coletiva. Todos morrem sozinhos.
Aqueles que se dão conta disso acabam ficando tentados a negar qualquer significado à conduta humana;
parece que, no final das contas, tudo foi em vão, porque ao morrer deixamos a sociedade e a sociedade nos
deixa. Por outro lado, apenas a consciência de nossa
mortalidade torna a nossa existência preciosa. Se não
morrêssemos, tudo perderia o sentido. Tudo o que fazemos hoje, poderíamos deixar para amanhã.
"Você se atém à beleza": essa é a outra característica
que o poema de Kunze atribui à humanidade. A noção
de beleza está intimamente ligada à consciência da
morte. O significado da beleza não provém de sua importância para nossa sobrevivência biológica ou de
seu uso para outras pessoas, que também devem morrer. O que chamamos de belo tem sentido em si. Pode
representar gestos e atitudes humanas, mesmo se forem vãos ou desperdiçados nas pessoas erradas. A beleza resiste ao tumulto do absurdo. Para fiéis religiosos, como já dizia Platão, a beleza é um antegozo daquilo que sobrevive à morte.
Como a sociedade lida com a morte? Depois da morte, a pessoa deixa de pertencer à sociedade. Um Estado
pode ameaçar de morte, mas, como muitos regimes
totalitários aprenderam, ninguém é mais forte e possivelmente mais perigoso do que aqueles que superaram o medo da morte. A ameaça de morte é uma arma
poderosa. O fato de ter que governar com base nessa
ameaça é sempre uma derrota.
A cultura ritualizada da morte e dos funerais na antiga tradição européia foi uma experiência na qual a sociedade estava consciente de seus limites. Ao envolver
a morte em rituais, a sociedade tornou o seu autoquestionamento uma parte de si própria. Essa atitude tem
uma dimensão religiosa necessária e que legitimou a
sociedade. Ao reconhecer que é finita, a sociedade poderia se considerar também aprovada por Deus.
A crença na imortalidade tornou relativa a oposição
entre a vida e a morte. Os mortais consideram a morte
uma passagem para a vida real, da mesma forma como uma lagarta consideraria uma borboleta. Como as
palavras gravadas em uma espada de execução em
Munster expressam: "Ao levantar esta espada, desejo
vida eterna ao pobre pecador".
Nossa época moderna -ateísta- considera que o
contraste entre a vida e a morte seja algo absoluto.
Buscamos alguns paliativos, mas eles são ineficazes.
"Minha vida continua na vida de meus filhos", dizemos, mas para um indivíduo essa é uma frase vazia.
Lutamos obstinadamente para prolongar a vida, apenas para descobrir que não podemos ganhar esta batalha e nos tornamos incapazes de criar rituais autênticos para acompanhar o fim de nossa existência.
Por não terem um senso de limites, nossas sociedades lutam para eliminar a morte de nossa consciência.
Cada vez mais, a morte acontece em um quarto escondido de hospital. A morte é suprimida socialmente,
mas a consequência é que o medo da morte em cada
indivíduo aumenta ainda mais. A maioria das pessoas
hoje encara a morte sem nunca ter testemunhado a
morte de outra pessoa!
Em seguida, surge uma vontade de eliminar discretamente aqueles que não podem mais ser considerados parte do mundo social. A Holanda, com sua lei de
eutanásia, não é condenada internacionalmente; de
fato, seus "médicos-assassinos" se consideram vanguardistas. De repente, tais assassinatos não ocorrem
tão rapidamente. A definição da morte como "morte
cerebral" permite que pessoas que respiram sejam
consideradas mortas e que o processo da morte seja
eliminado para que se explorem os mortos como depósitos de peças de reposição para os vivos. A morte
não ocorre mais no final do processo de agonia, mas
sim -por decreto de uma comissão de Harvard- no
início dele.
O costume judaico-cristão de enterrar os mortos está sendo rapidamente substituído não pelo ritual de
uma pira indiana, mas pelo crematório, isto é, a destruição de um corpo por equipamentos de alta temperatura, um procedimento do qual o público é excluído. Cada vez mais pessoas acreditam estar fazendo
um favor a seus filhos ao se deixarem enterrar anonimamente, "debaixo da relva verde", para poupá-los
dos custos do funeral e da manutenção de um túmulo.
A mais antiga distinção do Homo sapiens -o ritual
do enterro dos mortos- está desaparecendo.
Robert Spaemann é professor de filosofia na Universidade de Munique e na Universidade de Salzburg. Copyright: Project Syndicate.
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