São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Ivan Teixeira propõe nova leitura do arcadismo em "Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica"
Uma literatura oblíqua

ALCIR PÉCORA
especial para a Folha

O belo livro de Ivan Teixeira trata das relações existentes entre Pombal, a poesia árcade produzida em Portugal e Brasil e as poéticas compostas no mesmo período. Ele demonstra que boa parte da crítica brasileira, preocupada com a questão romântica da formação da nacionalidade, acentuou aspectos periféricos de suas obras, pretensamente indianistas e nativistas, em detrimento de seus vínculos essenciais com o mecenato pombalino. Interessado nesse outro rumo, concentra-se no estudo da convergência entre o ideário do ministro e a "Arte Poética", de Francisco Freire, que o propõe como matéria adequada às composições dos novos tempos, e também no exame da poesia encomiástica que lhe é dedicada. Nos dois casos, fica nítido que a idéia clássica de utilidade da poesia se repensa em estreita ligação com a filosofia moral, que regula os graus de conveniência de atos e conceitos diante da hierarquia político-social.
O publicismo pombalino, segundo Teixeira, é ainda mais patente na produção de poetas brasileiros, como no caso do "Epitalâmio da Exma. Sra. D. Maria Amália", dedicado ao casamento da filha de Pombal, por Basílio da Gama.Tais aspectos publicistas são diluídos na sua posterior apropriação por Januário da C. Barbosa, que o adultera segundo padrões românticos da oralização, com exclamações e reticências sentimentais, e por Varnhagen, que o transcria ao fundir duas de suas estrofes a outro poema de Basílio. Também "O Uraguay" é lido como exemplo de poesia de "fuga para a natureza", fundada na idealização da paisagem e na caracterização pitoresca do indígena. Contudo, segundo as referências críticas que lhe são contemporâneas, a epopéia dá-se como alegoria encomiástica do Estado pombalino, na qual o lugar do índio está vinculado à função clássica de antagonista do poder civilizatório, atualizada como parte de um painel universalista em louvor dos atos de Pombal. Ademais, propõe que a estrutura paralela das ações indígenas atenda ao esforço de Basílio para encontrar um potencial maravilhoso capaz de substituir a tradicional "máquina" dos deuses greco-romanos, desautorizada pelas preceptivas do período como inverossímeis.
A partir daí, Teixeira historia alguns marcos da apropriação romântica de "O Uraguay": o desapreço pelo primeiro canto, dominado pela figura de Pombal; a crítica sistemática ao episódio do canto terceiro, no qual o ministro surge em visão às índias; as adulterações editoriais, como as de Nunes Ribeiro,Varnhagen, Paula Brito e Artur Montenegro, que excluíram os sonetos pombalinos ao fim e ao início da epopéia, deram-lhe novas introduções e poemas pró-americanos, deslocaram para o final as notas que reforçavam o encômio e sempre acrescentaram expressivos pontos de exclamação em sua composição; a desqualificação do canto quinto, ocupado pela descrição da pintura do teto da Igreja de S. Miguel na missão jesuítica, que representa, como o demonstra Ivan admiravelmente, uma paródia do teto pintado por Andrea Pozzo para a Igreja de Santo Inácio em Roma, passagem essencial ao antijesuitismo obrigatório no louvor do ministro. Não se trata, porém, de condenar tal leitura nacionalista, iniciada, aliás, pelo português Garrett, que via na paisagem e no índio a matéria básica para uma literatura original do Brasil, mas de entender que o seu anacronismo forneceu uma dimensão interpretativa atuante na produção dos românticos, a despeito de, hoje, já não parecer verossímil como análise desses poemas. Ao fim desse alentado caminho, a crítica de Ivan devolve-nos a poesia árcade com traços de novidade como há muito não se via. De tudo, apenas faço reparo na adesão à tese tradicional de um Pombal iluminista, ou quase. A questão é bem mais espinhosa: a Ilustração que Pombal permite, sob a polícia de Pina Manique, é apenas a que vozeia autores, como diria Bocage. Nada de revolução ou democracia por ali: igualdade apenas para os iguais; liberdade só mesmo a de agir segundo o lugar próprio na hierarquia; fraternidade com a concórdia dos membros sob a cabeça real. Por último, nem sempre parece-me apropriado o tom didático adotado pelo livro: se estrategicamente ajuda a tornar digerível uma tese que bate de frente contra boa parte do que tem sido escrito sobre arcadismo, também arrisca dificultar a percepção de seu aspecto mais inovador, decorrente de rigorosa pesquisa.
Isso dito, certo é que o estudo de Teixeira envelhece cruamente o de Fábio Lucas, que reúne material de circunstância: resenhas, introduções, discursos acadêmicos proferidos em épocas distintas; a maior parte, suponho, já publicada, mas tal informação o volume não traz. Em resumo, pode-se dizer que presta testemunho de quão persistente é a leitura romântica da produção árcade no Brasil, pois, para Fábio, trata-se ainda de examinar o "papel em nossa História" desses poetas dotados de "inteligências pioneiras, insufladas pelos sentimentos nativistas", de modo a buscar neles os "sinais distintivos que iriam caracterizar a brasilidade".
Naturalmente, se o interesse é esse, as convenções literárias, que são o mais típico -e, julgo eu, o melhor dos árcades-, devem ser consideradas como "limitações" e "disfarces", que uma boa "leitura oblíqua" é capaz de atravessar para descobrir alegorias "cheias de segundas intenções", e secreta "mensagem crítica", de inspiração iluminista e republicana. Assim Lucas bate no bordão de que os árcades sentem "o despertar da consciência nativista", mas, curiosamente, remata-o numa direção insuspeitada. Não era só o "espírito brasileiro" que se ia "fermentando" naquela "atmosfera nativista", mas também o do astuto "mineiro", que dissimulava o "racionalismo emanado das Luzes" sob a capa de "meias-verdades" e de "artifícios retóricos de dupla leitura"; que "exteriorizava" como fé o que, na verdade, nos "sulcos profundos da psicologia mineira", vem a ser "anticlericalismo de essência".
Para o autor, há no arcadismo o "dilema" desses homens argutos que, de um lado, são "sempre levados a prestar vassalagem aos poderosos" e, de outro, são "seduzidos a palmilhar os caminhos da expansão interior". Assim, o "mineiro", premido pela "necessidade de camuflar sentimentos", forma-se tangido pela "astúcia da ocultação", sabendo fazer da Arcádia um "aparelho divulgador de idéias novas, principalmente as revolucionárias ou subversivas". Lucas inclusive consegue ver no convencionalismo de Silva Alvarenga um "estilo intimista" e mesmo "psicológico", admitindo porém que, por vezes, "se deixa cair na armadilha das convenções literárias". O mesmo se passa com Gonzaga, que soube conferir a "normas tradicionais" certo "intimismo que ultrapassava os cânones", e com outros mineiros admiráveis. O que dizer diante de uma tese que repõe tais questões e propõe a relevância de se conhecer o "jeito mineiro"? Talvez confessar que, certamente vitimado pela "ausência de um culto sistemático de nossa memória" e pela má fortuna de não ser mineiro, faço parte da grei com "escassa estima das raízes". E, sobretudo, sinto-me parte daqueles que não estão interessados em qualquer espécie de "cristalização de uma tábua de valores perante a qual o brasileiro se defina em estado natural, sem polemizar o seu passado". Bem ao contrário, parece-me importante desnaturalizar os valores, para interpretá-los como argumentos históricos mais ou menos persuasivos nas diferentes circunstâncias. Assim, tampouco compartilho do entusiasmo cívico e mineiro com que o autor celebra Tiradentes, "herói positivo". Mais relevante parece-me saber que uso e qual eficácia teve historicamente a construção desse heroísmo.



AS OBRAS
Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica - Ivan Teixeira. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, 374, Travessa J, Cidade Universitária, CEP 05508-900, SP, tel. 011/818-4149). 632 págs. R$ 65,00.

Luzes e Trevas - Fábio Lucas. Editora da UFMG (av. Antonio Carlos, 6.627, Belo Horizonte, MG, CEP 31270-901, tel. 031/499-4657). 188 págs. R$ 24,00.



Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas, autor de "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).


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