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Ivan Teixeira propõe nova leitura do arcadismo em "Mecenato Pombalino
e Poesia Neoclássica"
Uma literatura oblíqua
ALCIR PÉCORA
especial para a Folha
O belo livro de Ivan Teixeira trata das relações existentes entre
Pombal, a poesia árcade produzida
em Portugal e Brasil e as poéticas
compostas no mesmo período. Ele
demonstra que boa parte da crítica
brasileira, preocupada com a questão romântica da formação da nacionalidade, acentuou aspectos
periféricos de suas obras, pretensamente indianistas e nativistas,
em detrimento de seus vínculos essenciais com o mecenato pombalino. Interessado nesse outro rumo,
concentra-se no estudo da convergência entre o ideário do ministro
e a "Arte Poética", de Francisco
Freire, que o propõe como matéria
adequada às composições dos novos tempos, e também no exame
da poesia encomiástica que lhe é
dedicada. Nos dois casos, fica nítido que a idéia clássica de utilidade
da poesia se repensa em estreita ligação com a filosofia moral, que
regula os graus de conveniência de
atos e conceitos diante da hierarquia político-social.
O publicismo pombalino, segundo Teixeira, é ainda mais patente
na produção de poetas brasileiros,
como no caso do "Epitalâmio da
Exma. Sra. D. Maria Amália", dedicado ao casamento da filha de
Pombal, por Basílio da Gama.Tais
aspectos publicistas são diluídos
na sua posterior apropriação por
Januário da C. Barbosa, que o
adultera segundo padrões românticos da oralização, com exclamações e reticências sentimentais, e por
Varnhagen,
que o transcria
ao fundir duas
de suas estrofes
a outro poema
de Basílio.
Também "O
Uraguay" é lido como
exemplo de
poesia de "fuga
para a natureza", fundada
na idealização
da paisagem e na caracterização
pitoresca do indígena. Contudo,
segundo as referências críticas que
lhe são contemporâneas, a epopéia
dá-se como alegoria encomiástica
do Estado pombalino, na qual o lugar do índio está vinculado à função clássica de antagonista do poder civilizatório, atualizada como
parte de um painel universalista
em louvor dos atos de Pombal.
Ademais, propõe que a estrutura
paralela das ações indígenas atenda ao esforço de Basílio para encontrar um potencial maravilhoso
capaz de substituir a tradicional
"máquina" dos deuses greco-romanos, desautorizada pelas preceptivas do período como inverossímeis.
A partir daí, Teixeira historia alguns marcos da apropriação romântica de "O Uraguay": o desapreço pelo primeiro canto, dominado pela figura de Pombal; a crítica sistemática ao episódio do canto
terceiro, no qual o ministro surge
em visão às índias; as adulterações
editoriais, como as de Nunes Ribeiro,Varnhagen, Paula Brito e Artur Montenegro, que excluíram os
sonetos pombalinos ao fim e ao
início da epopéia, deram-lhe novas
introduções e poemas pró-americanos, deslocaram para o final as
notas que reforçavam o encômio e
sempre acrescentaram expressivos
pontos de exclamação em sua
composição; a desqualificação do
canto quinto, ocupado pela descrição da pintura do teto da Igreja de
S. Miguel na missão jesuítica, que
representa, como o demonstra
Ivan admiravelmente, uma paródia do teto pintado por Andrea
Pozzo para a Igreja de Santo Inácio
em Roma, passagem essencial ao
antijesuitismo obrigatório no louvor do ministro. Não se trata, porém, de condenar tal leitura nacionalista, iniciada, aliás, pelo português Garrett, que via na paisagem e
no índio a matéria básica para uma
literatura original do Brasil,
mas de entender que o seu
anacronismo
forneceu uma
dimensão interpretativa
atuante na produção dos românticos, a
despeito de,
hoje, já não parecer verossímil como análise desses poemas. Ao fim
desse alentado
caminho, a crítica de Ivan devolve-nos a poesia
árcade com traços de novidade como há muito não se via. De tudo,
apenas faço reparo na adesão à tese
tradicional de um Pombal iluminista, ou quase. A questão é bem
mais espinhosa: a Ilustração que
Pombal permite, sob a polícia de
Pina Manique, é apenas a que vozeia autores, como diria Bocage.
Nada de revolução ou democracia
por ali: igualdade apenas para os
iguais; liberdade só mesmo a de
agir segundo o lugar próprio na
hierarquia; fraternidade com a
concórdia dos membros sob a cabeça real. Por último, nem sempre
parece-me apropriado o tom didático adotado pelo livro: se estrategicamente ajuda a tornar digerível
uma tese que bate de frente contra
boa parte do que tem sido escrito
sobre arcadismo, também arrisca
dificultar a percepção de seu aspecto mais inovador, decorrente
de rigorosa pesquisa.
Isso dito, certo é que o estudo de
Teixeira envelhece cruamente o de
Fábio Lucas, que reúne material de
circunstância: resenhas, introduções, discursos acadêmicos proferidos em épocas distintas; a maior
parte, suponho, já publicada, mas
tal informação o volume não traz.
Em resumo, pode-se dizer que
presta testemunho de quão persistente é a leitura romântica da produção árcade no Brasil, pois, para
Fábio, trata-se ainda de examinar
o "papel em nossa História" desses
poetas dotados de "inteligências
pioneiras, insufladas pelos sentimentos nativistas", de modo a
buscar neles os "sinais distintivos
que iriam caracterizar a brasilidade".
Naturalmente, se o interesse é esse, as convenções literárias, que
são o mais típico -e, julgo eu, o
melhor dos árcades-, devem ser
consideradas como "limitações" e
"disfarces", que uma boa "leitura
oblíqua" é capaz de atravessar para
descobrir alegorias "cheias de segundas intenções", e secreta
"mensagem crítica", de inspiração
iluminista e republicana. Assim
Lucas bate no bordão de que os árcades sentem "o despertar da
consciência nativista", mas, curiosamente, remata-o numa direção
insuspeitada. Não era só o "espírito brasileiro" que se ia "fermentando" naquela "atmosfera nativista", mas também o do astuto
"mineiro", que dissimulava o "racionalismo emanado das Luzes"
sob a capa de "meias-verdades" e
de "artifícios retóricos de dupla
leitura"; que "exteriorizava" como
fé o que, na verdade, nos "sulcos
profundos da psicologia mineira",
vem a ser "anticlericalismo de essência".
Para o autor, há no arcadismo o
"dilema" desses homens argutos
que, de um lado, são "sempre levados a prestar vassalagem aos poderosos" e, de outro, são "seduzidos
a palmilhar os caminhos da expansão interior". Assim, o "mineiro",
premido pela "necessidade de camuflar sentimentos", forma-se
tangido pela "astúcia da ocultação", sabendo fazer da Arcádia um
"aparelho divulgador de idéias novas, principalmente as revolucionárias ou subversivas". Lucas inclusive consegue ver no convencionalismo de Silva Alvarenga um
"estilo intimista" e mesmo "psicológico", admitindo porém que, por
vezes, "se deixa cair na armadilha
das convenções literárias". O mesmo se passa com Gonzaga, que
soube conferir a "normas tradicionais" certo "intimismo que ultrapassava os cânones", e com outros
mineiros admiráveis. O que dizer
diante de uma tese que repõe tais
questões e propõe a relevância de
se conhecer o "jeito mineiro"? Talvez confessar que, certamente vitimado pela "ausência de um culto
sistemático de nossa memória" e
pela má fortuna de não ser mineiro, faço parte da grei com "escassa
estima das raízes". E, sobretudo,
sinto-me parte daqueles que não
estão interessados em qualquer espécie de "cristalização de uma tábua de valores perante a qual o
brasileiro se defina em estado natural, sem polemizar o seu passado". Bem ao contrário, parece-me
importante desnaturalizar os valores, para interpretá-los como argumentos históricos mais ou menos
persuasivos nas diferentes circunstâncias. Assim, tampouco
compartilho do entusiasmo cívico
e mineiro com que o autor celebra
Tiradentes, "herói positivo". Mais
relevante parece-me saber que uso
e qual eficácia teve historicamente
a construção desse heroísmo.
AS OBRAS
Mecenato Pombalino e
Poesia Neoclássica - Ivan Teixeira. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, 374, Travessa J, Cidade Universitária, CEP 05508-900, SP, tel.
011/818-4149). 632 págs. R$ 65,00.
Luzes e Trevas - Fábio Lucas.
Editora da UFMG (av. Antonio Carlos, 6.627, Belo Horizonte, MG, CEP
31270-901, tel. 031/499-4657). 188 págs. R$ 24,00.
Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas, autor de "Teatro
do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).
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