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+ Música
FESTA E PROTESTO
MILES DAVIS, JIMI HENDRIX E TROPICÁLIA MERGULHAM NAS RAÍZES NEGRAS
E INCORPORAM RUPTURA
LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
O espírito de inconformismo de maio
de 1968 reflete-se
na música ocidental também pela
incorporação de novos materiais musicais -como a eletrônica e o ruído- e por interações explosivas de diferentes tradições musicais, numa contestação do papel do músico na
sociedade de consumo.
Enfim: o desemboque de
tensões e comportamentos que
vinham sendo represados desde o final da Segunda Guerra.
A canção popular deixa de
ser apenas o xarope edulcorante das massas e assume o papel
de construtora de um discurso
crítico social e comportamental na mídia.
Em 1968, Bob Dylan sucedia
Woody Guthrie, o poeta dos
EUA rurais, transformando o
folk numa lâmina afiada.
O rock and roll deixa de ser
apenas mais um produto do
showbiz da classe média urbana norte-americana e mergulha na incorporação estilística
da música negra, por meio de
figuras como Jimi Hendrix
-que lança "Electric Ladyland" e coloca fogo na cena musical em Woodstock, em 1969.
Jazz, blues, rock
Retrospectivamente, nota-se
que a grande influência e matriz musical ocidental pós-68
vem da "grande música negra
norte-americana" (como denominava o Art Ensemble de Chicago). Pode-se dizer que o rock
encontra sua identidade na sociedade norte-americana
quando assume elementos da
música negra, especialmente
do blues.
No sentido contrário, o jazz
vai buscar nos materiais do
rock sua renovação, sendo Miles Davis e o LP "Bitches Brew",
lançado em 1970, um de seus
expoentes.
James Brown, chamado à TV
americana para tentar apaziguar o ânimo dos negros após o
assassinato de Luther King, é
ainda hoje uma das vozes mais
influentes nos jovens músicos
que realizam fusões em torno
do funk.
"Hair", o musical hippie estreado em 1967, e Janis Joplin
também pagaram seu tributo
ao gospel e ao estilo das cantoras negras desde Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Nina Simone até Aretha Franklin.
Outras fontes da música negra como o reggae e o dub continuam influentes na música,
influenciando a eletrônica de
pista, por exemplo.
O rock foi responsável por incorporar tendências de outras
linguagens -criando a ópera-rock, que reaparece nos últimos anos travestida em musicais e espetáculos multimídia de gosto duvidoso-, assim como da música experimental européia e norte-americana, nas
vozes de Frank Zappa.
Influenciado por Edgard Varèse, Zappa -que foi um dos
músicos mais criativos do século- lançava o LP "Lumpy
Gravy", disco inominável em
seu hibridismo.
A música eletrônica também
influenciou os Beatles em "Sgt.
Pepper's Lonely Hearts Club
Band" e mais fortemente o
"White Album", cheio de quebras de padrão em relação aos
formatos da música industrial.
Eles buscaram ainda tradições não-ocidentais (Índia) em
busca de renovação, assim como Stockhausen ampliou o
universo sonoro e composicional recorrendo a fontes e formas musicais do Oriente, como
em "Stimmung", por exemplo.
Luigi Nono representando a
vertente engajada na música
experimental compunha "Non
Consumiamo Marx" (1969, para tape), debatendo-se por uma
inserção política da música
erudita de pesquisa, que, ao
contrário, nunca abriu mão de
seu status quo aristocrático.
O nosso Vietnã
Gilberto Mendes, sintonizado com os happenings de John
Cage, compunha, em 1968,
"Son et Lumière" [Som e Luz]
para uma pianista-manequim e
dois fotógrafos, numa critica
premonitória do culto atual à
moda. Bandas como Yes e Led
Zeppelin nasciam, e o rock progressivo fazia uma síntese desse caldeirão que transbordava
nos anos 1970.
No Brasil, também tínhamos
o nosso Vietnã. A chamada força evolutiva da música popular
se encontrava na encruzilhada
entre o esgotamento de fórmulas no baticum da classe média
ascendente e o embate da realidade política.
Certa parte da canção popular se lançava na crítica social,
seja em vozes mais líricas, como Chico Buarque, ou mais explícitas, como Geraldo Vandré,
estabelecendo um pêndulo que
seria rompido pelo tropicalismo: o nosso 1968 musical. Ele
refletia e acrescentava cor local
ao espírito da época.
O LP "Tropicália, ou Panis et
Circenses" representa muito
bem esse caldeirão, essa feijoada sonora.
A tradição da música negra
brasileira, no entanto, desempenhava um papel coadjuvante. Observe-se a lista de participantes e premiados dos festivais da época, em que se podia
encontrar em segundo plano os
nomes de Cartola, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito,
entre outros.
A renovação dessa tradição,
representada pela influência da
música negra norte-americana,
com figura populares como
Wilson Simonal e músicos como Erlon Chaves, que queria
"mocotó", vai desembocar e
ocupar espaço apenas a partir
dos anos 1990, com a experiência urbana do hip hop e em inúmeras fusões de estilos.
Pode-se dizer que a grande
força criativa na música popular desde os anos 1960, no Brasil, nos EUA e na Europa, se desenvolveu a partir da música
negra, que continua se renovando e propondo novos formatos, oscilando entre o protesto e a festa.
LIVIO TRAGTENBERG é compositor. Neste mês
estará à frente da estréia da Orquestra de Músicos das Ruas de Berlim, na Alemanha.
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