São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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Ponto de fuga

O rabo e a tromba

Jorge Coli especial para a Folha

Gus van Sant dá duas explicações para o título de seu filme "Elefante", que, premiado em Cannes no ano passado, não faz muito chegou nos cinemas brasileiros. Um é o da evidência: impossível disfarçar um elefante. O outro, o primeiro que lhe veio à cabeça, foi a fábula dos cegos. Tateando, eles tentam reconhecer o animal, mas descobrem apenas uma parte: o rabo, as orelhas, a barriga ou a tromba.
O elefante é tão incompreensível quanto o massacre por dois adolescentes, no próprio colégio, de seus colegas. O diretor mostra, faz ver, mas, assim como seu público, é cego, pois não compreende.
Um elefante, no entanto, pode esconder outro. Gus van Sant, fascinado pelos jovens, retoma, sem cansar, o mundo deles em seus filmes. A câmera, fluente, discreta, os persegue. Nucas avançam pelos corredores, trajetos são capturados em pátios e gramados. Há algo dos videogames nesse encalço, mas transfigurado na poesia da imagem. Vistos de fora, como peixes em aquário, seus atores dizem frases curtas e raras. São menos que personagens, são presenças. O diretor da escola é assassinado: apenas aí algo de grotesco ocorre e algo de levemente inteligível.
Mais que o massacre, é o mundo adolescente que recusa a compreensão dos adultos. Em verdade, esse filme para cegos se oferece como visualidade impossível, que conhece suas impossibilidades. Tudo vem filmado com uma delicadeza extrema que é paradoxal, se pensarmos na matança. Tudo se torna espera, como um prólogo que se perpetua, como as nuvens que aparecem na tela, armando tempestade.

Par - A dificuldade de ser adolescente, o divórcio entre jovens e adultos, a inteireza dos sentimentos antes que eles se esgarcem com o passar dos anos, se transformaram, graças a Shakespeare, na história de amor mais célebre que existe: "Romeu e Julieta". É uma tragédia suave e comovente. Gounod a retomou numa ópera, tecida de maravilhosos abandonos românticos, com soberba orquestração, em que os violoncelos soam como se manifestassem a própria respiração amorosa.
Foi apresentada, não faz muito, com elenco brasileiro, no Teatro Municipal de São Paulo. Diante da Orquestra Experimental de Repertório, em ótima forma, o maestro Jamil Maluf conteve os grandes impulsos líricos da partitura, exaltou os momentos rítmicos e vivos. O jovem casal de Verona foi encarnado por Rosana Lamosa e Fernando Portari, muito seguros, muito musicais, embora o tenor tenha apresentado, como já nos anteriores "Contos de Hoffman", uma tendência para os sons nasais, que comprometem a beleza notável de seu timbre.
Paulo Szot fez lamentar que Mercutio morra tão cedo na história: seu canto mostrou como é merecido o sucesso que ele vem obtendo no exterior. A voz de José Gallisa, o frei Lourenço, revela-se cada vez mais suntuosa. Costumes e cenário, numa concepção que trazia a história para um estranho mundo contemporâneo, eram de grande beleza.

Escolha - Há uma bela versão de "Roméo et Juliette", de Gounod, num DVD que foi vendido em bancas de jornal e agora está em diversas lojas, a preço de banana. Filmagem de uma produção do Covent Garden (1994), traz Roberto Alagna e Leontina Vaduva, sob a regência inefável de Charles Mackerras. A voz de Vaduva é encorpada e sensual; Alagna entrou para o rol dos maiores tenores que interpretaram esse papel.
Há também, em CD, uma versão ainda com Alagna, mas é Angela Gheorghiu que encarna Julieta. Dirigida por Michel Plasson, conta com a vantagem de ter, nos segundos papéis, José van Dam e Simon Keenlyside.

Pérola - Captada ao vivo do Metropolitan Opera House, em Nova York (1947, Myto Records), uma apresentação da ópera de Gounod, com o maestro Emil Cooper, em que Jussi Björling é Romeu e Bidú Sayão, Julieta. Gravação indispensável, ela permite descobrir a grandeza imensa desses intérpretes. Ao brilho lírico e heróico de Bjöerling, Sayão opõe fragilidade que não diminui a obstinação decidida. Ela marcou o papel de modo definitivo, foi a Julieta de referência na história do canto.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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