São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros Coletânea reúne cinco estudos alquímicos do psicólogo suíço e completa o lançamento no Brasil de suas "Obras Completas" A alquimia particular de Jung
Caio Caramico Soares
As experiências dos alquimistas
eram minhas experiências, e o
mundo deles era, em certo sentido, o meu. Para mim, isso foi naturalmente uma experiência ideal, uma
vez que percebi a conexão histórica da
psicologia do inconsciente." Assim Carl
Gustav Jung relata, em sua autobiografia,
o impacto da descoberta da antiga "arte"
da transmutação dos metais. Alguns dos
seus principais ensaios sobre o tema foram reunidos em "Estudos Alquímicos",
livro que conclui a publicação brasileira,
pela Vozes, das "Obras Completas" do
psicólogo suíço (a editora também acaba
de lançar o terceiro volume das "Cartas"
do autor).
No primeiro dos cinco estudos ali
compilados (a maior parte escrita entre
1937 e 1945), Jung (1875-1961) comenta
um livro cuja leitura, em 1928, foi o marco de seu interesse pela alquimia: "O Segredo da Flor de Ouro", tratado alquímico chinês impresso no século 18, mas baseado em ensinamentos orais que teriam
sido transmitidos pelo mestre Lu-Tzu,
no século 8º de nossa era.
Jung aponta similaridades entre conceitos desse tratado, como o de "movimento circular da luz", e as "mandalas"
(círculos, em sânscrito), que são símbolo
da reintegração da personalidade, de
ocorrência frequente na atividade mental de pacientes neuróticos e psicóticos. E
é de similaridades dessa ordem que boa
parte dos demais textos é constituída.
A ruptura com Sigmund Freud, consumada em 1913, implicou para Jung uma
grave crise pessoal e o afastamento do establishment científico. Esse período, que
vai até aproximadamente 1919, foi marcado pelo que ele chamou de "confronto
com o inconsciente": uma imersão irrestrita -que mais tarde ele converteria na
técnica da imaginação ativa- numa torrente de sonhos e visões bizarras. A traumática desavença com o mestre vienense
não punha em risco apenas o prestígio e
a carreira profissional de Jung; por mais
irônico (ou previsível) que fosse, um dos
mais inventivos desbravadores modernos da esquizofrenia parecia pessoalmente ameaçado de um naufrágio sem
volta no "Hades" da loucura.
É curioso que Jung se refira a um estado de "flutuação" tanto na autobiografia,
ao falar de sua condição pessoal na época, quanto em "Estudos Alquímicos", ao
comentar a falta de "respaldo histórico"
de sua psicologia até a descoberta da
analogia entre o imaginário alquímico e
o que brotava "espontaneamente" em si
mesmo e em seus pacientes.
Parafraseando uma das mais importantes expressões alquímicas ("solve et
coagula"), o encontro com a "Grande
Arte" foi para Jung o meio de coagular o
que estava "dissolvido": o seu bem-estar
anímico e a convicção de que estava certo, no plano teórico, em apostar na existência de um inconsciente coletivo
-que seria a única explicação possível,
afora os casos de difusão cultural concreta, para toda coincidência de imagens
distantes no tempo e no espaço.
Paradoxalmente, como vemos, esse
alegado "respaldo histórico" da alquimia
se traduz, na verdade, numa negação da
história, ou seja, das múltiplas, discretas
e incomensuráveis "histórias" culturais
dos diferentes povos e civilizações. O leitor não espere encontrar neste livro, e em
praticamente tudo o mais que Jung escreveu a respeito da alquimia, explanações pormenorizadas, sistemáticas e
contextualizadas, em termos culturais,
políticos ou biográficos.
Esse vasto e complexo fenômeno cultural que foram as alquimias -no plural- chinesa, indiana, árabe, latina etc.,
bem como a miríade de técnicas, postulados, usos e abusos a elas associada, são
"sublimados" em uma síntese teórica
marcadamente abstrata e idiossincrática, se bem que densa.
Tal densidade, aliás, frustrará também
quem se aproxime da obra à espera de
um "caminho de Santiago" de narrativas
mastigadas ou de "revelações" do gênero
"só está perdido quem não quer" (no caso, não emagrecer, mas adquirir as benesses dos céus).
Jung, até pelo seu esforço de fazer jus à
complexidade simbólica dos tratados de
um Paracelso (tema de um dos ensaios),
presta grande atenção aos volteios de linguagem e riqueza de termos com os
quais os alquimistas protegiam na "escuridão" os segredos de seu trabalho. Aqui,
uma vez mais, o modo de escrever como
que "assimila" seu objeto. Os textos de
Jung se convertem em uma réplica da ritualística alquímica que eles descrevem:
a afirmação, por exemplo, de que o deus
alquímico Mercúrio é um símbolo do inconsciente constitui, em seu método de
demonstração, o ponto de partida e de
chegada, intermediados por considerações "empíricas" (listagem e análise de
múltiplos fragmentos textuais), num
processo tão "circular" quanto as mandalas e os esforços de conversão, no laboratório, do (metal) mercúrio "vulgar" no
seu equivalente "nobre".
Estudos Alquímicos 422 págs., R$ 47,00 de Carl Gustav Jung. Editora Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/24/ 2233-9000). Texto Anterior: + filosofia: A aliança estratégica de Sloterdijk Próximo Texto: A redescoberta do palco e da criação Índice |
|