São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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POLÍTICA
A mitologia futurista elaborada por George Lucas está difundindo uma visão elitista e antidemocrática sob o disfarce de diversão escapista, em tudo diferente do universo em que navega a espaçonave Enterprise
O despotismo de Star Wars

DAVID BRIN
Da "Salon.com"

 "É provável que não exista nenhuma forma de governo que seja melhor do que o despotismo benévolo."
George Lucas, ao "The New York Times" (março de 99)

Eu, pessoalmente, boicotei "Guerra nas Estrelas - Episódio 1 -A Ameaça Fantasma" durante uma semana inteira.
Por quê? O que existe no filme que mereça ser boicotado? Afinal, "Guerra nas Estrelas" não é apenas uma obra de ficção científica divertida? Algumas pessoas a definem como "doce para os olhos" -uma chance de voltar à infância e passar duas horas longe das preocupações normais da idade adulta, vivendo num universo onde a distinção entre o bem e o mal é traçada de maneira inequívoca, sem todas as distinções inconvenientes que pontilham a vida diária das pessoas.
Você está com um problema? Sem problemas! É só cortá-lo ao meio com um sabre de luz. Você não adoraria, pelo menos uma vez na vida, poder penetrar na maior fortaleza de seu pior inimigo numa nave veloz e desencadear uma reação em cadeia, explodindo a estrutura inteira desde seu podre interior, enquanto você mesmo foge, em segurança, à velocidade da luz? A idéia é tão sedutora que se repete em três dos quatro filmes da série "Guerra nas Estrelas".
Ganho a vida razoavelmente bem escrevendo livros e roteiros de filmes de ficção científica. Logo, "Guerra nas Estrelas" deveria ser um prato cheio para mim, certo?
Um dos problemas do chamado entretenimento descompromissado de hoje é que de algum modo, em meio a todos os efeitos especiais espetaculares, as pessoas tendem a perder de vista coisas simples como trama e sentido. Elas deixam de tomar nota das lições morais que o diretor está tentando transmitir. Mas essas coisas são importantes.
Já está bastante claro que George Lucas tem uma pauta de prioridades ideológicas que defende e que a leva muito a sério. Depois de quatro filmes da série "Guerra nas Estrelas", esse é um fato que já deveria ter sido percebido, mesmo por quem não vai ao cinema com o intuito de identificar a moral dos filmes. Quando a principal característica que distingue o "bem" do "mal" é até que ponto cada personagem é ou não bonitinho, existe um indicativo de que talvez valha a pena reavaliarmos a saga inteira.
Exatamente que produto nos está sendo vendido entre um "take" e outro?
1) As elites têm o direito inerente de governar de maneira arbitrária. Os cidadãos comuns não precisam ser consultados. Podem escolher apenas a elite que vão seguir.
2) As elites "boas" devem agir com base em seus caprichos subjetivos, independentemente de provas, argumentos ou responsabilidades.
3) Qualquer pecado pode ser perdoado se quem o cometeu for suficientemente importante.
4) Os verdadeiros líderes já nascem líderes. É uma coisa genética. O direito de governar é herdado.
5) Emoções humanas justificadas podem fazer uma pessoa boa virar má.
Esse é apenas o começo da longa lista de lições "morais" que são promovidas incansavelmente por "Guerra nas Estrelas". São lições que diferenciam completamente essa saga de outras que, à primeira vista, podem dar a impressão de lhe serem semelhantes, como "Jornada nas Estrelas".
Nunca gostei, sobretudo, de toda a coisa nietzschiana do "Übermensch": a idéia (subjacente a muitos mitos e lendas) de que uma história, para ser boa, precisa ter como sujeito semideuses que são muito maiores, piores e melhores do que os comuns mortais. Trata-se de uma tradição de narrativas que vem da Antiguidade, e que acho odiosa na obra de A.E. Van Vogt, E. E. Smith, L. Ron Hubbard e qualquer outro autor no qual se vêem superseres decidindo o destino de bilhões de pessoas sem nunca parar para levar em conta quais seriam as vontades delas.
Você dirá: "Uau! Se seu ponto de vista com relação a esse assunto é tão contundente, por que fazer um boicote com duração já prevista de apenas uma semana? Para que assistir ao último filme "Guerra nas Estrelas'?". Porque sou forçado a reconhecer que histórias sobre semideuses encontram eco profundo no coração humano.
Antes de passarmos para coisas divertidas, tenha um pouco de paciência comigo -quero falar a sério um pouquinho.
Em "O Herói de Mil Faces", Joseph Campbell mostrou como praticamente toda cultura antiga e pré-moderna utilizava uma técnica ritmada própria para contar histórias, retratando os protagonistas e antagonistas com certas motivações e traços de personalidade constantes, num padrão que transcende as fronteiras de língua e cultura.
Nessas narrativas clássicas o herói começa relutante, mas há augúrios e sinais que antevêem sua grandeza predestinada. Ele recebe conselhos sábios de um mentor, ganha companheiros inesperados, porém leais, enfrenta uma série de crises cada vez mais críticas, explora o poço de seus próprios medos e emerge vitorioso, levando a vitória ou o talismã de volta a sua tribo, seu povo ou sua nação, que o admira profundamente.
Ao lançar luz sobre essa tradição venerada dos contadores de histórias, Campbell de fato trouxe à tona alguns traços espirituais que parecem ser comuns a todos os humanos. E sou o primeiro a admitir que é uma fórmula fantástica.
Campbell, infelizmente, destacou apenas qualidades positivas, ignorando por completo um lado muito mais sombrio -como, por exemplo, esse modelo padronizado de fábula acabou sendo cooptado por reis, sacerdotes e tiranos que o utilizaram para tecer loas à importância suprema das elites que se erguem acima dos homens e das mulheres comuns. Ou, então, a idéia implícita de que devemos sempre nos restringir a traçar variações sobre uma única história, um único tema, repetindo à exaustão a mesma trama previamente prescrita.
Aqueles que elogiam Joseph Campbell parecem enxergar nessa uniformidade um motivo para nos alegrarmos. Mas ela não o é. Na medida em que desempenham um papel importante no trágico atolamento de nosso espírito, os mitos dos semideuses ajudaram a reforçar a mesmice e a imutabilidade durante milênios, imobilizando as pessoas de quase todas as culturas, desde Gilgamesh até os heróis das histórias em quadrinhos.
É essencial compreender o afastamento radical desse padrão que é dado pela ficção científica genuína, que tem suas origens numa tradição literária diametralmente oposta à primeira, formando um novo tipo de narrativa que muitas vezes se rebela contra os arquétipos que Campbell venerava. Trata-se da crença rebelde no progresso, no igualitarismo e na possibilidade de existirem histórias em que todos saiam ganhando -e também na possibilidade, pequena, porém real, de existirem instituições humanas decentes, sem falar no questionamento compulsivo das normas previamente estabelecidas.
Autores como Greg Bear, John Brunner, Alice Sheldon, Frederik Pohl e Philip K. Dick sempre encararam qualquer fórmula narrativa previamente prescrita como um desafio direto. Isso explica por que a ficção científica nunca foi muito bem-vinda nos dois extremos do espectro literário -os livros de histórias em quadrinhos e a "alta literatura".
Os quadrinhos tratam seus super-heróis com respeito reverente, como a "Ilíada" retratava os semideuses. Quanto à elite literária, os pós-modernistas desprezam a ficção científica devido à presença da palavra "científica", enquanto seus colegas mais antigos, profundamente imbuídos da "Poética" de Aristóteles, vêem como anátema o pressuposto subjacente à maior parte da ficção científica de alta qualidade: a afirmação ousada de que não existem "verdades humanas eternas".
As coisas mudam, e a transformação pode ser fascinante. Além disso, existe a possibilidade de os nossos filhos nos ultrapassarem. Eles podem nos superar ou podem aprender com nossos erros, deixando de repeti-los. E, se não aprenderem, isso seria uma tragédia que ultrapassaria de longe a definição restrita e míope dada por Aristóteles ao termo.
"On the Beach", "Soylent Green" e "1984" alcançaram profundidades assustadoras. "Admirável Mundo Novo", "The Screwfly Solution" e "Fahrenheit 451" postularam questões preocupantes. Contrastando com eles, "Édipo Rei" é mais ou menos tão interessante quanto observar um peixe fisgado se contorcendo na ponta da linha do pescador. A única coisa que se tem vontade de fazer é matar logo o desgraçado do rei de Tebas, para pôr um fim a seu sofrimento -e encontrar uma maneira de punir aqueles que o atormentaram.
Trata-se de um ponto de vista realmente diferente, que forma uma oposição direta com os credos mais velhos, elitistas, que pregavam a passividade e o respeito imobilizador, encontrados em quase todas as culturas nas quais o trabalho principal do contador de histórias era lisonjear os patrões oligárquicos que punham comida em seu prato.
Imagine-se Aquiles recusando-se a aceitar seu destino predeterminado, agarrando sua espada e saindo à caça das Parcas, exigindo que lhe dessem uma vida longa e gloriosa! Ou Odisseu mandando Agamêmnon e Poseidon às favas e indo juntar-se a Dédalo para fundar uma empresa que produziria cavalos alados e com rodas, em massa, de modo que os mortais pudessem passear pelo ar e pela terra como faziam os deuses -e como fazem os comuns mortais hoje em dia. Mesmo que fracassassem e que os ciumentos deuses do Olimpo os destruíssem, seria uma grande história.
Esse estilo de contar histórias raramente foi visto até algumas gerações atrás, quando os aristocratas perderam parte de seus poderes, a título de castigo por sua irreverência. Mesmo hoje, a perspectiva permanece incerta -e muitos a acham, além disso, menos romântica. Quantos dramas não retratam os cientistas como "loucos"? Quão poucos filmes modernos mostram as instituições americanas funcionando bem a ponto de justificar que alguém se dê ao trabalho de tentar reparar suas deficiências? Não surpreende que George Lucas anseie publicamente pela pompa de reis poderosos, preferindo-a à responsabilidade sem graça assumida pelos presidentes. Muitos compartilham sua crença de que as coisas seriam bem mais interessantes sem a interminável e cansativa argumentação e negociação que compõem uma parte tão grande da vida moderna.
Como seria bom se alguém assumisse o comando! Se aparecesse um líder!
Algumas pessoas perguntam de que adianta procurar lições profundas numa obra de entretenimento inofensiva e escapista. Para outras, a saúde moral de uma civilização pode ser avaliada por sua cultura popular.
Na era moderna, temos a tendência a pensar que idéias são coisas que não podem ser inerentemente nocivas. No entanto, quem pode negar que as pessoas, especialmente as crianças, acabam sendo afetadas por mensagens que são repetidas com frequência suficiente? É quando uma "lição" é repetida de maneira implacável que até os céticos deveriam começar a tomar nota do que está sendo feito.
As mensagens morais transmitidas por "Guerra nas Estrelas" não são mero enfeite. Cada um dos filmes da série é repleto de discursos e aulas. Eles representam uma pauta ideológica.
Será que poderemos aprender mais sobre a visão de mundo expressa em "Guerra nas Estrelas" se traçarmos uma comparação entre o épico de aventura espacial idealizado por George Lucas e seu principal concorrente, "Jornada nas Estrelas"?
À primeira vista, as diferenças entre os dois parecem ser superficiais. Uma saga contém uma pequena temática ligada à força aérea (caças minúsculos), enquanto a outra é naval. Em "Jornada nas Estrelas", a grande nave é heróica e o esforço cooperativo necessário para mantê-la funcionando é retratado como sendo honroso.


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