São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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Ponto de Fuga

A força das missões

Abrams atribui a seu herói ambições de classe média para melhor transformar o mundo num palco

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil descobrir qualquer forma de arte nascida dentro da televisão. Uma, pelo menos, existe: a das séries. Elas brotam de enxertos, cinematográficos para umas, teatrais para outros. Não se diluem nos capítulos diários das novelas; crescem respondendo a regras estritas que estimulam a criação. São, muitas vezes, curtos filmes intensos. Não é raro que o cinema se volte para elas, retomando-as. "Missão: Impossível" é um desses casos. Foram três filmes em uma década; o primeiro, dirigido por Brian de Palma, data de 1996; o segundo, por John Woo, de 2000. O de agora, de J.J. Abrams, torna mais intrincada a simbiose com a TV. É a primeira vez que Abrams dirige para o cinema; antes disso, foi o criador de "Felicity", de "Lost", de "Alias" para a TV, com enorme sucesso. "Missão: Impossível 3" deriva de "Alias", uma série constituída, ela própria, de missões impossíveis. O século 19 criou as grandes metrópoles industriais modernas, bastante assustadoras. Com elas surgiu uma radical relação de anonimato entre os habitantes. As aparências exteriores são muito enganosas nesse mundo indiferenciado, uma situação que sugeriu à literatura e ao teatro, sobretudo aqueles destinados ao grande público, imaginarem seres capazes de disfarces prodigiosos. Os mendigos de Dickens, "O Corcunda", de Paul Féval, "O Conde de Monte Cristo" [de Alexandre Dumas], os grandes detetives, começando por Sherlock Holmes, enganavam a todos com suas metamorfoses. O início do século 20 criou bandidos assim. O mais elegante deles deve ter sido Arsène Lupin, de Maurice Leblanc. "Missão: Impossível" se inscreve nessa tradição moderna e já bem longa. No número dois, John Woo certamente se inspirou em Lupin para sua ladra oriental; citou mesmo "As Aventuras de Arsène Lupin", maravilhoso filme de Jacques Becker (1957), com o colar escondido na banheira. Nem todos os criminosos eram elegantes. Nessa sociedade de simulacros inconfessados, apareceram terríveis mestres invisíveis do crime, senhores de intrincadas redes, com agentes "metamórficos" infiltrados em todos os meios; Fantômas e Mabuse ficaram célebres. "Missão: Impossível" atualiza esse passado; a de número três acrescenta um elemento crucial, importado diretamente de "Alias": a dupla vida, familiar e profissional, do agente secreto. Ao introduzir cenas de um cotidiano "normal", vivido pelo herói de dupla face, ao determinar um motivo ideológico para o crime (o um se centrava na corrupção, o dois em golpe na indústria farmacêutica), sublinha o descompasso entre o dia-a-dia honesto e as manipulações que as pessoas comuns ignoram, vítimas da política e do crime, os quais terminam por se confundir. Se o filme de Brian de Palma mostrava a finura de um Hitchcock, se o de John Woo, com sua câmera movimentando-se por arabescos poéticos, concluía-se em melodrama, o de Abrams, com formidáveis malabarismos narrativos, atribui a seu herói ambições de classe média para melhor transformar o mundo num palco de representações. A tal ponto que o diretor se interessa menos pela precisão técnica dos planos mirabolantes do que pelo lugar onde eles se passam, cheios de cor local e habitantes típicos. Nada de frios cofres de segurança, tecnológicos e neutros: velha fábrica em Berlim, ruas de Roma com italianos gesticulando, salões no Vaticano ou arranha-céus em Xangai.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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