São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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Ponto de Fuga

Velhas guerras


As artes de Brasil e Argentina fizeram-se lado a lado, voltadas para a Europa, sem espiar, nem com o rabo dos olhos, aquilo que o vizinho inventava; os resultados foram muito diferentes

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires expõe "As Armas da Pintura - A Nação em Construção (1852-1870)". A mostra centra-se nos conflitos militares da história Argentina. No Brasil, os artistas também fixaram episódios desse gênero. Porém os dois universos são muito distintos.
Em primeiro lugar, nada indica qualquer contato entre eles, a não ser o caso fortuito de Jean Léon Pallière [1823-87], que nasceu no Brasil, formou-se pela Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, fixou-se em Buenos Aires, mas não teceu laços entre os dois países.
As artes de ambas as nações fizeram-se lado a lado, voltadas para a Europa, sem espiar, nem com o rabo dos olhos, para aquilo que o vizinho andava inventando. Os resultados também foram muito diferentes. O Brasil imperial fez importante investimento nas artes. Muitos artistas, formados pela Academia de Belas Artes do Rio, eram enviados para aperfeiçoarem-se na Europa.
Esperava-se desses talentos nativos uma exaltação de episódios pátrios, antigos ou contemporâneos. Eles criaram então quadros monumentais, com dezenas de metros quadrados. Nenhum descrevia de fato os episódios: empregavam a eloqüência visual para fabricar o imaginário da história.

Amplidões
"A Batalha de Avaí", de Pedro Américo, está no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Mede mais ou menos 6 metros por 10 metros. Mostra um redemoinho unindo céu e terra que arrasta os homens.
Não é mais a batalha singular, atropelada que foi pela guerra genérica: Pedro Américo quis ultrapassar o combate circunscrito para conceber uma humanidade inteira em sua ferocidade coletiva, tomada pelo delírio da fúria militar e guerreira. Figurou-se bem no meio da cena, como soldado raso, o único que ostenta uma baioneta manchada de sangue.
Fita-nos fixamente. Está no transe de um desvario: à volta dele gravita o caos.
"A Passagem de Humaitá", de Victor Meirelles [1832-1903], no Museu Histórico Nacional do Rio, é outra tela imensa, em que tudo se resume a manchas escuras e luzes avermelhadas que emergem, aqui, ali: Gonzaga Duque falou de Turner a respeito dessa obra.

Ângulo
Na Argentina, as pinturas dos combates tendem para a crônica. São telas pequenas que põem em situação alguns poucos personagens. Mas as panorâmicas dos combates tiveram um supremo intérprete, Cándido López, estupendo mago de um mundo microscópico.

Minúcia
Cándido López [1840-1902] foi o mestre argentino das batalhas. Pintou em pequenos painéis, longos, de mais ou menos 1 metro por 40 centímetros. López era militar, perdeu a mão direita nos combates e teve que aprender a pintar com a esquerda. Freqüentou alguns mestres, não obteve uma bolsa que solicitou para aperfeiçoar-se na Europa.
Expôs uma única vez, e os organizadores dessa mostra mencionaram, na apresentação, que se tratava apenas de ilustrações feitas "com escrupulosa severidade histórica", mas que "não se apresentam com pretensões artísticas".
Foi, porém, um criador de espantosa originalidade. Há nele algo do que se costuma chamar de arte ingênua, pelo minucioso inventário dos personagens e pela estranheza da escala.
No entanto transfigura tudo o que representa por um sentido finíssimo das gradações de luz, pelo delicado sentimento atmosférico, pelos maravilhosos acordes cromáticos. Nada tem dos saberes ambiciosos de um Américo ou de um Meirelles; encontrou outros, pessoais e primorosos.


jorgecoli@uol.com.br


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