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POLÍTICA
A mitologia futurista elaborada por George Lucas está difundindo uma visão elitista e antidemocrática sob o disfarce de diversão escapista, em tudo diferente do universo em que navega a espaçonave Enterprise
O despotismo de Star Wars
DAVID BRIN
Da "Salon.com"
"É provável que não exista nenhuma
forma de governo que seja melhor do
que o despotismo benévolo."
George Lucas, ao "The New York Times" (março de 99)
Eu, pessoalmente, boicotei
"Guerra nas Estrelas - Episódio 1
-A Ameaça Fantasma" durante
uma semana inteira.
Por quê? O que existe no filme
que mereça ser boicotado? Afinal,
"Guerra nas Estrelas" não é apenas
uma obra de ficção científica divertida? Algumas pessoas a definem como "doce para os olhos"
-uma chance de voltar à infância
e passar duas horas longe das
preocupações normais da idade
adulta, vivendo num universo onde a distinção entre o bem e o mal é
traçada de maneira inequívoca,
sem todas as distinções inconvenientes que pontilham a vida diária das pessoas.
Você está com um problema?
Sem problemas! É só cortá-lo ao
meio com um sabre de luz. Você
não adoraria, pelo menos uma vez
na vida, poder penetrar na maior
fortaleza de seu pior inimigo numa
nave veloz e desencadear uma reação em cadeia, explodindo a estrutura inteira desde seu podre interior, enquanto você mesmo foge,
em segurança, à velocidade da luz?
A idéia é tão sedutora que se repete
em três dos quatro filmes da série
"Guerra nas Estrelas".
Ganho a vida razoavelmente
bem escrevendo livros e roteiros
de filmes de ficção científica. Logo,
"Guerra nas Estrelas" deveria ser
um prato cheio para mim, certo?
Um dos problemas do chamado
entretenimento descompromissado de hoje é que de algum modo,
em meio a todos os efeitos especiais espetaculares, as pessoas tendem a perder de vista coisas simples como trama e sentido. Elas
deixam de tomar nota das lições
morais que o diretor está tentando
transmitir. Mas essas coisas são
importantes.
Já está bastante claro que George
Lucas tem uma pauta de prioridades ideológicas que defende e que a
leva muito a sério. Depois de quatro filmes da série "Guerra nas Estrelas", esse é um fato que já deveria ter sido percebido, mesmo por
quem não vai ao cinema com o intuito de identificar a moral dos filmes. Quando a principal característica que distingue o "bem" do
"mal" é até que ponto cada personagem é ou não bonitinho, existe
um indicativo de que talvez valha a
pena reavaliarmos a saga inteira.
Exatamente que produto nos está sendo vendido entre um "take" e
outro?
1) As elites têm o direito inerente
de governar de maneira arbitrária.
Os cidadãos comuns não precisam
ser consultados. Podem escolher
apenas a elite que vão seguir.
2) As elites "boas" devem agir
com base em seus caprichos subjetivos, independentemente de provas, argumentos ou responsabilidades.
3) Qualquer pecado pode ser
perdoado se quem o cometeu for
suficientemente importante.
4) Os verdadeiros líderes já nascem líderes. É uma coisa genética.
O direito de governar é herdado.
5) Emoções humanas justificadas podem fazer uma pessoa boa
virar má.
Esse é apenas o começo da longa
lista de lições "morais" que são
promovidas incansavelmente por
"Guerra nas Estrelas". São lições
que diferenciam completamente
essa saga de outras que, à primeira
vista, podem dar a impressão de
lhe serem semelhantes, como "Jornada nas Estrelas".
Nunca gostei, sobretudo, de toda
a coisa nietzschiana do "Übermensch": a idéia (subjacente a
muitos mitos e lendas) de que uma
história, para ser boa, precisa ter
como sujeito semideuses que são
muito maiores, piores e melhores
do que os comuns mortais. Trata-se de uma tradição de narrativas
que vem da Antiguidade, e que
acho odiosa na obra de A.E. Van
Vogt, E. E. Smith, L. Ron Hubbard
e qualquer outro autor no qual se
vêem superseres decidindo o destino de bilhões de pessoas sem
nunca parar para levar em conta
quais seriam as vontades delas.
Você dirá: "Uau! Se seu ponto de
vista com relação a esse assunto é
tão contundente, por que fazer um
boicote com duração já prevista de
apenas uma semana? Para que assistir ao último filme "Guerra nas
Estrelas'?". Porque sou forçado a
reconhecer que histórias sobre semideuses encontram eco profundo no coração humano.
Antes de passarmos para coisas
divertidas, tenha um pouco de paciência comigo -quero falar a sério um pouquinho.
Em "O Herói de Mil Faces", Joseph Campbell mostrou como praticamente toda cultura antiga e
pré-moderna utilizava uma técnica ritmada própria para contar
histórias, retratando os protagonistas e antagonistas com certas
motivações e traços de personalidade constantes, num padrão que
transcende as fronteiras de língua
e cultura.
Nessas narrativas clássicas o herói começa relutante, mas há augúrios e sinais que antevêem sua
grandeza predestinada. Ele recebe
conselhos sábios de um mentor,
ganha companheiros inesperados,
porém leais, enfrenta uma série de
crises cada vez mais críticas, explora o poço de seus próprios medos e
emerge vitorioso, levando a vitória
ou o talismã de volta a sua tribo,
seu povo ou sua nação, que o admira profundamente.
Ao lançar luz sobre essa tradição
venerada dos contadores de histórias, Campbell de fato trouxe à tona alguns traços espirituais que
parecem ser comuns a todos os humanos. E sou o primeiro a admitir
que é uma fórmula fantástica.
Campbell, infelizmente, destacou apenas qualidades positivas,
ignorando por completo um lado
muito mais sombrio -como, por
exemplo, esse modelo padronizado de fábula acabou sendo cooptado por reis, sacerdotes e tiranos
que o utilizaram para tecer loas à
importância suprema das elites
que se erguem acima dos homens e
das mulheres comuns. Ou, então, a
idéia implícita de que devemos
sempre nos restringir a traçar variações sobre uma única história,
um único tema, repetindo à exaustão a mesma trama previamente
prescrita.
Aqueles que elogiam Joseph
Campbell parecem enxergar nessa
uniformidade um motivo para nos
alegrarmos. Mas ela não o é. Na
medida em que desempenham um
papel importante no trágico atolamento de nosso espírito, os mitos
dos semideuses ajudaram a reforçar a mesmice e a imutabilidade
durante milênios, imobilizando as
pessoas de quase todas as culturas,
desde Gilgamesh até os heróis das
histórias em quadrinhos.
É essencial compreender o afastamento radical desse padrão que é
dado pela ficção científica genuína, que tem suas origens numa tradição literária diametralmente
oposta à primeira, formando um
novo tipo de narrativa que muitas
vezes se rebela contra os arquétipos que Campbell venerava. Trata-se da crença rebelde no progresso,
no igualitarismo e na possibilidade
de existirem histórias em que todos saiam ganhando -e também
na possibilidade, pequena, porém
real, de existirem instituições humanas decentes, sem falar no
questionamento compulsivo das
normas previamente estabelecidas.
Autores como Greg Bear, John
Brunner, Alice Sheldon, Frederik
Pohl e Philip K. Dick sempre encararam qualquer fórmula narrativa
previamente prescrita como um
desafio direto. Isso explica por que
a ficção científica nunca foi muito
bem-vinda nos dois extremos do
espectro literário -os livros de
histórias em quadrinhos e a "alta
literatura".
Os quadrinhos tratam seus super-heróis com respeito reverente,
como a "Ilíada" retratava os semideuses. Quanto à elite literária, os
pós-modernistas desprezam a ficção científica devido à presença da
palavra "científica", enquanto
seus colegas mais antigos, profundamente imbuídos da "Poética" de
Aristóteles, vêem como anátema o
pressuposto subjacente à maior
parte da ficção científica de alta
qualidade: a afirmação ousada de
que não existem "verdades humanas eternas".
As coisas mudam, e a transformação pode ser fascinante. Além
disso, existe a possibilidade de os
nossos filhos nos ultrapassarem.
Eles podem nos superar ou podem
aprender com nossos erros, deixando de repeti-los. E, se não
aprenderem, isso seria uma tragédia que ultrapassaria de longe a definição restrita e míope dada por
Aristóteles ao termo.
"On the Beach", "Soylent Green"
e "1984" alcançaram profundidades assustadoras. "Admirável
Mundo Novo", "The Screwfly Solution" e "Fahrenheit 451" postularam questões preocupantes.
Contrastando com eles, "Édipo
Rei" é mais ou menos tão interessante quanto observar um peixe
fisgado se contorcendo na ponta
da linha do pescador. A única coisa
que se tem vontade de fazer é matar logo o desgraçado do rei de Tebas, para pôr um fim a seu sofrimento -e encontrar uma maneira
de punir aqueles que o atormentaram.
Trata-se de um ponto de vista
realmente diferente, que forma
uma oposição direta com os credos mais velhos, elitistas, que pregavam a passividade e o respeito
imobilizador, encontrados em
quase todas as culturas nas quais o
trabalho principal do contador de
histórias era lisonjear os patrões
oligárquicos que punham comida
em seu prato.
Imagine-se Aquiles recusando-se a aceitar seu destino predeterminado, agarrando sua espada e
saindo à caça das Parcas, exigindo
que lhe dessem uma vida longa e
gloriosa! Ou Odisseu mandando
Agamêmnon e Poseidon às favas e
indo juntar-se a Dédalo para fundar uma empresa que produziria
cavalos alados e com rodas, em
massa, de modo que os mortais
pudessem passear pelo ar e pela
terra como faziam os deuses -e
como fazem os comuns mortais
hoje em dia. Mesmo que fracassassem e que os ciumentos deuses do
Olimpo os destruíssem, seria uma
grande história.
Esse estilo de contar histórias raramente foi visto até algumas gerações atrás, quando os aristocratas
perderam parte de seus poderes, a
título de castigo por sua irreverência. Mesmo hoje, a perspectiva
permanece incerta -e muitos a
acham, além disso, menos romântica. Quantos dramas não retratam
os cientistas como "loucos"? Quão
poucos filmes modernos mostram
as instituições americanas funcionando bem a ponto de justificar
que alguém se dê ao trabalho de
tentar reparar suas deficiências?
Não surpreende que George Lucas
anseie publicamente pela pompa
de reis poderosos, preferindo-a à
responsabilidade sem graça assumida pelos presidentes. Muitos
compartilham sua crença de que as
coisas seriam bem mais interessantes sem a interminável e cansativa argumentação e negociação
que compõem uma parte tão grande da vida moderna.
Como seria bom se alguém assumisse o comando! Se aparecesse
um líder!
Algumas pessoas perguntam de
que adianta procurar lições profundas numa obra de entretenimento inofensiva e escapista. Para
outras, a saúde moral de uma civilização pode ser avaliada por sua
cultura popular.
Na era moderna, temos a tendência a pensar que idéias são coisas
que não podem ser inerentemente
nocivas. No entanto, quem pode
negar que as pessoas, especialmente as crianças, acabam sendo afetadas por mensagens que são repetidas com frequência suficiente? É
quando uma "lição" é repetida de
maneira implacável que até os céticos deveriam começar a tomar nota do que está sendo feito.
As mensagens morais transmitidas por "Guerra nas Estrelas" não
são mero enfeite. Cada um dos filmes da série é repleto de discursos
e aulas. Eles representam uma
pauta ideológica.
Será que poderemos aprender
mais sobre a visão de mundo expressa em "Guerra nas Estrelas" se
traçarmos uma comparação entre
o épico de aventura espacial idealizado por George Lucas e seu principal concorrente, "Jornada nas
Estrelas"?
À primeira vista, as diferenças
entre os dois parecem ser superficiais. Uma saga contém uma pequena temática ligada à força aérea
(caças minúsculos), enquanto a
outra é naval. Em "Jornada nas Estrelas", a grande nave é heróica e o
esforço cooperativo necessário para mantê-la funcionando é retratado como sendo honroso.
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