São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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Crise de identidade

Desconsideração pela diversidade cultural e lingüística, como a adoção do português, está na raiz dos distúrbios que ocorrem em Timor Leste

KELLY CRISTIANE DA SILVA
DANIEL SCHROETER SIMIÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Timor Leste passa hoje pela maior crise política desde a restauração de sua independência, em 2002. A violência toma conta das ruas da capital, Dili, e a população, desesperada, pede abrigo em igrejas ou busca segurança nas montanhas. O que de longe parece o caos, de perto apresenta uma lógica própria, construída em razão dos acontecimentos políticos dos últimos cinco anos, que foram, aos poucos, consolidando tensões estruturais entre diferentes grupos da elite local. A explicação mais recente para o estopim dessa crise, um conflito entre quadros das Forças Armadas, coloca o problema como um confronto étnico entre grupos do leste (Firaku) e do oeste (Kaladi). O problema étnico, contudo, parece ser apenas o idioma no qual se expressa, no caso das forças de defesa, uma crise de reconhecimento mais profunda e que já existia de forma latente.

Ensino religioso
No ano passado, durante 19 dias, milhares de timorenses foram às ruas de Dili para protestar contra a decisão do Executivo de retirar o ensino religioso do currículo escolar. O grupo formado em torno do primeiro-ministro Mari Alkatiri -e que permaneceu durante boa parte do período de ocupação indonésia fora do país- defendia claramente um projeto laicizante para o Estado, opondo-se a grupos que permaneceram no país durante a ocupação e que mantinham fortes vínculos com a Igreja Católica. Podia-se ver, ali, uma forte dose de ressentimento dos que haviam permanecido no país em relação aos que, voltando agora, assumiam o Executivo e desconsideravam os valores caros à população local. Devemos ainda lembrar que a escolha da língua portuguesa, junto com o tétum, como idioma nacional e oficial, em 2001, foi uma decisão fortemente criticada pela geração mais nova, educada em indonésio no período de ocupação. O português, idioma dominado pela diáspora timorense em Portugal e Moçambique, era falado por menos de 5% da população do país, e sua escolha representava antes um projeto político de distanciamento em relação à Austrália e à Indonésia do que uma pragmática lingüística. A adoção do português como língua oficial fortaleceu as posições de poder dos grupos retornados das diásporas lusófonas ao mesmo tempo em que alimentou o ressentimento daqueles que já se sentiam pouco ou mal incorporados ao processo de construção do Estado independente. Assim, de símbolo da resistência à ocupação indonésia, a língua portuguesa passou a representar a exclusão política e moral de parte da população local.

Juízes reprovados
No início de 2005, outra crise mexera com esses ressentimentos, dessa vez em relação ao sistema de Justiça. O presidente do Tribunal de Recurso (instância máxima do Judiciário), um retornado da diáspora timorense em Portugal, se convenceu de que os juízes timorenses, em geral jovens formados em direito em universidades indonésias, não dominavam adequadamente as regras de interpretação da lei. Aplicando uma prova, reprovou a todos, destituindo-os da função. A crise contribuiu para opor os grupos em questão. Esse conjunto de pequenos conflitos entre diferentes setores das elites locais parece não ter tido espaço adequado de resolução nos últimos anos e acabou voltando à tona com a crise de hoje. Os surtos de violência coletiva podem ser vistos, como em outros países do Sudeste Asiático, como um ritual político de afirmação da existência de projetos alternativos para a construção nacional -rituais de grupos em busca de reconhecimento social e político. São mais bem explicados como o momento de visibilização de tensões políticas que não encontram outros canais para serem equacionadas do que como resultado da pobreza e da falta de desenvolvimento local -embora não haja dúvidas de que o fator econômico seja lenha nessa fogueira. A forma de gerir a construção do Estado promovida pela ONU e suas missões em Timor Leste parece não ter dado lugar a grupos com menor poder, desconsiderando-os na definição de políticas e na formação de sistemas e instituições estatais. Uma análise mais atenta revela novas modalidades de diferenciação social entre as elites timorenses, basicamente em torno de três fatores, a saber: a forma como participaram na resistência à ocupação indonésia (permanecendo ou não no país, e em que condições); a forma como fizeram ou não parte do Estado colonial português e do Estado indonésio, durante a ocupação; no caso dos retornados de diáspora, o país que os acolheu. Cada uma dessas posições dialoga com hierarquias locais (étnicas, por exemplo) na construção dos conflitos políticos. E, nesse caso, a tecnologia de gestão de conflitos do Ocidente não dá conta de regular as tensões sociais emergentes. Não se trata de dizer que a crise atual seja de responsabilidade exclusiva da ONU ou do governo timorense. Mas não podemos deixar de notar que as Nações Unidas potencializaram um grupo das elites locais em detrimento de outros. A estabilidade produzida por esse sistema é apenas aparente; uma verdadeira ficção de paz.


KELLY CRISTIANE DA SILVA é antropóloga e professora na Universidade de Brasília. DANIEL SCHROETER SIMIÃO é antropólogo e professor na Universidade Federal de Minas Gerais. Ambos defenderam tese sobre Timor.


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