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+(l)ivros
O apocalipse da memória
Fernando Báez fala sobre
sua "História Universal
da Destruição
dos Livros",
que está saindo
no Brasil
FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
História Universal
da Destruição dos
Livros", do pesquisador venezuelano
Fernando Báez, é
um extensivo inventário dos
impedimentos, proibições, incêndios e catástrofes naturais
de que os livros foram objeto
desde o surgimento dos primeiros escritos, há mais de
5.000 anos, na Suméria.
Báez discorre sobre a censura no Egito Antigo, os "biblioclastas" da Grécia, os censores
de Roma, as condenações do
Santo Ofício e conduz a exposição até as queimas de livros durante o Holocausto e a preservação das obras na era do e-book e das bibliotecas virtuais.
"Não são os ignorantes que
destroem livros. São quase
sempre intelectuais", diz o autor. Há exemplos eloqüentes
em sua pesquisa, como a queima de um exemplar do "Dom
Quixote" encenada diante de
600 alunos por Vladimir Nabokov ou ainda a sugestão do filósofo David Hume de que se suprimissem todos os livros sobre metafísica.
Assessor da Unesco (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura), Báez esteve no Iraque para
avaliar as perdas no país depois
da invasão americana. Mais de
10 milhões de documentos e 1
milhão de livros foram destruídos desde 2003, entre os quais
tratados de Avicena e Averróis
e manuscritos de Omar Khayam. São relativos a essa experiência os trechos mais expressivos de seu estudo.
O levantamento desce a pormenores exaustivos, como os
tipos de ácidos que corroem o
papel ou os efeitos deletérios
causados pela traça cinza-prateada sobre as lombadas dos livros. Mas é pesquisa criteriosa,
apoiada em documentação primária e a primeira a reunir material tão farto sobre o tema. Na
entrevista a seguir, realizada
por e-mail, Báez dá mais detalhes sobre o trabalho.
Folha - O que significa dizer que os
livros não são destruídos como objetos físicos, mas como "vínculos de
memória"?
Fernando Báez - O livro não é
apenas um suporte. Na Antigüidade, os livros foram tabletas de argila, cascos de tartaruga, tábuas de madeira, papiros,
pergaminhos etc. Hoje um livro
pode ser um CD ou uma informação virtual. A destruição
ocorre contra o que contém o
livro, ou seja, contra a memória
que armazena e o que essa memória representa.
Folha - Quanto mais culto o meio,
diz o sr., maior o ímpeto para a destruição de livros. O que, em sua opinião, explica isso?
Báez - Uma das grandes surpresas da minha pesquisa foi a
descoberta de que não são os ignorantes os que destroem livros. São quase sempre intelectuais. Isso porque são os que
melhor conhecem os perigos
do livro. Shi Huan Di, o imperador chinês que ordenou a queima de livros em 213 a.C., o fez
porque um filósofo lhe propôs
queimar os volumes que punham em risco suas reformas.
Isso ainda acontece. Em Sarajevo, vimos como, no final do
século 20, se destruíam livros a
partir de instruções de intelectuais que apoiavam os sérvios.
Folha - Na Alemanha, os nazistas
pareciam criteriosos na escolha de
quais obras deveriam queimar, entre as quais havia textos de Freud,
Brecht e Thomas Mann. Como conciliar erudição e gesto obscurantista?
Báez - Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista,
era filólogo. Os homens que
queimaram livros em 10 de
maio de 1933 e durante os anos
seguintes, até 1945, na Alemanha, eram acadêmicos e estudantes notáveis. Isso confirma
o que digo no livro: os nazistas
tinham suas próprias obras,
que consideravam irrefutáveis,
e acreditavam que tudo o que
não ia ao encontro de suas teses
era falso e indigno.
Folha - Seu livro se propõe a fazer
uma "crônica" da destruição dos livros. Mas, depois de 12 anos às voltas com o assunto, o sr. considera
possível formulá-la?
Báez - Sim. Em quase todos os
casos, o fenômeno responde a
dois mitos: o da Fênix, segundo
o qual as sociedades e grupos
renascem das cinzas; e o de
Erostrato, segundo o qual
quem destrói pode perdurar no
tempo, já que pode impor sua
tese. Outro fator é o uso do fogo
na destruição: é um ritual purificatório. E não custa lembrar
que, na história da destruição
de livros, 60% das obras foram
perdidas pela ação do homem,
e, o resto, devido a acidentes e
catástrofes naturais.
Folha - O sr. cita Descartes, Hume,
Nabokov e até mesmo Platão como
exemplos de pensadores que destruíram livros. A atitude deles pode,
a seu ver, ser posta no mesmo plano
dos demais destruidores de livros?
Báez - A atitude dos grandes
intelectuais que queimam livros ou pedem a queima de livros implica intolerância, que é
um dos signos dos inquisidores.
O que separa Platão de Torquemada é sutil, mas óbvio: a
capacidade de execução. Se a
utopia de Platão tivesse funcionado, nenhuma biblioteca teria
podido incluir a maior parte
dos poetas, e eles possivelmente teriam sido relegados ao exílio e à morte. Os intelectuais
não podem ser julgados diferentemente do resto dos homens. Sua obra os compromete
ainda mais com a justiça.
Folha - Borges, no conto "O Congresso", afirmava que a cada tantos
séculos é preciso destruir a biblioteca de Alexandria. Como o sr. vê essa
afirmação?
Báez - Borges se referia ao mito
da Fênix: sugeria que a destruição dos livros serviria para preparar uma nova humanidade.
Foi o que também propôs Nathaniel Hawthorne em "O Holocausto do Mundo". Em "Farenheit 451", Ray Bradbury
descreve uma geração que
guarda na memória os livros
queimados para salvar a humanidade ao voltar a escrevê-los.
Folha - O sr. se mostra cético em relação à web e à digitalização como
forma de armazenamento dos livros. Por quê? Não se trata de um
avanço em termos de preservação?
Báez - Acabo de conversar com
os responsáveis pela digitalização de livros na França e na Espanha e posso assegurar que a
internet não evita sua destruição. Agora, as formas dessa destruição são mais silenciosas e
engenhosas, mas se mantêm e
afetam os servidores que abrigam as obras digitalizadas. A
atitude não desaparece porque
é sustentada pela intolerância,
que se provou persistente.
Folha - Como o sr. vê a atitude dos
fundamentalistas americanos que
queimaram exemplares de "Harry
Potter"? É possível ver o gesto como
liberdade de expressão, ou, como
disse V.S. Naipaul a respeito da fatwa sobre Salman Rushdie, uma forma extrema de crítica literária?
Báez - A queima de livros de
Harry Potter é surpreendente:
os livros foram queimados por
seitas religiosas que reivindicam nos EUA a liberdade de
culto. Há nisso algo paradoxal.
Folha - Em uma época de encolhimento da cultura erudita e da expressão escrita, a destruição de livros pode significar um atestado de
sua importância?
Báez - A destruição de um livro
é garantia de que está em jogo
um tema que ameaça os repressores ou censores. E devo dizer
que não vejo um descrédito da
cultura escrita: nunca se escreveu tanto como hoje.
Creio que os americanos disseram os dois maiores disparates do mundo. MacLuhan predisse o fim do livro, e Fukuyama predisse o fim da história:
suas crenças hoje em dia são
seus epitáfios. Não sei como alguém pode levá-los a sério.
Folha - Há livros que merecem ser
destruídos?
Báez - Nenhum livro merece
ser destruído. Nem "Minha Luta", de Hitler, nem as cartas de
Stálin. Mesmo se existissem as
memórias de Calígula ou de
Bush, seria preciso permitir
que fossem lidas: que outra maneira haveria de mostrar que
estavam equivocados?
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