São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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+ Música

FESTA E PROTESTO

MILES DAVIS, JIMI HENDRIX E TROPICÁLIA MERGULHAM NAS RAÍZES NEGRAS E INCORPORAM RUPTURA

LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

O espírito de inconformismo de maio de 1968 reflete-se na música ocidental também pela incorporação de novos materiais musicais -como a eletrônica e o ruído- e por interações explosivas de diferentes tradições musicais, numa contestação do papel do músico na sociedade de consumo. Enfim: o desemboque de tensões e comportamentos que vinham sendo represados desde o final da Segunda Guerra.
A canção popular deixa de ser apenas o xarope edulcorante das massas e assume o papel de construtora de um discurso crítico social e comportamental na mídia.
Em 1968, Bob Dylan sucedia Woody Guthrie, o poeta dos EUA rurais, transformando o folk numa lâmina afiada.
O rock and roll deixa de ser apenas mais um produto do showbiz da classe média urbana norte-americana e mergulha na incorporação estilística da música negra, por meio de figuras como Jimi Hendrix -que lança "Electric Ladyland" e coloca fogo na cena musical em Woodstock, em 1969.

Jazz, blues, rock
Retrospectivamente, nota-se que a grande influência e matriz musical ocidental pós-68 vem da "grande música negra norte-americana" (como denominava o Art Ensemble de Chicago). Pode-se dizer que o rock encontra sua identidade na sociedade norte-americana quando assume elementos da música negra, especialmente do blues.
No sentido contrário, o jazz vai buscar nos materiais do rock sua renovação, sendo Miles Davis e o LP "Bitches Brew", lançado em 1970, um de seus expoentes.
James Brown, chamado à TV americana para tentar apaziguar o ânimo dos negros após o assassinato de Luther King, é ainda hoje uma das vozes mais influentes nos jovens músicos que realizam fusões em torno do funk.
"Hair", o musical hippie estreado em 1967, e Janis Joplin também pagaram seu tributo ao gospel e ao estilo das cantoras negras desde Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Nina Simone até Aretha Franklin.
Outras fontes da música negra como o reggae e o dub continuam influentes na música, influenciando a eletrônica de pista, por exemplo.
O rock foi responsável por incorporar tendências de outras linguagens -criando a ópera-rock, que reaparece nos últimos anos travestida em musicais e espetáculos multimídia de gosto duvidoso-, assim como da música experimental européia e norte-americana, nas vozes de Frank Zappa.
Influenciado por Edgard Varèse, Zappa -que foi um dos músicos mais criativos do século- lançava o LP "Lumpy Gravy", disco inominável em seu hibridismo.
A música eletrônica também influenciou os Beatles em "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" e mais fortemente o "White Album", cheio de quebras de padrão em relação aos formatos da música industrial.
Eles buscaram ainda tradições não-ocidentais (Índia) em busca de renovação, assim como Stockhausen ampliou o universo sonoro e composicional recorrendo a fontes e formas musicais do Oriente, como em "Stimmung", por exemplo.
Luigi Nono representando a vertente engajada na música experimental compunha "Non Consumiamo Marx" (1969, para tape), debatendo-se por uma inserção política da música erudita de pesquisa, que, ao contrário, nunca abriu mão de seu status quo aristocrático.

O nosso Vietnã
Gilberto Mendes, sintonizado com os happenings de John Cage, compunha, em 1968, "Son et Lumière" [Som e Luz] para uma pianista-manequim e dois fotógrafos, numa critica premonitória do culto atual à moda. Bandas como Yes e Led Zeppelin nasciam, e o rock progressivo fazia uma síntese desse caldeirão que transbordava nos anos 1970.
No Brasil, também tínhamos o nosso Vietnã. A chamada força evolutiva da música popular se encontrava na encruzilhada entre o esgotamento de fórmulas no baticum da classe média ascendente e o embate da realidade política.
Certa parte da canção popular se lançava na crítica social, seja em vozes mais líricas, como Chico Buarque, ou mais explícitas, como Geraldo Vandré, estabelecendo um pêndulo que seria rompido pelo tropicalismo: o nosso 1968 musical. Ele refletia e acrescentava cor local ao espírito da época.
O LP "Tropicália, ou Panis et Circenses" representa muito bem esse caldeirão, essa feijoada sonora.
A tradição da música negra brasileira, no entanto, desempenhava um papel coadjuvante. Observe-se a lista de participantes e premiados dos festivais da época, em que se podia encontrar em segundo plano os nomes de Cartola, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, entre outros.
A renovação dessa tradição, representada pela influência da música negra norte-americana, com figura populares como Wilson Simonal e músicos como Erlon Chaves, que queria "mocotó", vai desembocar e ocupar espaço apenas a partir dos anos 1990, com a experiência urbana do hip hop e em inúmeras fusões de estilos.
Pode-se dizer que a grande força criativa na música popular desde os anos 1960, no Brasil, nos EUA e na Europa, se desenvolveu a partir da música negra, que continua se renovando e propondo novos formatos, oscilando entre o protesto e a festa.


LIVIO TRAGTENBERG é compositor. Neste mês estará à frente da estréia da Orquestra de Músicos das Ruas de Berlim, na Alemanha.


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