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Crise de identidade
Desconsideração pela diversidade cultural e lingüística, como a adoção
do português, está na raiz dos distúrbios que ocorrem em Timor Leste
KELLY CRISTIANE DA SILVA
DANIEL SCHROETER SIMIÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Timor Leste passa hoje
pela maior crise política desde a restauração de sua independência, em 2002. A
violência toma conta das ruas
da capital, Dili, e a população,
desesperada, pede abrigo em
igrejas ou busca segurança nas
montanhas.
O que de longe parece o caos,
de perto apresenta uma lógica
própria, construída em razão
dos acontecimentos políticos
dos últimos cinco anos, que foram, aos poucos, consolidando
tensões estruturais entre diferentes grupos da elite local.
A explicação mais recente
para o estopim dessa crise, um
conflito entre quadros das Forças Armadas, coloca o problema como um confronto étnico
entre grupos do leste (Firaku) e
do oeste (Kaladi). O problema
étnico, contudo, parece ser
apenas o idioma no qual se expressa, no caso das forças de
defesa, uma crise de reconhecimento mais profunda e que já
existia de forma latente.
Ensino religioso
No ano passado, durante 19
dias, milhares de timorenses
foram às ruas de Dili para protestar contra a decisão do Executivo de retirar o ensino religioso do currículo escolar. O
grupo formado em torno do
primeiro-ministro Mari Alkatiri -e que permaneceu durante
boa parte do período de ocupação indonésia fora do país- defendia claramente um projeto
laicizante para o Estado, opondo-se a grupos que permaneceram no país durante a ocupação
e que mantinham fortes vínculos com a Igreja Católica.
Podia-se ver, ali, uma forte
dose de ressentimento dos que
haviam permanecido no país
em relação aos que, voltando
agora, assumiam o Executivo e
desconsideravam os valores caros à população local.
Devemos ainda lembrar que
a escolha da língua portuguesa,
junto com o tétum, como idioma nacional e oficial, em 2001,
foi uma decisão fortemente criticada pela geração mais nova,
educada em indonésio no período de ocupação.
O português, idioma dominado pela diáspora timorense
em Portugal e Moçambique,
era falado por menos de 5% da
população do país, e sua escolha representava antes um projeto político de distanciamento
em relação à Austrália e à Indonésia do que uma pragmática
lingüística.
A adoção do português como
língua oficial fortaleceu as posições de poder dos grupos retornados das diásporas lusófonas
ao mesmo tempo em que alimentou o ressentimento daqueles que já se sentiam pouco
ou mal incorporados ao processo de construção do Estado independente. Assim, de símbolo
da resistência à ocupação indonésia, a língua portuguesa passou a representar a exclusão
política e moral de parte da população local.
Juízes reprovados
No início de 2005, outra crise
mexera com esses ressentimentos, dessa vez em relação
ao sistema de Justiça. O presidente do Tribunal de Recurso
(instância máxima do Judiciário), um retornado da diáspora
timorense em Portugal, se convenceu de que os juízes timorenses, em geral jovens formados em direito em universidades indonésias, não dominavam adequadamente as regras
de interpretação da lei.
Aplicando uma prova, reprovou a todos, destituindo-os da
função. A crise contribuiu para
opor os grupos em questão.
Esse conjunto de pequenos
conflitos entre diferentes setores das elites locais parece não
ter tido espaço adequado de resolução nos últimos anos e acabou voltando à tona com a crise
de hoje. Os surtos de violência
coletiva podem ser vistos, como em outros países do Sudeste Asiático, como um ritual político de afirmação da existência de projetos alternativos para a construção nacional -rituais de grupos em busca de reconhecimento social e político.
São mais bem explicados como o momento de visibilização
de tensões políticas que não encontram outros canais para serem equacionadas do que como
resultado da pobreza e da falta
de desenvolvimento local
-embora não haja dúvidas de
que o fator econômico seja lenha nessa fogueira.
A forma de gerir a construção
do Estado promovida pela
ONU e suas missões em Timor
Leste parece não ter dado lugar
a grupos com menor poder,
desconsiderando-os na definição de políticas e na formação
de sistemas e instituições estatais. Uma análise mais atenta
revela novas modalidades de
diferenciação social entre as
elites timorenses, basicamente
em torno de três fatores, a saber: a forma como participaram na resistência à ocupação
indonésia (permanecendo ou
não no país, e em que condições); a forma como fizeram ou
não parte do Estado colonial
português e do Estado indonésio, durante a ocupação; no caso dos retornados de diáspora,
o país que os acolheu.
Cada uma dessas posições
dialoga com hierarquias locais
(étnicas, por exemplo) na construção dos conflitos políticos.
E, nesse caso, a tecnologia de
gestão de conflitos do Ocidente
não dá conta de regular as tensões sociais emergentes.
Não se trata de dizer que a
crise atual seja de responsabilidade exclusiva da ONU ou do
governo timorense. Mas não
podemos deixar de notar que as
Nações Unidas potencializaram um grupo das elites locais
em detrimento de outros. A estabilidade produzida por esse
sistema é apenas aparente;
uma verdadeira ficção de paz.
KELLY CRISTIANE DA SILVA é antropóloga e
professora na Universidade de Brasília.
DANIEL SCHROETER SIMIÃO é antropólogo e
professor na Universidade Federal de Minas
Gerais. Ambos defenderam tese sobre Timor.
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