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Ponto de Fuga
A força das missões
Abrams atribui a seu herói ambições de classe média para melhor transformar o mundo num palco
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
É
difícil descobrir qualquer
forma de arte nascida
dentro da televisão. Uma,
pelo menos, existe: a das séries.
Elas brotam de enxertos, cinematográficos para umas, teatrais para outros. Não se diluem nos capítulos diários das
novelas; crescem respondendo
a regras estritas que estimulam
a criação. São, muitas vezes,
curtos filmes intensos.
Não é raro que o cinema se
volte para elas, retomando-as.
"Missão: Impossível" é um desses casos. Foram três filmes em
uma década; o primeiro, dirigido por Brian de Palma, data de
1996; o segundo, por John
Woo, de 2000. O de agora, de
J.J. Abrams, torna mais intrincada a simbiose com a TV.
É a primeira vez que Abrams
dirige para o cinema; antes disso, foi o criador de "Felicity",
de "Lost", de "Alias" para a TV,
com enorme sucesso. "Missão:
Impossível 3" deriva de "Alias",
uma série constituída, ela própria, de missões impossíveis.
O século 19 criou as grandes
metrópoles industriais modernas, bastante assustadoras.
Com elas surgiu uma radical
relação de anonimato entre os
habitantes. As aparências exteriores são muito enganosas
nesse mundo indiferenciado,
uma situação que sugeriu à literatura e ao teatro, sobretudo
aqueles destinados ao grande
público, imaginarem seres capazes de disfarces prodigiosos.
Os mendigos de Dickens, "O
Corcunda", de Paul Féval, "O
Conde de Monte Cristo" [de
Alexandre Dumas], os grandes
detetives, começando por
Sherlock Holmes, enganavam a
todos com suas metamorfoses.
O início do século 20 criou
bandidos assim. O mais elegante deles deve ter sido Arsène
Lupin, de Maurice Leblanc.
"Missão: Impossível" se inscreve nessa tradição moderna e
já bem longa. No número dois,
John Woo certamente se inspirou em Lupin para sua ladra
oriental; citou mesmo "As
Aventuras de Arsène Lupin",
maravilhoso filme de Jacques
Becker (1957), com o colar escondido na banheira.
Nem todos os criminosos
eram elegantes. Nessa sociedade de simulacros inconfessados, apareceram terríveis mestres invisíveis do crime, senhores de intrincadas redes, com
agentes "metamórficos" infiltrados em todos os meios; Fantômas e Mabuse ficaram célebres. "Missão: Impossível"
atualiza esse passado; a de número três acrescenta um elemento crucial, importado diretamente de "Alias": a dupla vida, familiar e profissional, do
agente secreto.
Ao introduzir cenas de um
cotidiano "normal", vivido pelo
herói de dupla face, ao determinar um motivo ideológico
para o crime (o um se centrava
na corrupção, o dois em golpe
na indústria farmacêutica), sublinha o descompasso entre o
dia-a-dia honesto e as manipulações que as pessoas comuns
ignoram, vítimas da política e
do crime, os quais terminam
por se confundir.
Se o filme de Brian de Palma
mostrava a finura de um Hitchcock, se o de John Woo, com
sua câmera movimentando-se
por arabescos poéticos, concluía-se em melodrama, o de
Abrams, com formidáveis malabarismos narrativos, atribui a
seu herói ambições de classe
média para melhor transformar o mundo num palco de representações. A tal ponto que o
diretor se interessa menos pela
precisão técnica dos planos mirabolantes do que pelo lugar
onde eles se passam, cheios de
cor local e habitantes típicos.
Nada de frios cofres de segurança, tecnológicos e neutros:
velha fábrica em Berlim, ruas
de Roma com italianos gesticulando, salões no Vaticano ou
arranha-céus em Xangai.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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