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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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Ponto de fuga

O pássaro da floresta

"Quando eu ouço Wagner, fico com vontade de invadir a Polônia", disse Woody Allen. "Enquanto o capricho de alguns homens fizer lealmente degolar milhares de nossos irmãos, a parte do gênero humano consagrada ao heroísmo será o que de mais horrendo existe na natureza humana", escreveu Voltaire. A ópera "Siegfried", de Wagner, é a mais heróica, a mais positiva, a menos angustiada de toda a "Tetralogia" concebida pelo compositor. O conjunto forma um mundo suicida que se extinguirá, corroído por dentro, em "O Crepúsculo dos Deuses". Mas "Siegfried" é o momento luminoso, e tremendo também, em que os valores instintivos da força, do heroísmo e das armas, em que os poderes de uma raça superior, em pura comunhão com a natureza, ignoram o medo e matam quem merece ser morto.
Por sorte, "Siegfrid" é isso, mas não apenas. Sua complexidade de sentidos, seu cintilante tecido musical abriram o Festival de Ópera do Amazonas. No ano passado, "A Valquíria" deixou uma sensação eufórica de milagre: era possível montar Wagner em meio à floresta equatorial, num teatro pequeno, com um elenco brasileiro predominante e grande qualidade artística. Graças ao maestro Fernando Malheiro, atento como ninguém às qualidades dos artistas locais, o milagre se repetiu. O impacto de "A Valquíria" permanece inigualável; "Siegfried" demonstra que o projeto meio doido de levar Wagner a Manaus se afirma e que é possível esperar uma "Tetralogia" completa.

Letras - A professora ensinou: quem quisesse escrever direito, que lesse os cronistas, Rubem Braga, por exemplo. A editora José Olympio lança a 19ª edição de "Elenco de Cronistas Modernos", uma antologia que demonstra a lição da professora. Todos os autores, ali, nasceram faz tempo, alguns há mais de cem anos. Todos têm um jeito solto com as palavras, uma delicadeza simples e cotidiana. Mesmo Clarice Lispector, às vezes empregando por demais elipses que sublinham intenções profundas, atinge um estado de graça perfeito em "Macacos", em que conta a morte de Lisette, saguizinha (a crônica não diz se era sagui mesmo, mas devia ser) suave e delicada, com expressões de gente.
Além dela, Drummond, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, nessa coletânea tão bem escolhida, evitam os modos dramáticos ou sentimentais, qualquer eloquência, qualquer vulgaridade, qualquer jargão da moda, qualquer palavra mais sonora ou esdrúxula. Eles possuem a elegância do natural, que é a mais difícil de todas, o sorriso e a melancolia em medida discreta e mais verdadeira que qualquer lágrima ou gargalhada.
Dona Gilda, a professora, tinha muita razão: esses cronistas mostram o caminho invisível da boa escrita. Não transmitem o talento, que isso é segredo deles, mas oferecem, o que já é muito, o exemplo da modéstia, superior a qualquer grandeza.

Alien - Lawrence Kasdan, diretor de "O Turista Acidental", assina agora a adaptação para o cinema do mais recente livro de Stephen King, "O Apanhador de Sonhos". É fácil dizer que o filme só vale por sua primeira parte. Ela possui, de fato, a força dos sonhos. Mas contém muito humor, em meio aos horrores das situações. Esse humor persiste até o fim, inda mais forte nos momentos em que o diretor parece não acreditar naquilo que está fazendo. O final se afunila para uma piadinha infame, ironia do cineasta em relação a sua obra.

Laços - O velho tema do triângulo amoroso foi reavivado pelo filme "Por um Sentido na Vida", de Miguel Arteta, estrelado por Jennifer Aniston. Num dia-a-dia sem horizontes, a paixão, que deveria ser libertadora, provoca acontecimentos infames e sórdidos. Mais recente, "Marie-Jo e Seus Dois Amores", de Robert Guédiguian, se concentra também na impossibilidade de uma dupla paixão. O cinema de Guédiguian brota da cidade de Marselha, no mundo ensolarado do Mediterrâneo. O tom é de franqueza luminosa. Evita ambiguidades para melhor fazer surgir o mistério dos afetos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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